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"Não me chame de poetisa"
Reportagem Seriada

"Não me chame de poetisa"

Ao longo de toda a vida, mulheres encaram questões específicas só por serem mulheres — e na velhice não é diferente. Conheça histórias das lutas e militâncias de Maria Norma Colares, 71, e Thina Rodrigues, 57, que toparam contar suas vivências neste especial sobre o envelhecer feminino. Reportagem em textos, vídeos e podcasts, que trazem histórias e análises sobre as mudanças sociais que influenciaram a forma como esse processo natural é encarado atualmente
Episódio 3

"Não me chame de poetisa"

Ao longo de toda a vida, mulheres encaram questões específicas só por serem mulheres — e na velhice não é diferente. Conheça histórias das lutas e militâncias de Maria Norma Colares, 71, e Thina Rodrigues, 57, que toparam contar suas vivências neste especial sobre o envelhecer feminino. Reportagem em textos, vídeos e podcasts, que trazem histórias e análises sobre as mudanças sociais que influenciaram a forma como esse processo natural é encarado atualmente
Episódio 3
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O ativismo de Maria Norma Colares, 71, já é percebido na maneira como ela se identifica profissionalmente: poeta, não poetisa. Assim como outras escritoras também questionam, ela considera o termo negado “pejorativo”.

“Eu sou poeta porque poetisa é uma palavra que sempre resvalou em mim, não entrava no meu coração. E se a língua portuguesa insistir em ser machista, eu tenho licença poética para dizer: ‘Eu sou poeta’.”

Cientista social por formação, Maria Norma viu no estudo e na leitura uma forma de não reproduzir a história das outras mulheres da família. Conta que a vida foi repleta de migrações entre Ceará, Pernambuco e Amazonas, sempre envolvida em lutas sociais e culturais, participando de ocupações e militando por meio da arte. “Eu lamento que as mulheres da minha idade, que foram ativistas na juventude, hoje digam que estão cansadas, que estão doentes e não podem fazer nada.”

A liberdade que marcou a juventude da poeta reflete-se aos 71 anos: ainda considera-se uma mulher livre e diz que transita facilmente entre diferentes gerações. Mas afirma que “envelhecer não é fácil”. O que torna o processo mais difícil é a exigência de pessoas da mesma idade para ser o que não é: agir e se vestir de forma mais séria ou não usar biquíni e shorts na praia. “Mas veias quebradas são como as cicatrizes da minha mão. São coisas que a gente vai perdendo no corpo. É o tempo.”

Em uma sociedade marcada por um machismo estrutural, apesar dos avanços dos movimentos feministas, o envelhecimento pode ser “mais cruel” para mulheres do que para os homens, segundo a pedagoga e cientista social Marcia Veiga. “Por um lado, (elas) são cobradas a permanecerem aparentemente jovens e ativas; por outro, obrigam-se, em grande parte, a assumir para si o cuidado com o envelhecimento alheio — de seus companheiros, familiares ou a quem prestem serviços de cuidado”, afirma.

A professora argumenta que há uma “homogeneização danosa na velhice”, quando origens, trajetórias, desejos e expectativas de cada pessoa são ignorados, “como se todas as pessoas idosas tivessem que, a partir de determinada idade, agir de uma determinada forma”. Além disso, há especificidades em relação aos preconceitos sentidos pelas mulheres.

“Existem preconceitos em relação à sexualidade e ao desejo feminino na velhice; preconceitos em relação à sua capacidade intelectual e decisória, por exemplo.”

O acúmulo de funções também é pontuado pela geriatra Danielle Ferreira, médica da Clínica da Memória. “A mulher que envelhece é esposa, mãe, avó, profissional e, muitas vezes, torna-se cuidadora também. Se tem dois idosos, marido e mulher, muitas vezes a mulher vai ser a cuidadora, seja dos netos, do marido, do irmão.”

Em consequência, muitas delas param de olhar para si e se dedicam ao outro. Mas a médica acredita que essa realidade pode mudar ao longo das próximas gerações. “Acho que já tem uma mudança, na sociedade, de como a mulher se enxerga nesse sentido, de ter seu valor, de cuidar de si, de ter um tempo para si. Mas ainda não chegamos lá”, afirma.

Na medicina como um todo, atualmente o momento é de promover uma abordagem focada em prevenção, e não na doença. Essa postura é percebida na mudança do perfil dos pacientes que procuram a geriatra, principalmente as mulheres. “Hoje, não encaramos a entrada na terceira idade como um fim. Acho que começamos a encarar mais como uma das fases do ciclo de vida”, avalia.

No grupo LGBTQI+

Porém, essa não é a realidade das pessoas LGBTQI+ durante a velhice. Por medo da discriminação e do preconceito, mulheres lésbicas, bissexuais, transexuais e travestis correm o risco de adiar as consultas e de procurar serviços médicos apenas em emergências, segundo Valéria Fátima da Rocha, psicóloga e membro da ONG Eternamente Sou, centro de referência e convivência para idosos LGBT localizado em São Paulo.

Isso resulta em falta de informação. “De forma equivocada, muitas mulheres acreditam que, por se relacionarem com outras mulheres, não necessitam de exames preventivos e tratamento para o câncer de mama e colo de útero ou infecções sexualmente transmissíveis.” Os atendimentos muitas vezes têm como base os relacionamentos heterossexuais e a ideia de sexo ligado à reprodução, segundo a psicóloga. “Não há orientação de como fazer sexo seguro e uso do preservativo feminino, por exemplo.”

Outros relatos de membros da ONG apontam falta de sensibilidade dos profissionais e desrespeito em relação ao nome social e aos pronomes adequados. “Outro problema: uma mulher trans que não fez a cirurgia de redesignação sexual vai precisar de um médico com especialidade em urologia. Uma participante do grupo relatou a experiência de ter ficado seis meses esperando a vaga pelo SUS (Sistema Único de Saúde), porém o médico recusou-se a atendê-la alegando que ‘não se sentia à vontade’.”

Além das relações entre médicos e pacientes, a discriminação e o preconceito para essa parcela da população envolvem toda a sociedade. “As mulheres lésbicas e trans precisam sair do imaginário coletivo de pornografia e de sexo fácil e frágil para ganhar o respeito e dignidade. Na velhice, isso aparece em forma de desprezo, invisibilidade e doenças emocionais e físicas.”

A militância e o engajamento político também estiveram presentes durante toda a vida de Thina Rodrigues, 57, presidente da Associação de Travestis do Ceará (Atrac). Há quatro décadas vivendo em Fortaleza, após ter sido expulsa da casa da família, no município de Brejo Santo, tem uma trajetória de atuação em prol dos direitos das pessoas travestis e transsexuais. Já viu avanços, mas teme retrocessos.

Como conquistas, cita o reconhecimento do nome social e a retificação do prenome e do gênero no registro civil sem necessidade de autorização judicial, cirurgia de redesignação sexual ou tratamento hormonal. A última foi decisão do Supremo Tribunal Federal (STF) regulamentada no Provimento nº 73, de 28 de junho de 2018.

“Isso é um dos avanços principais na classe de travestis e transsexuais. O que nos preocupa é que estamos vivendo um retrocesso na vida e na política, perdendo os direitos, mas mesmo assim a nossa luta continua. Estamos tentando inserir as meninas travestis e transsexuais no mercado de trabalho”, afirma.

Thina sente o passar do tempo no corpo, nas dores, nas rugas e no cansaço da idade. Em meio à rotina agitada, que começa às cinco da manhã e passa por ônibus lotados para ir e voltar do trabalho, tem a certeza de que a luta não acabou, mas o futuro ainda é incerto.

“Já sinto meu corpo envelhecido, mas a minha força ainda continua a mesma. (...) Eu me preocupo porque não tenho uma moradia própria, não tenho família. E, muitas vezes pergunto a Deus: ‘O que será da minha vida? Que ramo eu devo seguir? Qual a luz que eu tenho que seguir?’ Então, é um tabu muito grande, principalmente para as meninas travestis que estão em uma idade avançada e são soropositivo”, conta Thina.

 

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E.L.A.S. - Liberdade para envelhecer

Série de reportagens investiga o processo de envelhecimento feminino a partir da experiência de quatro mulheres a partir de 50 anos.