Uma eleição marcada pelo acirramento, polarização e alianças inesperadas. Os números das pesquisas no segundo turno alimentaram a ansiedade de eleitores e candidatos. Evocando padrinhos políticos, torcidas de futebol e até a intercessão divina, a campanha feita nos últimos três meses revelou novas tendências e estratégias, ao passo que também expôs as fragilidades e limitações do modelo mais tradicional de propaganda.
Semanas depois, o resultado é incontestável: Evandro Leitão foi eleito prefeito de Fortaleza para governar de 2025 a 2028.
A composição de alianças para os próximos anos deve envolver acordos nacionais, reconciliações de antigos aliados e o novo poder de barganha do Centrão.
Com uma trajetória política consolidada e conhecida, o ex-presidente da Assembleia Legislativa do Ceará venceu as eleições com uma plataforma que equilibra o desenvolvimento social e econômico, alinhada com os valores progressistas e de centro-esquerda. Leitão assume com o compromisso de uma gestão focada na ampliação de políticas sociais, melhorias no transporte e na mobilidade urbana, além de um foco contínuo em saúde e educação.
Durante a campanha, Leitão defendeu a ampliação dos programas de transferência de renda e de apoio social em Fortaleza, priorizando projetos voltados para a inclusão e o combate à desigualdade.
Ele enfatizou a importância da construção de moradias populares e a regularização fundiária, visando assegurar dignidade habitacional para a população de baixa renda. Além disso, ele pretende ampliar o acesso a serviços de saúde pública e melhorar a estrutura dos hospitais e postos de saúde da cidade.
A vitória do petista representa um ponto fora da curva no resultado final das eleições municipais. O cenário atual confirmou o resultado das principais pesquisas de intenção de voto divulgadas nas últimas semanas: há um crescimento significativo no número de prefeituras que serão comandadas por legendas do chamado Centrão e da direita a partir de 2025.
Já consolidado, o resultado das eleições municipais deste ano antecipa alianças e engodos nacionais. O PSD, comandado nacionalmente por Gilberto Kassab e no Ceará por Domingos Filho, foi o partido que mais elegeu prefeitos no primeiro turno das eleições municipais deste ano. Ao todo, foram 888 eleitos, 35% a mais do que na eleição passada.
Com o crescimento expressivo, pela primeira vez em duas décadas o tradicional MDB saiu da liderança do ranking, elegendo 861 chefes do executivo municipal. O Partido Progressistas vem em terceiro lugar, com setecentas e cinquenta e duas prefeituras conquistadas.
No Ceará, o cenário é um pouco diferente e o maior destaque vai para a dissolução da hegemonia pedetista, que em 2020 fez 65 prefeituras, perdendo 60 delas em 2024. Foi o PSB de Cid Gomes e Eudoro Santana que conseguiu conquistar a marca de maior número de prefeituras, 65 das 184.
No último pleito, as cinco maiores legendas de direita e centro-direita (MDB, PP, PSD, PSDB e DEM) conquistaram 3.223 mil prefeituras em todo o país. Foi o equivalente a 57% de todas as prefeituras do Brasil. Neste ano, as cinco legendas no campo da direita com mais prefeituras venceram em 3.613 municípios, o equivalente a 64% de todas as cidades brasileiras.
O crescimento é explicado em parte, pelo que alguns especialistas classificaram como uma espécie de “separação” entre a direita tradicional e a direita bolsonarista. A cisão não é marcada por uma total ruptura com a liderança de Jair Bolsonaro, mas sim por um certo distanciamento em relação ao ex-presidente à medida em que boa parte dos candidatos entendem que as eleições municipais giram em torno de temas concretos sobre a vida nas cidades e menos sobre temas político-ideológicos.
O doutor em Ciência Política e diretor do Ipespe Analítica, Vinícius Alves, disse que, historicamente, as legendas de direita levam mais vantagem que as da esquerda em eleições municipais. Um dos motivos, segundo ele, é o maior número de partidos de direita no Brasil em comparação com os rivais à esquerda.
Alves disse ainda que um dos indícios de que a vitória da direita não pode ser atribuída somente ao bolsonarismo é o fato de que algumas das legendas mais vitoriosas não são aquelas mais ligadas diretamente ao ex-presidente.
“É importante não colocar toda a direita no colo do Bolsonaro. O que as pesquisas indicavam era um crescimento de legendas como o União Brasil, PSD e PL. São partidos de direita ou centro-direita que são diferentes entre si. O União Brasil e o PSD, por exemplo, têm cargos no governo do presidente Lula”, disse Alves.
Os acordos da base federal também foram materializados na campanha de Fortaleza, onde o PSD ocupa a vaga da vice-prefeitura com Gabriella Aguiar e o União Brasil apoiou, institucionalmente, o novo prefeito. Já em Caucaia, o governador Elmano de Freitas reforçou que apesar de apoiar e se engajar na campanha de Catanho, a vitória de Naumi Amorim, também do PSD, configura uma “vitória da base aliada”.
A doutora em Ciência Política pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ) e coordenadora do projeto Monitor do Debate Público, Carolina de Paula, afirmou que os “motores” das eleições municipais são diferentes dos de uma eleição presidencial e que, por isso, a polarização política que marcou as disputas de 2018 e 2022 acabam tendo menor peso.
Segundo ela, em suas pesquisas os eleitores apontam a identificação partidária ou as pautas ideológicas como fatores secundários na escolha do candidato em uma eleição municipal.
“A eleição municipal é mais ligada a fatos concretos e a políticas públicas que afetam a vida das pessoas na ponta quando você pergunta aos eleitores sobre ser de esquerda ou de direita, isso não aparece como algo determinante na escolha dos candidatos”, disse a especialista.
"Bolsonaro teve um papel importante na consolidação da direita no Brasil, mas ao mesmo tempo, o seu apoio se mostrou tóxico em alguns casos"
Para Carolina, à medida em que a identificação político-partidária passa a ter menos relevância na escolha de um candidato a prefeito ou a vereador, o peso do bolsonarismo como fator de influência de voto passa a ser relativizado.
“Bolsonaro teve um papel importante na consolidação da direita no Brasil, mas ao mesmo tempo, o seu apoio se mostrou tóxico em alguns casos. Inclusive, houve candidatos de direita que não se declararam bolsonaristas com todas as forças por ficarem com receio de perder o eleitor de centro. Em alguns segmentos, há uma forte rejeição a Bolsonaro”, disse.
Essa rejeição também tem um perfil muito claro. A pesquisa O POVO / Datafolha divulgada no dia 10 de outubro mostrou que André Fernandes era o mais rejeitado entre as mulheres, negros e católicos. Para a professora Nazaré Soares do curso de Gestão de Políticas Públicas da Universidade Federal do Ceará e coordenadora do Núcleo de Estudos e Pesquisa em Gênero, Idade e Família a importância do voto feminino foi decisiva nessa eleição.
"Acredito que o primeiro campo mais importante, no sentido de pensar a política pública como um todo, são as políticas voltadas para o direito das mulheres: o direito à vida, à alimentação, à moradia, à segurança e ao bem-estar de suas crianças. Pensar na questão das mulheres é, na verdade, pensar na sociedade como um todo"
A vice-prefeita eleita Gabriella Aguiar também disse ter certeza que o voto feminino foi decisivo para a vitória da chapa.
"Eu não tenho dúvida que foram as mulheres de Fortaleza que deram a Evandro e Gabriela a oportunidade de cuidar das pessoas, cuidar da cidade de Fortaleza com empatia, com respeito, valorização da educação, da ciência e, sobretudo, com muita humildade", disse em coletiva de imprensa.
Como um expoente do projeto conservador e bolsonarismo, a derrota de André Fernandes pode significar um impacto severo para os planos do PL. Para o cientista político e professor do Ibmec Adriano Cerqueira, o resultado das eleições municipais demonstra uma consolidação da direita como um movimento político legítimo no Brasil, mas está isolado em muitas maneiras.
Assim, o partido comandado por Costa Neto força política suficiente para reverter a situação do ex-presidente Bolsonaro, nem para eleger um novo presidente da República. Assim, a intenção do presidente do PL é atrair o Centrão. O movimento, no entanto, é encarado como um problema por alguns segmentos dentro do partido.
Uma afirmação feita pelo próprio Costa Neto reforça esse entendimento. “Nós temos um problema sério. O nosso adversário fez cinco presidências da República. Ou nós aumentamos a nossa base, trazendo o pessoal do centro que defende as pautas da direita, ou nós perdemos a eleição”, disse Costa Neto em entrevista concedida ao jornal O Estado de S. Paulo, na última quinta-feira, 24.
Além do pleito municipal, o contexto de eleições no Congresso - para a presidência das Casas Legislativas - também tem poder de influenciar no andamento, ou não, das propostas. Na opinião de Cerqueira, o presidente do PL aproveita o momento para emplacar a pauta da anistia para Bolsonaro.
“O Valdemar Costa Neto, já trouxe essa questão da anistia para o Bolsonaro justamente para aproveitar esse momento, no sentido de tentar construir um discurso, de superação da polarização, de volta à normalização política. Isso passa, necessariamente, por um processo de anistia em relação às pessoas envolvidas nos atos de 8 de janeiro”, disse Cerqueira.
Para Cerqueira, os partidos que compõem o Centrão, em especial o MDB, o PP e o União Brasil, não devem se posicionar de forma coesa. “Vai depender de posições mais individuais. A postura de cada membro, e não do partido como um todo, é que deve prevalecer”, avalia o cientista político.
Com exclusividade ao O POVO+, a vereadora eleita Mari Lacerda (PT) afirmou que há espaço para dialogar com outros partidos e forças políticas.
"Embora tenhamos uma direita fortalecida, o PT também ampliou o número de vagas e existe um número relevante de vereadores eleitos pelo PSB, PDT e entre outros partidos que possuem diálogo com o nosso campo", afirmou.
Na visão da parlamentar, existem diversas pautas que são de interesse comum da cidade, com amplo apelo popular, que devem ganhar espaço e unir os diferentes campos.
O vereador Gabriel Aguiar (Psol) não descartou a possibilidade de apoios ao governo Evandro Leitão. Em entrevista coletiva concedida a estudantes de jornalismo da Universidade de Fortaleza, o parlamentar reeleito afirmou que não pretende compor a gestão pessoalmente. No entanto, tendo em vista o que aconteceu na eleição do governador Elmano, disse que o PSOL poderá liberar novamente os filiados para integrar a administração municipal.
Um futuro ainda incerto é o do PDT e dos vereadores da base aliada do atual prefeito, Sarto Nogueira e integrantes do grupo político liderado pelo ex-ministro Ciro Gomes e pelo ex-prefeito Roberto Cláudio. Muitos declararam apoio à André Fernandes e indicaram que serão opositores à nova gestão petista. Alguns membros da legenda ouvidos por esta reportagem afirmam que, na ausência de um consenso, poderão formalizar um pedido de expulsão dos membros que apoiaram o candidato bolsonarista.
Para a vereadora Mari Lacerda, nem tudo está peridido. "Em Fortaleza, temos diversas divergências de projeto para a cidade, mas é importante observar que o PDT se dividiu nos apoios neste segundo turno. Temos um canal já aberto com aqueles que apoiaram o Evandro e também vamos conversar com os que tiveram a postura de adesão ao bolsonarismo que, no meu entender, foi mais pragmática do que programática", declarou a parlamentar.
Com a derrota, o PL deve buscar fortalecer as alianças desenhadas no segundo turno e consolidar a atuação na oposição na Câmara Municipal de Fortaleza. Uma das vereadoras mais bem votadas da Capita, Bella Carmelo (PL) destacou que irá dar continuidade aos projetos do esposo, o deputado estadual Carmelo Neto.
"Fui a vereadora mais votada entre os que não tinham mandato e isso é uma expressão daquilo que o Carmelo representa para o povo de Fortaleza. As pessoas olham para ele e sabem que podem confiar, que tem alguém para trabalhar por elas. Esses votos são a expressão disso e é o que a gente vai fazer, uma continuidade do Carmelo, foi um voto de esperança e de confiança mesmo", disse ao O POVO.
Questionada sobre o que apresentará de diferente, em relação à passagem de Carmelo pela Câmara Municipal de Fortaleza, Bella reforçou a ligação com o cônjuge. "A Bella é a mesma coisa do Carmelo. As pessoas votaram em mim confiando nessa continuidade do trabalho dele. Fiscalizando, denunciando e estando do lado do povo, nas ruas. Não só em gabinete, tribuna, mas na rua, perto do povo", concluiu.
Já a colega, Priscilla Costa, que vai para o terceiro mandato conquistado nas urnas, criticou Evandro Leitão (PT), e disse que aliados do petista representam o grupo “que trouxe retrocesso para a cidade de Fortaleza quando esteve à frente da gestão nesta cidade”.
Priscilla Costa garantiu que será um nome da oposição, mas ponderou que pretende avaliar cada projeto, observando se é “para o bem da população”.
“Lá no parlamento, nós nos posicionamentos por leis, por projetos, cada projeto é avaliado. Se é para o bem da população, sempre terá o meu apoio, tem sido assim e por isso o reconhecimento que a gente vê nas urnas. O reconhecimento de alguém que está ao lado do povo”, completou.
Já o candidato derrotado, André Fernandes, discursou no começo da noite após o resultado ser divulgado pelo Tribunal Superior Eleitoral. "Fortaleza nunca viu uma campanha tão bonita e animada quanto a nossa", disse sob aplausos.
"O meu recado aqui é que não é momento de tristeza, de lamentação. Não é momento de baixar a cabeça, Fortaleza, porque ao lado de cada um de vocês, por mais que tenha sido esse o resultado, nós já fizemos história", disse o deputado federal no evento realizado para apoiadores.
Por Nazaré Soares*
Quando pensamos no acesso à Prefeitura de Fortaleza, precisamos olhar para as agendas públicas reais, aquelas que não se baseiam apenas em retórica. É importante refletir sobre o que foi desenvolvido no passado e o que está sendo proposto nas agendas dos candidatos e suas alianças.
Devemos nos perguntar: quem está comprometido com o direito das mulheres? Quem combate o feminicídio e promove uma visão de segurança pública mais ampla, que vai além do armamentismo e da defesa de possuir uma arma, o que apenas gera mais violência? Quem está preocupado com a educação infantil e básica, compreendendo-a como um papel fundamental do Estado e não apenas como uma ferramenta de interesse privado? Quem está pensando no desenvolvimento econômico de maneira coletiva e não apenas para benefício de pequenos grupos e interesses individuais?
Precisamos também de alguém que proponha uma segurança pública que proteja e não tire a vida das juventudes negras. E no campo da saúde, quem traz uma visão inovadora, que valoriza a ciência e entende as campanhas de vacinação como fundamentais para reduzir custos no Sistema Único de Saúde (SUS),
Assim, é essencial observar o passado, analisar o presente e tomar decisões informadas agora. Mais do que discursos, é necessário avaliar as agendas públicas reais que vêm sendo conduzidas ao longo dos anos. Minha fala vai justamente nesse sentido: olharmos para o que foi feito e o que se propõe, para que possamos fazer escolhas conscientes no presente.
Nazaré Soares é professora do curso de Gestão de Políticas Públicas da UFC, doutora em Administração e Controladoria e coordenadora do Núcleo de Estudos e Pesquisas em Gênero Idade e Família (Negif)
Este site contém reportagens sobre as eleições municipais de 2024 em Fortaleza, no Ceará e no Brasil, abordando diversas temáticas