Enquanto as discussões sobre a regulamentação da maconha medicinal continuam travadas no Congresso Nacional, o Estado brasileiro enfrenta um custo crescente: o impacto da judicialização de pacientes que exigem acesso ao tratamento à base de cannabis.
Atualmente, o Brasil gasta mais de R$ 100 milhões por ano com processos judiciais relacionados ao tema, conforme revela o Anuário da Cannabis Medicinal no Brasil. Obtido pelo O POVO+, o relatório fornece dados sobre o tamanho e o faturamento desse setor em expansão, além de destacar o aumento no número de pacientes.
Só em 2024, o mercado de cannabis medicinal no Brasil movimentou R$ 853 milhões, o que representa um crescimento de 22% em relação ao ano anterior. Segundo as projeções do Anuário, o setor poderá alcançar a marca de R$ 1 bilhão até o final de 2025.
Outro dado relevante divulgado pelo estudo é que já são mais de 672 mil pacientes brasileiros utilizando tratamentos com cannabis como medicamento — um aumento de 56% em comparação com o ano passado. A cannabis medicinal já está presente em 80% dos municípios do Brasil, evidenciando a crescente aceitação da planta como uma alternativa terapêutica.
Por outro lado, a falta de uma regulamentação clara e abrangente tem colocado obstáculos ao acesso aos medicamentos produzidos com compostos da planta de maconha.
Embora a importação represente 47% da via de acesso, ela torna o tratamento inacessível para muitos pacientes, colocando a judicialização como a única alternativa viável para garantir o direito à saúde. Além de elevar os gastos do Estado, isso também prolonga o sofrimento de quem necessita do tratamento.
Ana Carla Basto, paciente e presidente da Associação Medicinal do Ceará (Amece), relata as dificuldades enfrentadas pelos pacientes que dependem do sistema público de saúde. Segundo ela, o maior obstáculo é de ordem financeira, uma vez que os custos das terapias canabinoides ainda são bastante elevados, especialmente em um mercado que está em processo de estruturação no Brasil.
“Hoje, os pacientes mais vulneráveis enfrentam dificuldades tanto para conseguir uma prescrição médica, quanto para encontrar médicos capacitados ou dispostos a prescrever terapias canabinoides, especialmente no SUS”, explica Ana Carla.
“Quando não conseguem, muitas vezes precisam recorrer à consulta particular, que varia de R$ 300 a R$ 800. Ou seja, se o paciente já tem dificuldades para obter a receita que garante o acesso ao medicamento, imagine o que representa a compra do remédio importado…”, reflete.
Nesse cenário, associações como a Amece desempenham um papel crucial ao preencher a lacuna enfrentada pelos pacientes que não conseguem acessar os tratamentos via SUS, seja para obter a consulta, seja para conseguir a medicação. “Atualmente, só é possível conseguir tratamento pelo SUS se o paciente judicializar o caso, movendo uma ação contra o Estado para garantir o direito ao medicamento”, afirma a presidente.
O Anuário da Cannabis revela que o Brasil já gasta mais de R$ 100 milhões por ano com a judicialização de produtos derivados da cannabis. Em 2023, o valor era menor. No episódio 4 da série de reportagens “Uso medicinal da maconha no Ceará”, o OP+ mostrou que as compras de medicamentos à base de cannabis somaram R$ 80 milhões em 2023.
No Ceará, os gastos do Governo do Estado alcançaram R$ 726 mil para atender a 51 pacientes, o que resulta em uma média de R$ 14,2 mil por pessoa.
O advogado especializado na Lei de Drogas, Ítalo Coelho, destaca o papel do Poder Judiciário em garantir o direito à saúde diante da inércia do Poder Legislativo. Ele explica que, embora a importação de produtos à base de cannabis seja permitida pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), o processo de aquisição ainda é oneroso e burocrático, o que leva muitos pacientes a recorrerem aos tribunais.
“O Judiciário é sempre chamado para resolver esses problemas, mas o mais correto seria o Legislativo ter leis e regulamentações, por meio do Executivo também, para ter o acesso mais facilitado aos pacientes. Até porque essa via do judiciário é mais cara tanto para o paciente, quanto para o Estado, que muitas vezes é obrigado a pagar quantias mais altas em relação aos remédios produzidos no Brasil”, afirma.
Ainda segundo Ítalo Coelho, a falta de regulamentação específica e a escassez de opções de tratamento pelo SUS criam um cenário de insegurança, colocando as questões de saúde nas mãos de instâncias jurídicas que, a princípio, deveriam ser tratadas por políticas de saúde pública.
“O Estado é chamado para resolver uma questão de saúde que está na esfera penal por conta de uma regulamentação mal feita, quando poderia estar julgando outras causas", declara o especialista.
“As supremas cortes têm tido um papel fundamental em uniformizar as questões voltadas para a cannabis, como o entendimento para liberar o habeas corpus para cultivo pessoal, industrial e medicinal, e também sobre a descriminalização da maconha. Ainda bem que existe o judiciário para a sociedade recorrer aos seus direitos.”
De acordo com o Anuário da Cannabis Medicinal, o setor medicinal no País alcançou números recordes em 2024, movimentando R$ 853 milhões, crescimento de 22% em relação a 2023, quando o faturamento foi de R$ 699 milhões.
Esse avanço reflete a consolidação de uma base regulatória mais robusta, apesar dos desafios ainda presentes. Também indica o aumento da demanda, impulsionada pela diversificação de produtos e pela entrada de empresas internacionais.
Elaborado pela empresa Kaya Mind, o Anuário informa que ocorreu ampliação da oferta de produtos derivados da cannabis no Brasil. São 2.180 produtos diferentes, nas mais variadas formas farmacêuticas, dentre elas óleos, cápsulas, sprays e produtos tópicos.
No total, 413 empresas internacionais exportaram seus produtos para o Brasil em 2024, aumentando as linhas terapêuticas e atendendo a necessidades mais específicas dos pacientes.
“Essa diversidade de produtos permite que cada vez mais brasileiros tenham acesso a soluções personalizadas para suas necessidades”, destaca Maria Eugenia Riscala, CEO da Kaya Mind.
Ela é acompanhada por Thiago Cardoso, chefe de inteligência da empresa, que ressalta o potencial do Brasil no cenário global: “A diversidade de produtos e o crescimento regulatório estão transformando o mercado de cannabis medicinal no Brasil em um dos mais dinâmicos da região. Esse avanço permite que mais pacientes encontrem soluções terapêuticas adequadas às suas necessidades e posiciona o Brasil como um mercado competitivo e inovador no cenário global”, declara.
A cannabis medicinal tem ganhado espaço no tratamento de diversas condições clínicas, mas ainda enfrenta barreiras relacionadas ao acesso e ao preconceito.
Em entrevista ao O POVO+, o médico especialista Eugênio Franco, pós-graduado em Cannabis Medicinal pela Universidade São Judas Tadeu (São Paulo), aponta que a cannabis vem se consolidando como uma substância segura, desde que respeitadas algumas restrições.
Entre elas, o histórico pessoal ou familiar de transtornos psiquiátricos, além de limitações em casos de gestação. Eugênio destaca aplicações comprovadas no controle de convulsões em epilepsias refratárias.
Segundo ele, outros benefícios incluem melhorias em quadros de insônia, ansiedade, dores crônicas e sintomas associados a doenças neurodegenerativas, como demências e Parkinson. Apesar dos avanços clínicos, o custo elevado dos medicamentos disponíveis no Brasil ainda limita o acesso.
“Comparado há quatro anos, já houve redução nos valores de muitos produtos, mas a importação ainda é mais barata dependendo da composição do óleo. Além disso, há canabinoides menos frequentes, como cannabigerol e canabinol, que possuem indicações específicas, mas não estão disponíveis no País”, explica. Ele também cita a possibilidade de associações de compostos, que têm custo inferior aos produtos vendidos em farmácias.
Recentes avanços regulatórios, como a inclusão das inflorescências de cannabis na Farmacopeia Brasileira e a autorização para cultivo industrial de cânhamo pelo Superior Tribunal de Justiça (STJ), prometem ampliar o acesso e reduzir custos. Entretanto, o médico ressalta que, para muitas famílias de baixa renda, os preços permanecem inacessíveis.
Nesse contexto, ele defende a regulamentação do autocultivo, que poderia tornar o tratamento viável para mais pacientes, além de reduzir os custos para o sistema público de saúde.
Um segundo obstáculo importante é o preconceito histórico existente, tanto social quanto médico, em torno da cannabis. “A exclusão dos povos que usavam a planta e um século de proibição baseada em mentiras consolidaram a imagem de que a cannabis é uma droga extremamente nociva”, diz.
Ele aponta a contradição ao comparar a cannabis com os medicamentos prescritos no Brasil, como o clonazepam, medicamento mais consumido no Brasil e associado a uma alta taxa de dependência e overdose.
O especialista defende também que há a necessidade de informação e conscientização na classe médica. “É importante que os profissionais entendam o que são fatos e o que são preconceitos sobre a cannabis. Muitos pacientes poderiam se beneficiar, mas não têm acesso a tratamento adequado por conta da falta de conhecimento ou por preconceitos que ainda permeiam a área da saúde”, conclui.
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Série de reportagens traz o debate sobre a regulamentação do uso da maconha medicinal