As horas parecem passar de forma diferente na casa de Virgínia Fukuda, 73. Talvez por conta da distância dos movimentados polos comerciais de Fortaleza, da arquitetura com toques orientais — incomuns na maioria das casas na Cidade — ou da conversa embalada pelo tom de voz tranquilo da assistente social aposentada e pelo cantar de pássaros no jardim, o relógio parece demorar mais a avançar.
Após 28 anos de atuação na área de habitação popular, três deles em São Paulo e 25 em Fortaleza, Virgínia decidiu retomar um conhecimento antigo. Voltou ao bordado, prática que conheceu ainda pequena, e aprendeu a desenhar para aprimorar as criações.
“Quando comecei, tinha amigas que não gostavam de me ver bordando, diziam que eu parecia uma velhinha”, conta, desmentindo o estereótipo que ronda a atividade. “Hoje, temos um monte de jovens bordando.”
Ela faz parte dos grupos Café com Bordados e Iluminuras — Literatura e Bordado, que já participou de diversas exposições coletivas e ministrou oficinas sobre a técnica. “Parece que eu não fiz outra coisa na vida. Fiz amigos, depois de mais velha, conheci muita gente bacana”, conta. Paulista residente em Fortaleza há 43 anos, mãe de dois filhos e avó de três meninos, ela gosta de viver e descobrir a capital cearense, seja sozinha ou acompanhada. “Acho que faço uma boa companhia para mim mesma”, declara.
Ir a exposições, assistir a apresentações musicais e se encontrar com amigas em cafeterias são algumas atividades que, literalmente, preenchem a agenda de Virgínia. Ao saber de um evento ou de um local que quer conhecer, toma nota. Depois, compartilha as novidades no Instagram com os mais de 600 perfis que a acompanham. “Entrei para o Instagram para dar notícia de bordado, curso, evento, e comecei a colocar também as coisas que gosto de fazer, que é show de música, teatro. Tudo que acontece, eu tô de olho, eu reposto. Me toma um tempo danado.”
Virgínia Fukuda faz parte de uma geração de mulheres que está experimentando um envelhecer diferente das anteriores. Elas cresceram em meio à mudança de paradigmas causada pela revolução sexual na década de 1970, tiveram acesso a contraceptivos, começaram a escolher se e quando teriam filhos, adentraram os muros das universidades e conquistaram mais espaço no mercado de trabalho.
“Isso tem um impacto muito grande no envelhecimento, porque são mulheres que têm independência financeira, já estão aposentadas, têm curso superior”, explica Paula Brandão, professora e coordenadora do curso de Serviço Social da Universidade Estadual do Ceará (Uece). Em tese de doutorado defendida em 2014, ela estudou o envelhecimento de mulheres da classe média de Fortaleza.
Ao se abordar esse tema, faz-se necessário considerar aspectos interseccionais — de gênero, raça e classe social —, mas a pesquisadora aponta o salto qualitativo no envelhecimento das mulheres com quem conviveu durante o estudo. “A independência e a liberdade são muito fortes, acho que são palavras-chave para interpretar esse momento que elas estão vivendo. Isso não existia antes.”
Mulheres com mais de 60 anos não se voltam mais apenas para o ambiente doméstico, necessariamente. Ir a festas, viajar, cursar especializações desejadas há tempos e/ou realizar trabalhos que antes não supriam as necessidades financeiras, por exemplo, passam a fazer parte da rotina. “Essa mulher está com know-how para decidir os caminhos da vida dela”, aponta a professora.
Essa ressignificação da velhice também é encontrada pela antropóloga Mirian Goldenberg em suas pesquisas. Uma diferença do novo modelo de envelhecimento, para ela, é as mulheres deixarem de se rotular. “(Elas) não se etiquetam, não falam: ‘Ah, agora eu fiquei velha, não posso mais transar, não posso mais namorar, não posso mais viajar’. ► Não, é até o oposto: ‘agora que eu fiquei velha é que eu vou fazer tudo que eu sempre quis fazer e não tinha tempo, não tinha coragem, não tinha dinheiro’.
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Professora titular da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e autora de diversos livros sobre o assunto, a pesquisadora resolveu trabalhar apenas com pessoas com mais de 90 anos desde 2015. Nas pesquisas, ela afirma encontrar realidades que fogem dos estereótipos existentes sobre essa faixa etária.
“Tudo que se fala da mulher mais velha não é o que eu encontro: que ela vai ficar em casa fazendo tricô ou que vai ficar só cuidando dos netinhos, que não vai ter vida própria, que vai viver só para a família ou que vai se aposentar da vida amorosa e sexual. Todos esses estereótipos são só estereótipos, porque não é nada disso que ocorre.”
No TEDx São Paulo, em novembro de 2017, ela ministrou a palestra “A Invenção de uma Bela Velhice”, e, hoje, o vídeo disponível no canal do TEDx Talks no YouTube conta com mais de 1,1 milhão de visualizações. Na conferência e no livro Liberdade, Felicidade e Foda-se!, de 2019, Mirian Goldenberg aborda a chamada curva da felicidade.
No primeiro episódio do podcast E.L.A.S. - Liberdade para envelhecer, a jornalista Regina Ribeiro recebe a coordenadora da pós-graduação em Gerontologia da Universidade de Fortaleza (Unifor), Elcyana Bezerra Carvalho, e a médica geriatra Danielle Ferreira para uma conversa sobre "o novo envelhecer" para as mulheres. Acompanhe:
Elaborada pelo economista David Blanchflower, professor da universidade Dartmouth College, nos Estados Unidos, com pessoas de 132 países — e encontrada no Brasil pela antropóloga Mirian Goldenberg —, a curva da felicidade ao longo da vida tem formato de “U”. De acordo com ela, as pessoas mais felizes são as mais jovens e as mais velhas. Por volta dos 45 anos, ponto mais baixo do gráfico, as mulheres estão mais estressadas, exaustas, deprimidas e insatisfeitas.
“É uma fase que elas reclamam muito de falta de tempo, falta de liberdade e falta de reconhecimento, porque elas fazem, fazem, fazem, e as pessoas dizem que elas não fazem mais que obrigação de mãe, de esposa, de profissional. Então, é uma fase muito difícil. E depois ocorre uma verdadeira libertação. Elas passam a usar o tempo para elas, para cuidar delas, fazer as coisas que querem fazer”, explica.
Sem depender financeiramente de maridos, elas viajam, dançam e vão a festas. “Hoje, existe um circuito, em Fortaleza, da terceira idade. Um circuito que elas frequentam assiduamente de segunda a segunda. Todos os dias da semana tem algum lugar onde essas mulheres se encontram”, afirma a professora Paula Brandão.
Além de se dedicar às linhas e à leitura, Virgínia passa as manhãs com o neto de quatro anos, na casa onde mora sozinha, e pratica caminhada e pilates regularmente. Ela reconhece que faz parte da parcela da população que pode, nessa faixa etária, realizar atividades que gosta, como viajar. “Tem gente dando um duro danado. Tem mães e avós obrigadas a dividir aquela pequena aposentadoria com uma família inteira, com os netos. Tem muita dificuldade por aí. Eu sou de uma classe média que tem privilégios, muitos privilégios.”
Conteúdo produzido em parceria com:
Série de reportagens investiga o processo de envelhecimento feminino a partir da experiência de quatro mulheres a partir de 50 anos.