Faz calor e o mundo não é mais o mesmo: cerca de 80% a 95% das espécies foram extintas em uma sequência de vulcanismo e mudanças no ciclo do carbono. A terra ficou desértica, árida e seca. Sobraram animais pequeninos e muito generalistas, que comem tudo que podem.
Essa era a Terra há 25 milhões de anos, no começo do período Triássico, mas poderia muito bem ser um dos possíveis futuros do planeta se a crise climática não for evitada. Tinha-se acabado de enfrentar a pior extinção da história, a extinção permo-triássica, da qual apenas 10% da vida do período
Podendo alcançar até 1,5 metro de comprimento, o Kwatisuchus era um sobrevivente nato. Além de ser generalista (comer de tudo), estava bem adaptado para resistir às provações do Triássico inferior. Nos períodos mais secos, era capaz de estivar, ou seja, fazer toquinhas no solo e entrar numa espécie de sonolência para suportar a condição climática.
Já nos períodos de chuva — super fortes, causadoras de enchentes que arrastavam árvores e bichos no processo —, o anfíbio se beneficiava dos rios sazonais que surgiam, usando ao máximo o rabo próprio para o nado e o rosto alongado parecido a de um jacaré.
Por outro lado, apesar das características ao seu favor, o ambiente continuava desafiando os Kwatisuchus ao limite. Na cena ilustrada pelo paleoartista Márcio L. Castro acima, vários familiares do anfíbio pereceram após uma enchente rápida. Enquanto o adulto remanescente procura alimento entre os destroços, as vítimas da espécie servem de comida para outro animal triássico, o
A descrição da nova espécie dá mais pistas sobre o passado climático da Terra e sobre como as espécies reagem às mudanças climáticas. “Os fatores que geraram a extinção permo-triássica são os mesmos que estamos falando hoje de mudanças climáticas e ciclos biogeoquímicos”, explica Felipe Pinheiro.
O gatilho da extinção à qual o Kwatisuchus sobreviveu foi o vulcanismo intenso na Sibéria, equivalente à queima de combustíveis fósseis atual. A diferença é que as causas das mudanças do passado eram naturais; já as de hoje são influência direta dos humanos.
Por muito tempo, o Triássico inferior foi “o patinho feio” das pesquisas paleontológicas. Os dinossauros surgiram no final do Triássico (chamado superior), o que motivava os pesquisadores a focarem nas escavações deste período. Um pouco mais baixo, no entanto, o solo guardava fósseis cruciais para a descrição do mundo pós-extinção, cujos dados são muito úteis para criar comparações com o cenário climático atual.
De 1985 a 2016, houve uma lacuna de investigações nesse período, com apenas uma espécie descrita. Foi então que a Unipampa, aliada a tantas universidades parceiras, voltou os olhos para o Triássico inferior e, de 2016 a 2024, encontrou sete espécies: cinco novas e duas já existentes na Rússia.
Centenas de materiais encontrados seguem em estudo, com ao menos duas novas espécies sendo descritas.
Ainda que a descoberta de mais animais seja emocionante, Felipe reforça que o foco dos pesquisadores é entender de forma o ecossistema passado de forma ecológica. Ou seja, analisar as relações entre animais, plantas, geografia e clima.
“A gente acaba aprendendo muito sobre o que está acontecendo agora e sobre como manejar essas crises”, argumenta o paleontólogo. “Essa é a motivação principal do nosso trabalho, não é a soma dos novos táxons em si, mas é entender de forma ecológica e ecossistêmica o que está acontecendo e ver lições para o que a gente tá vivendo hoje.”
O crânio quase totalmente preservado do Kwatisuchus foi encontrado no sítio Granja Palmeiras, na zona rural de Rosário do Sul (RS). Boa parte dos achados no estado ocorrem em propriedades privadas e há um cronograma de idas protocolares para prospecção.
Era agosto de 2022 e as escavações tinham dado poucos frutos, até o paleontólogo Voltaire D. Paes Neto encontrar um fragmento de fóssil nada diferente dos pedacinhos escavados até então. “Não parecia ser uma coisa diferente do que a gente já tinha encontrado, com cuidado ele foi coletando e na hora que ele puxou não era o fragmento, era o crânio todo”, relata Felipe.
“O crânio é fininho, parece uma panqueca, então ele puxou e parecia uma gavetinha. E aí o crânio já tava todo lá… Claro, não tava tão bonito como hoje, precisou preparar no laboratório, mas dava para ver a dentição e toda a parte da ornamentação”, empolga-se.
“Certamente o achado mais emocionante que já participei”, confirmou Voltaire em nota da Unipampa. “Ali mesmo, sabíamos que se tratava de algo fantástico e completamente novo!”
O Kwatisuchus continuou surpreendendo durante análise mais aprofundada, quando os pesquisadores identificaram que ele era um temnospôndilo, um grupo de animais mais velhos que os dinossauros com estilo de vida parecida aos dos anfíbios. Existem poucas espécies descritas desse grupo e as mais próximas do Kwaitisuchus são, surpreendentemente, da Rússia.
De fato, eles viveram na época da Pangeia, quando todos os continentes estavam juntos. Por isso, é razoável pensar que os animais migrariam de um canto para outro, não fosse os obstáculos naturais que normalmente existem, como rios e montanhas.
No caso, existia uma cadeia de montanhas atravessando a Pangeia e separando o Brasil e a Rússia. Como esses animais migraram ainda é desconhecido, mas é possível fazer inferências ao modelar possíveis rotas de dispersão desses animais. “É o que estamos fazendo agora. Eu acho que vai dar uma publicação bem legal no futuro próximo”, prevê Felipe.
Reportagens do O POVO exploram o universo dos fósseis do Brasil e do mundo