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Meninos do Cariri participam de descoberta arqueo-paleontológica inédita na Paraíba
Reportagem Seriada

Meninos do Cariri participam de descoberta arqueo-paleontológica inédita na Paraíba

No Vale dos Dinossauros (Sousa, Paraíba), artes rupestres coexistem intencionalmente com pegadas de dinossauros, indicando o valor cultural dos vestígios paleontológicos para povos indígenas pré-coloniais. Em pesquisa inédita analisando a relação entre os registros fósseis e arqueológicos, dois adolescentes do Cariri cearense participam com as fotografias do patrimônio publicadas em revista internacional

Meninos do Cariri participam de descoberta arqueo-paleontológica inédita na Paraíba

No Vale dos Dinossauros (Sousa, Paraíba), artes rupestres coexistem intencionalmente com pegadas de dinossauros, indicando o valor cultural dos vestígios paleontológicos para povos indígenas pré-coloniais. Em pesquisa inédita analisando a relação entre os registros fósseis e arqueológicos, dois adolescentes do Cariri cearense participam com as fotografias do patrimônio publicadas em revista internacional
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As crianças da Fundação Casa Grande, localizada em Nova Olinda (Cariri cearense), estão acostumadas aos vestígios arqueológicos. Desde pequenas, aprendem sobre as lendas dos primeiros povos kariris, como utilizá-las para encontrar sítios arqueológicos e como reconhecer cerâmicas e pinturas rupestres. Além disso, elas recebem formação em Arqueologia e muitas colaboram, mesmo antes dos seus dez anos de idade, nas pesquisas científicas da região.

Pois foi desse grupo de arqueólogos mirins que os meninos Renan Chandu, 14 anos, e Pedro Arcanjo, 15, foram selecionados para viajar até o Vale dos Dinossauros, em Sousa (PB), para participar de uma pesquisa arqueo-paleontológica inédita publicada internacionalmente. Renan e Pedro têm se especializado em fotografias científicas em campo, registrando dados de localização e de tamanho dos vestígios, e foram convidados pelos pesquisadores para fotografar a relação intrínseca entre pegadas de dinossauros e gravuras rupestres (petróglifos) no sítio Serrote do Letreiro.

Pedro Arcanjo operando o drone(Foto: Heloísa Bitu)
Foto: Heloísa Bitu Pedro Arcanjo operando o drone

As fotos de Renan e Pedro integraram a publicação da análise da união entre as pegadas e as gravuras na revista científica Scientific Reports. “Eu estou me sentindo um jovem cientista”, orgulha-se Pedro. Ele tinha 14 anos quando responsabilizou-se pelas fotos com o drone, supervisionado pelo operador Arthur Ferreira Sampaio. “Foi uma oportunidade para praticar o que aprendemos com a Arqueologia Social Inclusiva. Estou muito feliz de ter feito estas fotografias e só em pensar que estou relacionado naquela publicação já dá uma felicidade e um ânimo inexplicável”, compartilha ao O POVO+.

De acordo com Pedro, o registro fotográfico é crucial ao “documentar o patrimônio para o conhecimento das futuras gerações”. “Nesse caso, o estudo dá visibilidade a algo novo no Brasil que é o fato de existir arte rupestre tão pertinho de pegadas de dinossauros! Acho que também permite aos próprios moradores da região ficarem sabendo da importância daquele lugar e para que busquem preservar”, reflete.

Renan Chandu preparando as fotografias em campo.(Foto: Heloísa Bitu)
Foto: Heloísa Bitu Renan Chandu preparando as fotografias em campo.

O sítio Serrote do Letreiro é há muito tempo conhecido e estudado pelas pegadas de terópodes — dinossauros bípedes com pegadas de três dedos —, mas a mesma atenção nunca foi dada às gravuras rupestres que coexistiam no piso. As artes eram vistas como “desenho de índio "O termo "índio" é pejorativo. O termo correto é "indígena"." ” pelo paleontólogo italiano Giuseppe Leonardi, o primeiro a estudar as pegadas em 1975, e passaram décadas sem despertar o interesse científico.

Foi quando a paleontóloga Aline Ghilardi e o arqueólogo Leonardo Troiano, autor principal, decidiram encarar o local como um sítio arqueo-paleontológico. Ao lado do paleontólogo Tito Aureliano e da arqueóloga Heloísa Bitú, da Fundação Casa Grande "Instituto de Arqueologia do Cariri Dra. Rosiane Limaverde" , o grupo identificou que povos indígenas entre 9.400 e 2.620 anos antes do presente perceberam as pegadas de 140 milhões de anos atrás com curiosidade e intencionalmente as incorporaram à cultura deles, criando um enorme painel horizontal composto cuidadosamente pelas artes geométricas e pelos vestígios paleontológicos.

No canto esquerdo da imagem, é possível ver a ocorrência da gravura rupestre (acima) ao lado de uma pegada (abaixo)(Foto: Divulgação)
Foto: Divulgação No canto esquerdo da imagem, é possível ver a ocorrência da gravura rupestre (acima) ao lado de uma pegada (abaixo)

O sítio é único no mundo e pode até ser considerado como patrimônio da humanidade.

“Eu fiquei impressionado com a qualidade de preservação das pegadas e fiquei maravilhado imaginando alguns daqueles gigantes passando por lá e deixando suas marcas! Parece inacreditável que uma simples pegada possa durar tanto tempo! Mas a natureza é surpreendente”, comenta Pedro. 

 
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Clique na foto e leia a entrevista completa com Pedro (Foto: Heloísa Bitú)

“Logo na chegada à Sousa, as pegadas já deslumbraram os meninos”, comenta a arqueóloga Heloísa Bitú. Ela ficou responsável pelos estudantes durante a viagem, com a autorização dos pais. “Eles já conhecem os fósseis do Cariri, como os peixes, os pterossauros… mas nada como pegadas dos terópodes e dos saurópodes. Eles também já conheciam os tridígitos dos Cariris”, explica.

A participação dos meninos representa um dos pilares da Fundação Casa Grande, que acredita na Arqueologia Social Inclusiva como uma maneira ética e decolonial de fazer ciência, além de ser uma oportunidade de empoderar as populações que estão culturalmente relacionadas aos vestígios arqueológicos de seus territórios. “Era algo muito novo para eles, mas que parecia algo próximo. E eu posso afirmar que a gente (o grupo de pesquisadores) acredita muito em uma ciência decolonial”, afirma Heloísa.

 

 

Fósseis são cultura e arte há milhares de anos

A interação entre pegadas de dinossauros e arte rupestre no Serrote do Letreiro só demonstra como a paleontologia é, essencialmente, um patrimônio cultural para os brasileiros. Mesmo antes da compreensão de que animais como os dinossauros viveram e morreram neste território há milhões de anos, os povos indígenas já notavam os fósseis com curiosidade. “Ficou perceptível a intenção de ter percebido aqueles vestígios, respeitado e feito a arte ao lado, sem sobreposições. A arte rupestre é muito bem arranjada onde estavam as pegadas”, explica Heloísa.

Pegada de terópode no sítio Serrote do Letreiro, em Sousa (PB)(Foto: Divulgação)
Foto: Divulgação Pegada de terópode no sítio Serrote do Letreiro, em Sousa (PB)

Aliás, é provável que eles tenham observado as pegadas e relacionado-as às emas, os maiores pássaros brasileiros. Não seria de todo errado: afinal, as aves são dinossauros, e os terópodes tinham patas parecidas às das emas. “Essa descoberta nos mostra que a narrativa da construção científica europeia que dizia que os nativos não tinham método científico, ou não estavam nem aí para o entorno, está incorreta. É uma narrativa diminutiva de considerá-los primitivos. Então esse trabalho também é uma justiça histórica”, defende o autor principal Leonardo Troiano, arqueólogo do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan).

“Esse sítio traz uma evidência muito forte de que as populações do passado já interagiam e buscavam, à sua maneira, encontrar explicações para esses registros”, diz a paleontóloga Aline Ghilardi, da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN). “Hoje a gente busca olhar esses registros sobre a ótica da ciência ocidental europeia, que foi exportada para o mundo, mas esse não é o único método de buscar explicações. Existem outros tipos de métodos científicos.”

Gravura rupestre, um petróglifo, na rocha onde estão as pegadas(Foto: Divulgação)
Foto: Divulgação Gravura rupestre, um petróglifo, na rocha onde estão as pegadas

A equipe mapeou outros sítios com petróglifos parecidos aos do Serrote do Letreiro, encontrando-os em outras 12 localizações. De acordo com Leonardo, são evidências de pequenos grupos seminômades que migravam dentro do mesmo território, espalhando a cultura visual. Ou seja: eram várias famílias, no decorrer dos anos, que compartilhavam um mesmo código visual, uma mesma cultura humana.

“Não seria o mesmo vilarejo. A gente fala cultura como o Brasil: a população brasileira compartilha alguns elementos em comum, mas nós somos populações diferentes. Você é cearense, eu sou de São Paulo. A gente é diferente, mas compartilhamos uma cultura mais ampla”, exemplifica Leonardo.

 

Localização de petróglifos parecidos aos encontrados no sítio Serrote do Letreiro

 

“Ainda existem sítios que podem ser descobertos”, complementa Heloísa. Um dos objetivos dos pesquisadores é averiguar se esses povos criaram uma espécie de rota: “Uma hipótese, uma possibilidade, é esse homem que conhece as pegadas migrar e conhecer outros tipos de fósseis”, reflete. Ainda serão necessários estudos para determinar se esse tipo de troca de fato ocorreu.

A paleontóloga Aline reforça a singularidade do sítio Serrote do Letreiro e como nenhum lugar do mundo tem uma relação tão intencional e intrínseca entre artes rupestres e vestígios fósseis. Essa é a primeira publicação oficial indicando essa co-ocorrência e é especial também por ser de um país do sul global. “Ele merece, sim, o título de património da humanidade, porque dialoga com o profundo do que é ser humano: ser curioso com a natureza.”

O grupo de arqueólogos e paleontólogos analisando as pegadas e as artes rupestres(Foto: Divulgação)
Foto: Divulgação O grupo de arqueólogos e paleontólogos analisando as pegadas e as artes rupestres

Os pesquisadores usam a descoberta para indicar que fósseis são, sim, bens culturais e portanto devem ser protegidos contra o tráfico da mesma maneira que os vestígios arqueológicos. A Lei 3.924/61 dispõe sobre a proteção e conservação de artigos arqueológicos e pré-históricos, mas ainda não há uma legislação específica para os vestígios paleontológicos.

Por enquanto, os paleontólogos usam de vários arcabouços legais para garantir a preservação e repatriação de fósseis brasileiros; no entanto, garantir uma legislação direcionada poderia ser uma estratégia de fortalecimento da segurança destes vestígios.

“A partir do momento que a gente encontra um fóssil, nós atribuímos valor científico. No presente, isso já passa a ser um valor cultural. Os fósseis não deixam de ser a interpretação que a gente faz deles, uma forma de cultura”, reflete Aline.

O sítio foi recadastrado pelo Iphan, possibilitando que o instituto volte-se para ações de preservação, fiscalização e monitoramento do estado de conservação do Serrote do Letreiro.

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