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O grande carnívoro antes dos dinossauros
Reportagem Seriada

O grande carnívoro antes dos dinossauros

No Rio Grande do Sul, há 265 milhões de anos, viviam os Pampaphoneus biccai, os maiores predadores da América do Sul durante o Permiano. Com crânios de quase 40 centímetros, paleontólogos brasileiros desvendam os grandes carnívoros pré-dinossauros
Episódio 34

O grande carnívoro antes dos dinossauros

No Rio Grande do Sul, há 265 milhões de anos, viviam os Pampaphoneus biccai, os maiores predadores da América do Sul durante o Permiano. Com crânios de quase 40 centímetros, paleontólogos brasileiros desvendam os grandes carnívoros pré-dinossauros
Episódio 34
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A movimentação não deixa dúvidas: os Pampaphoneus estão agindo. Entre grossos troncos de licófitas arbóreas "Hoje em dia, elas são plantas bem pequenininhas que vivem em lugares úmidos, mas na época conseguiram ser tão grandes quanto árvores" , é possível presenciar o momento em que um indivíduo de Rastodon procurvidens é abocanhado por um Pampaphoneus. O pequeno herbívoro não tem chances contra o predador de dentes compridos e de mordida poderosa. Outro Rastodon corre o risco de virar o almoço de mais um dos bichos caso não entre imediatamente na toca.

A cena de 265 milhões de anos, em pleno período Permiano médio, só pode ser imaginada graças aos achados dos paleontólogos da Universidade Federal do Pampa (Unipampa), no Rio Grande do Sul. Ilustrada pelo paleoartista Márcio Castro, a reconstituição aproveita o recém-publicado crânio de 37 centímetros do Pampaphoneus: é o maior já encontrado na América do Sul, dando muitas dicas da vida desse predador.

Paleoarte com dois Pampaphoneus predando Rastodons.(Foto: Márcio Castro)
Foto: Márcio Castro Paleoarte com dois Pampaphoneus predando Rastodons.

O Pampaphoneus biccai foi descrito há mais de dez anos e viveu durante o Permiano — muito antes da era dos dinossauros. Naquela época, as mudanças do clima foram intensas: no começo do Permiano, os mares eram rasos e fazia muito frio. Com o passar do tempo, já chegando ao final do período geológico, a região ficou mais árida e os mares, como o Mar Irati, secaram.

“O Pampaphoneus viveu num momento de transição entre esse ambiente mais frio e um ambiente desértico. Esse ambiente apresentava vegetação próxima a corpos d'água, como rios”, descreve o autor principal da pesquisa, Mateus Costa Santos, mestrando em Geociências na Unipampa.

O estudo foi publicado neste domingo, 10 de setembro de 2023, na revista científica Zoological Journal of the Linnean Society, em parceria com cientistas da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), da Universidade Federal do Piauí (UFPI) e da Universidade de Harvard.

 

 

Um crânio difícil de achar

O crânio foi encontrado na zona rural da cidade de São Gabriel (RS) em 2019, após um mês de escavações intensas. Para cada centímetro de osso bem conservado, uma baita comemoração: encontrar fósseis nas rochas do Permiano médio é árduo: “É muito mais provável que uma coleta seja infrutífera - voltamos para casa de mãos vazias - do que render um caquinho de osso sequer. A gente não sabe ainda exatamente o porquê disso. Afinal, os bichos estavam lá”, comenta o paleontólogo cearense Felipe Pinheiro, coordenador da pesquisa.

Crânio do novo espécime de Pampaphoneus.(Foto: Felipe Pinheiro)
Foto: Felipe Pinheiro Crânio do novo espécime de Pampaphoneus.

“Em outras rochas, especialmente na África e Rússia européia, os fósseis são bem comuns. Eu suspeito que o fato de termos, até agora, encontrado pouca coisa é um viés de coleta. Ou seja: fazemos mais trabalhos de campo em localidades do Triássico (especialmente aquelas com possível presença de dinossauros) do que em rochas mais antigas”, explica.

Mesmo assim, o pesquisador cearense sonha em encontrar um oásis permiano, onde haja abundância de fósseis do período. “Não custa sonhar…”

Quando as equipes tiram a sorte grande, restam os anos de pesquisa e publicação. No caso do crânio de quase 40 centímetros do Pampaphoneus, a pandemia implicou em um trabalho de três anos, entre a limpeza do fóssil e o estudo completo. O esforçou deu resultados, já que os pesquisadores puderam estimar que os maiores exemplares do Pampaphoneus poderiam chegar a quase três metros de comprimento e pesar 400 quilos.

As dimensões demonstram a imponência do animal, capaz de se alimentar de bichos de pequeno e médio porte. Entre eles, o Rastodon e o Konzhukovia, um anfíbio gigante parecido aos crocodilos atuais (em aparência) — ambas espécies foram encontradas nos mesmos afloramentos do Pampaphoneus.

Escavação na zona rural de São Gabriel, no Rio Grande do Sul, 2019.(Foto: Felipe Pinheiro)
Foto: Felipe Pinheiro Escavação na zona rural de São Gabriel, no Rio Grande do Sul, 2019.

"Ele era um animal carnívoro, de porte grande, similar aos atuais felinos. Inclusive, há estudos indicando que outras espécies do mesmo grupo que o Pampaphoneus pertence eram predadores velozes e hábeis", explica Mateus. "Não temos essas inferências diretas para o Pampaphoneus ainda, mas quem sabe no futuro. Hoje, posso dizer que ele era um predador de grande porte, de hábito similar aos leões de hoje em dia."

Por falar em felinos, os dentes poderosos e o crânio espesso lembram as onças-pintadas, predadoras hábeis capazes de caçar jacarés dentro da água e perfurar crânios de antas (o maior mamífero terrestre da América do Sul) com precisão. Por curiosidade, compare as dimensões de uma onça-pintada com as do Pampaphoneus: enquanto a cabeça da onça pode ultrapassar os 27 cm, os pesquisadores sugerem que o Pampaphoneus provavelmente poderia alcançar até o dobro dos 40 cm já encontrados.

A hipótese vem da comparação anatômica entre o crânio recém-publicado e o fóssil de uma mandíbula escavado no ano 2000 e atribuído a um Pampaphoneus. Pelo tamanho do osso, é bem provável que o bichão pré-histórico pudesse ser ainda mais cabeçudo.

 

 

Nem dinossauro, nem réptil

Apesar de integrar um grupo chamado dinocefálio "Em grego, dinocefálio significa "cabeça terrível". O nome do grupo faz referência aos ossos cranianos espessos dos integrantes." , o Pampaphoneus não era um dinossauro — até porque eles nem existiam ainda!

Coleta do material em 2019.(Foto: Felipe Pinheiro)
Foto: Felipe Pinheiro Coleta do material em 2019.

Enquanto o Pampaphoneus é do período Permiano, entre 298 e 252 milhões de anos, os primeiros dinossauros surgiram somente no período Triássico, entre 252 e 201 milhões de anos. Basicamente, eles estão separados pela extinção Permo-Triássica, responsável por dizimar 90% da biodiversidade permiana, incluindo os dinocefálios.

Ele também está longe de ser outro tipo de réptil, o que parece estranho a primeiro momento, já que o predador tem jeitão de lagarto misturado com crocodilo.

"Os dinocefálios fazem parte do grupo Synapsida. Esse é o mesmo grupo ao qual pertencemos nós, os mamíferos. Na verdade, os mamíferos são os únicos sinápsidos vivos hoje em dia", explica Felipe.

"Ao fim do Permiano, na extinção Permo-Triássica, os sinápsidos acabaram sendo, de certa forma, 'substituídos' pelos répteis, dando início à "Era dos Dinossauros" no período Triássico. Então, não! Eles não são répteis. Na verdade, são bem mais aparentados aos mamíferos do que a qualquer grupo de répteis atual!"

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