Logo O POVO+
Rosalind Lee, a primeira autora ignorada pelo Nobel de Medicina 2024
Reportagem Seriada

Rosalind Lee, a primeira autora ignorada pelo Nobel de Medicina 2024

O primeiro estudo indicado como pesquisa chave para o Nobel de Medicina de 2024 tem uma mulher, Rosalind Lee, como primeira autora, mas apenas os autores homens receberam os louros. Cientistas debatem se houve ou não misoginia na premiação
Episódio 4

Rosalind Lee, a primeira autora ignorada pelo Nobel de Medicina 2024

O primeiro estudo indicado como pesquisa chave para o Nobel de Medicina de 2024 tem uma mulher, Rosalind Lee, como primeira autora, mas apenas os autores homens receberam os louros. Cientistas debatem se houve ou não misoginia na premiação
Episódio 4
Tipo Notícia Por

 

 

Em 1962, o Nobel de Fisiologia e Medicina laureou os pesquisadores Maurice Wilkins, James Dewey Watson e Francis Crick pela descoberta da forma de dupla-hélice do DNA. A premiação ocorreu apenas quatro anos após a morte de Rosalind Franklin, a real responsável por descobrir o formato do DNA e fotografá-lo pela primeira vez — imagem essa que foi publicada sem a autorização dela pelos nobéis.

O caso virou um símbolo da misoginia "Mais tarde, Watson publicou o livro "A Dupla Hélice", no qual chama Rosalind de "beligerante, emocional e incapaz de interpretar os próprios dados"." na pesquisa científica e na premiação do Nobel, que, apesar de não premiar ninguém postumamente, sequer mencionou o nome de Rosalind Franklin. Sessenta e dois anos depois, a história se repete.


 

MicroRNA: a descoberta

Em 2024, o Nobel de Fisiologia e Medicina foi entregue aos pesquisadores Victor Ambros e Gary Ruvkun, pela descoberta do microRNA e do papel dele na regulação genética pós-transcricional. O microRNA é basicamente uma minúscula fita de RNA responsável por controlar a atividade dos genes.

Todas as células do corpo humano compartilham exatamente o mesmo material genético, o que é bem estranho, já que elas são diferentes entre si. A função e a forma de uma hemácia, por exemplo, é totalmente distinta da função e forma de uma célula muscular. Por isso, por muito tempo os pesquisadores se questionaram o quê era responsável diferenciar as células. É aí que entra o microRNA.

Segundo Mellanie, o processo de pesquisa se deu a partir do estudo de genes lin-4 e lin-14 em um verme chamado C. elegans. Os pesquisadores estudaram duas linhagens de C. elegans com mutações especificas nos genes lin-4 e lin-14.(Foto: Society for Mucosal Immunology)
Foto: Society for Mucosal Immunology Segundo Mellanie, o processo de pesquisa se deu a partir do estudo de genes lin-4 e lin-14 em um verme chamado C. elegans. Os pesquisadores estudaram duas linhagens de C. elegans com mutações especificas nos genes lin-4 e lin-14.

De acordo com a biomédica Mellanie Dutra, pesquisadora e professora da Escola de Saúde da Universidade do Vale do Rio dos Sinos, o microRNA é um controlador dos nossos genes. Ele tem a habilidade de regular os genes para, com exatamente o mesmo material genético, criar uma variedade de formas e funções — especialmente na produção de proteínas. É como ter um número limitado de peças de Lego (digamos, uma peça vermelha, azul e amarela) e com elas fazer várias combinações diferentes, ativando ou desativando as peças, e criando coisas distintas.

“O uso de microRNA pode auxiliar na descoberta de marcadores sanguíneos (ou em outros tecidos) para diagnóstico e monitoramento de doenças, bem como no uso terapêutico, modulando a regulação sobre nossos genes”, explica Mellanie. “Isso tem aplicação nos estudos com transtornos do neurodesenvolvimento, câncer, doenças neurológicas, metabólicas, autoimunes, entre tantas outras possibilidades.”

Chegar a esse entendimento demandou muita pesquisa básica, especialmente de dois laboratórios que trocaram figurinhas ao estudar os microRNAs com o verme C. elegans: o de Ambros e o de Ruvkun. No entanto, a primeira pesquisa chave destacada pelo próprio prêmio Nobel é de 1993, chamada The C. elegans heterochronic gene lin-4 encodes small RNAs with antisense complementarity to lin-14 e publicada na revista Cell. Como primeira autora está ela, Rosalind Lee.

 

 

Mais uma Rosalind deixada de lado

A biomédica Rosalind “Candy” Lee é a autora principal da pesquisa basilar sobre o microRNA. Ao lado dela, assina a geneticista Rhonda L. Feinbaum, com co-autoria do Nobel Victor Ambros, marido de Rosalind. De todas as pesquisas referenciadas pelo comitê, na página de informações avançadas, Rosalind aparece como autora principal de três — a mesma quantidade de autorias principais de Ambros e Ruvkun.

Victor Ambros e Rosalind Lee imediatamente após receberem notícia do prêmio Nobel.(Foto: Foto de arquivo pessoal cedida ao Prêmio Nobel)
Foto: Foto de arquivo pessoal cedida ao Prêmio Nobel Victor Ambros e Rosalind Lee imediatamente após receberem notícia do prêmio Nobel.

Ela e Victor receberam vários prêmios pelo estudo com C. elegans e microRNA durante suas trajetórias. Um deles foi em 2003, quando ganharam em conjunto com outros dois laboratórios o Prêmio Newcomb Cleveland, entregue pela revista Science.

“As pessoas trabalharam durante anos em genes de várias outras espécies com fenótipos claros, mas não conseguiram cloná-los”, disse Rosalind em entrevista à Faculdade de Medicina Dartmouth. "Foi muito emocionante ouvir [dos outros laboratórios] que eles determinaram que seus genes eram microRNAs depois de verem os nossos artigos. Isso abriu uma porta que ninguém percebeu que estava lá."

Em qualquer entrevista, Rosalind aparece como um nome crucial para o sucesso da descoberta. A pesquisa destacada pelo Nobel, da qual é autora principal, tem 18.431 citações, uma maneira de avaliar o impacto do estudo. Quando a notícia deste ano veio à tona, Rosalind disse à UMass Chan Medical, onde é pesquisadora sênior, que a sensação era “simplesmente maravilhosa”.

“Para nós, [a sensação é a de que] nós realizamos algo. Nós contribuímos para o conhecimento científico. Eu acho que é o que todos os cientistas querem fazer, ter o seu trabalho como algo pelo qual outros podem construir e descobrir coisas, e as coisas que as pessoas têm conseguido fazer com o microRNA são impressionantes.”

Por ser alguém tão envolvida na construção desse conhecimento científico, vários pesquisadores passaram a questionar nas redes sociais a ausência de Rosalind como uma das laureadas. Afinal, o Nobel permite a premiação de até três pessoas.

Mas a revolta ficou maior quando o comitê publicou nas redes sociais uma foto de Victor ao lado de Rosalind com a legenda: “Parabéns ao nosso laureado em medicina de 2024, Victor Ambros. Esta manhã ele comemorou a notícia de seu prêmio com sua colega e esposa Rosalind Lee, que também foi a primeira autora do artigo 'Cell' de 1993 citado pelo Comitê do Nobel.”

Victor e Rosalind, em 2003, no Departamento de Genética da Dartmouth.(Foto: Joseph Mehling)
Foto: Joseph Mehling Victor e Rosalind, em 2003, no Departamento de Genética da Dartmouth.

“O post no X (ex-Twitter) pegou bem mal”, concorda Letícia Magpali, bióloga, professora e divulgadora científica que trabalha com genética e evolução. “Dentro da minha bolha tem muita gente que ficou incomodada”, diz, incluindo a si mesma, que publicou um vídeo questionando como a primeira autora do artigo de destaque da premiação foi deixada de fora do “pódio”.

“Essa publicação foi uma pachorra, pra mim a palavra é essa”, define Ana Arnt, bióloga, professora da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e coordenadora do Blogs de Ciência da Unicamp. “Aquilo ali é fazer troça com a nossa cara.”

Para as cientistas, a mensagem passada pelo Nobel é de que as mulheres não têm espaço para serem reconhecidas pelas suas pesquisas. O número de mulheres laureadas pelas categorias de ciências do Nobel é minúsculo e há diversos casos de cientistas esquecidas mesmo quando estudos encabeçados ou produzidos por elas são premiados — foi a situação de Rosalind Franklin, ou o quase caso de Marie Curie, que só recebeu o primeiro prêmio por insistência do marido frente ao comitê.

“A legenda deles sacramenta isso: não importa quem mais produziu a pesquisa, quem vai ganhar é o homem. E eu não tô questionando se a Rosalind Lee tá feliz ou tá triste. Não é essa a questão”, pontua Ana. Ao que Letícia complementa: “Não é só por causa dela. Que tipo de perspectiva isso dá pras mulheres cientistas? Completamente invisibilizaram ela. Tudo bem, ela não ganhou, mas o fato de nem mencionarem ela… Ela é só a esposa do cara que ganhou.”

 

 

Debate nas redes: Rosalind deveria ou não receber o Nobel?

Nas redes sociais, alguns pesquisadores apontam que Rosalind era a pesquisadora-assistente do projeto, enquanto Victor era o chefe do laboratório. Nesse cenário, ela teria atuado no esforço “braçal” da pesquisa, enquanto Ambros conduzia a parte teórica do estudo.

No entanto, Letícia Magpali reforça que as guidelines (instruções) de todas as revistas científicas de renome, como Nature e Elsevier, instruem que o primeiro autor deve ser aquele que fez a maior parte do trabalho e também tenha contribuído significativamente no conteúdo intelectual. Há também “o viés do orientador”, diz, no qual imagina-se que o orientador é o líder intelectual do trabalho, mas, na prática, os autores pós-graduandos contribuem tanto quanto.

“Grande parte da ciência mundial é feita por pós-graduandos, e muitas ideias incríveis da ciência vêm dessa galera”, pontua Ana Arnt.

Membros do laboratório Ambros em comemoração. A partir da esquerda, Charles Nelson, PhD; Rosalind Lee; Victor Ambros; Oscar Duan; e Reyyan Bulut.(Foto: Susan E.W. Spencer)
Foto: Susan E.W. Spencer Membros do laboratório Ambros em comemoração. A partir da esquerda, Charles Nelson, PhD; Rosalind Lee; Victor Ambros; Oscar Duan; e Reyyan Bulut.

Outros também destacam que Ambros e Ruvkun foram premiados pela completude do trabalho que começou em 1993 até os dias presentes. “Lee só esteve diretamente envolvida nesse inicial — mas muito consequente — paper”, postou um usuário na rede social Bluesky. “Lee ajudou a descobrir a existência do microRNA. Ambros e Ruvkun descobriram durante muitos anos o que o microRNA faz. Ao que tudo indica, o Nobel é explicitamente para a descoberta e a função do microRNA.”

Na mesma conversa, outro usuário apontou que Rosalind Lee tem autoria em pelo menos 20 pesquisas sobre o microRNA e o C. elegans, com mais de 18.617 citações, das quais 524 são de alto impacto. Ela é a autora principal em cinco dessas pesquisas. Na página do Nobel, além da pesquisa principal, a academia também cita nas referências bibliográficas outros dois estudos nos quais Lee é a primeira autora. Ambros e Ruvkun aparecem, cada, como primeiros autores de três papers citados pelo Nobel; ou seja, a mesma quantidade de Lee.

Casal Ambros e Lee (ao fundo), no campus da universidade após notícia do Nobel.(Foto: Susan E.W. Spencer)
Foto: Susan E.W. Spencer Casal Ambros e Lee (ao fundo), no campus da universidade após notícia do Nobel.

Em entrevista ao El País, Pilar Martín, especialista em microRNA e pesquisadora do Centro Nacional de Pesquisa Cardiovascular, explicou que Ambros e Ruvkun serem apontados como últimos autores indica que eles são os líderes da pesquisa. Segundo ela, o questionamento seria “barulho”:

“A biomedicina não é uma ciência que se faz sozinho; ela requer muito trabalho de vários pesquisadores que contribuem com os experimentos, mesmo que eles não sejam os que criaram as pesquisas. É assim que a ciência funciona; você aprende a conduzir uma pesquisa ao executar os experimentos criados por seus supervisores.”

É claro, a ciência é obrigatoriamente um trabalho em equipe. Se todos os pesquisadores com autoria recebessem um Nobel, faltaria dinheiro. No entanto, a discussão parece rodar em torno do quão influente foi o trabalho intelectual de Rosalind na descoberta da existência do microRNA e no entendimento de como ele funciona.

“Ciência não se faz sem a supervisão e a orientação. O que não quer dizer que intelectualmente eles sejam os únicos a contribuir. E esses não são artigos de 30 autores. São três pessoas, o outro artigo de 1993 (orientado por Ruvkun) também é de poucos autores. Ou seja, são poucas pessoas executando o conhecimento”, argumenta Ana.

Também no Bluesky, o astrônomo dinamarquês Markus Pössel relembra o prêmio Nobel de Física de 1993. Naquele ano, foram laureados Russell A. Hulse e Joseph H. Taylor Jr., “com Hulse sendo o estudante de pós-doutorado e Taylor o seu orientador”, pontua Pössel. Seria dizer que, mesmo como pesquisadora-assistente, Rosalind poderia ser igualmente premiada.

 

 

Muito além de Rosalind e do Nobel

No final das contas, independentemente do merece ou não merece, o caso de Rosalind Lee é uma faísca para um incômodo secular: por que mulheres seguem menosprezadas nas ciências exatas e biológicas? Você está lendo o quarto episódio de uma série sobre Mulheres na Ciência que tratou de responder essa pergunta. No terceiro episódio, mostramos como elas são sub-representadas entre os Nobéis de Medicina, Física e Química, apesar de serem, ao menos no Brasil, a maior parte da força de trabalho na pesquisa científica destas áreas.

Rosalind Franklin com microcópio em 1955.(Foto: MRC Laboratory of Molecular Biology)
Foto: MRC Laboratory of Molecular Biology Rosalind Franklin com microcópio em 1955.

A diferença é que elas têm mais dificuldade, por uma série de fatores sociais, em alcançar cargos de chefia. Se Ambros e Ruvkun foram laureados justamente por serem os chefes dos laboratórios que conduziram as descobertas, é também porque o sistema favorece a chegada dos homens nestes cargos, ao mesmo tempo em que pune as cientistas mulheres ao tornarem-se mães ou ao denunciarem assédios no ambiente de trabalho.

Por se posicionarem em crítica ao Nobel, Ana Arnt e Letícia Magpali logo receberam comentários reativos. No Instagram, Ana foi chamada de “woke” — um termo em inglês em tom jocoso, que pode ser traduzido como um “descansa, militante” para o português —, enquanto outro homem a chamou, em inglês, de “vad*a”. Letícia, por outro lado, recebeu um longo comentário em inglês justificando a ausência de Rosalind e finalizando: “Não é esse escândalo todo que vocês estão tentando forçar.”

“Não é nada contra a produção do conhecimento em si”, reforça Ana. “Tem vários colegas meus felizes e emocionados porque trabalham na área. Mas por que falar disso é como se fosse militância? Questionar o prêmio Nobel é questionar a hegemonia (de homens brancos do norte global) da Ciência.”

Muito provavelmente, Rosalind continuará sem um Nobel. No entanto, o objetivo de pesquisadoras do mundo inteiro permanece sendo o de denunciar práticas de discriminação e, principalmente, firmar os pés nos chãos dos laboratórios para dizer “existimos e continuaremos aqui”.

"Oi, aqui é a Catalina, repórter do OP+. Qual a sua opinião? Rosalind deveria ter recebido o Nobel de Medicina?"

O que você achou desse conteúdo?