Espaços insalubres, cercados e vigiados onde dezenas de milhares de famintos passaram pouco mais de um ano ou morreram antes disso. Os campos de concentração criados durante a Seca de 1932 no Ceará são fruto de uma lógica e de uma organização sociais que, reinventadas a cada ciclo de modernização e exclusão, se mantém na sociedade.
A historiadora Kênia Sousa Rios, professora da Universidade Federal do Ceará (UFC), pesquisa sobre o tema desde a década de 1990. Em entrevista ao O POVO, ela contextualiza um dos momentos mais aterrorizantes do Estado e nos leva a refletir sobre as formas de segregação e morte contemporâneas.
O POVO - O projeto de estruturar áreas específicas para conter os retirantes das secas no Ceará vem desde o século XIX. Como essa organização do meio urbano se aprofundou até chegarmos aos sete campos de concentração de 1932?
Kênia Rios - A gente tem que pensar a história da riqueza no Ceará de uma forma ampla. Na medida em que você tem uma elite consolidada, o espaço urbano passa a ser um espaço privilegiado. Porém, conforme as secas vão acontecendo, as cidades, principalmente Fortaleza, vão ser o espaço de fuga de uma população pobre que só cresce.
A seca de 1877 acontece em um momento de declínio da produção de algodão, a qual desde 1860 garantiu o estabelecimento de uma elite econômica. Nesse momento, você tem um seminário de muita gente que trabalhava no campo e que agora não tem mais o que fazer nem tem para onde ir. Então, há o agravamento da fome e a tentativa da elite em controlar esses corpos famintos que buscam a cidade. Por isso, Fortaleza é não só o lugar para onde os flagelados migram, como também um espaço de abarracamentos.
Em 1932, existe um projeto de reurbanização, reorganização e desenvolvimento urbano da Capital. Para a elite, essa “orda de famintos” deveria ser controlada; deveria ser, de alguma forma impedida, de circular pelas ruas. Aí você tem não só a tentativa de controlar os que chegam, mas, antes disso, impedir que cheguem. Por isso, são estabelecidos os cinco campos que foram colocados em locais estratégicos do Interior: ao longo das linhas férreas.
OP - Nesse processo, modernização e exclusão estão caminhando lado a lado.
Kênia - Exatamente. O trem é um paradoxo e as estações eram locais de tensão. O trem facilita tanto a circulação da mercadoria, quanto, em volumes muito maiores e em um descontrole muito maior, o deslocamento daqueles que eram considerados indesejáveis, os flagelados das secas. E eles são indesejáveis porque são uma imensa mão de obra excedente.
O escritor e farmacêutico Rodolfo Teófilo fez várias denúncias; desde os abarracamentos até o formato Campos de concentração. Alguns jornais publicaram matérias comentando a tragédia e o sofrimento dos retirantes naqueles espaços.
OP - Houve quem tentasse evitar ou acabar com os campos de concentração no Ceará?
Kênia - O escritor e farmacêutico Rodolfo Teófilo fez várias denúncias; desde os abarracamentos até o formato Campos de concentração. Alguns jornais publicaram matérias comentando a tragédia e o sofrimento dos retirantes naqueles espaços.
O que aconteceu em 1932 é algo que foi avisado. No romance "A Fome" (de 1890), Rodolfo Teófilo descreve os abarracamentos de 1877 e diz que aquilo era uma carnificina: pessoas famintas e doentes aglomeradas em espaços pequenos. Em 1915, ele vai dizer de novo a mesma coisa. Em 1932, antes de morrer, ele ainda faz um último grito dizendo sobre o absurdo de repetirmos a mesma tragédia humana. Locais feitos para duas ou três mil pessoas, mas que chegam a ter 18 mil pessoas. Não é preciso muito cálculo para saber que isso não daria certo.
OP - Seja nos relatos de sobreviventes, seja em registros oficiais, é evidente que os campos de concentração não amenizaram os sofrimentos. Inclusive, em muitos deles, houve epidemias e milhares de mortes. Por que os campos se repetem sucessivamente na nossa história?
Kênia - Eles se repetem porque não há qualquer compromisso político com determinadas vidas. Existem as vidas que importam e as que não importam. Essas que são colocadas nesses espaços são as que não importam: os pobres, os indígenas, os negros…
E o sertanejo é exatamente aquele que cruza essas identidades, que mistura o que desde o século XIX é considerado inferior. Desde então, seja na literatura, seja nos documentos oficiais, o sertanejo é o violento, o que não tem uma cognição razoável. É aquele classificado, inclusive a partir das teorias raciais, como inferior.
A seca não é falta de chuva, é falta de água no sentido da falta de democratização da água e da terra; do desrespeito às formas de cultivo; do latifúndio. A seca é uma intervenção humana e uma ausência de políticas de redistribuição.
OP - Em outras entrevistas, a senhora já afirmou que a seca não é um fenômeno natural. De onde vem essa compreensão?
Kênia - Se a gente pega o histórico das chuvas no Ceará, a gente vê que temos até mais anos de regularidade do que anos de baixa pluviosidade. Porque então a gente se transformou no território da seca? Isso tem a ver com a configuração econômica. Já lá em 1877, a partir do algodão, temos um dos semiáridos mais populosos do Nordeste e uma definição política: o que fazer quando se tem um excedente de mão de obra e não se tem uma política de distribuição de terra e água? É aí que a falta de chuva vira um grande problema e você tem a seca e a fome.
A seca não é falta de chuva, é falta de água no sentido da falta de democratização da água e da terra; do desrespeito às formas de cultivo; do latifúndio. A seca é uma intervenção humana e uma ausência de políticas de redistribuição.
OP - Naquela época, os campos para os chamados “flagelados da seca” não eram os únicos espaços de confinamento da população. O que mais se colocava como política pública nesse sentido?
Kênia - Desde o século XIX temos uma expansão muito grande de espaços para o confinamento dos “indesejáveis”, daqueles que incomodam, dos que saem daquilo que é considerado normal: órfãos, crianças desvalidas, leprosos, mendigos, alienados. Aqui no Ceará, naquela época, tivemos mais de 13 espaços desse tipo. Os campos de concentração têm de ser pensado junto a essas políticas de confinamento.
Não foram só os flagelados, mas sempre os pobres. Sobre a hanseníase, por exemplo, existia um conceito de “leproso em potencial”. Isso fazia com que aquele mesmo sujeito pudesse, dentro das conveniências dos espaços, circular entre esses locais de vigiar e punir, como diz Foucault. Esses espaços estavam por toda parte. E, no nosso caso, são espaços um tanto mais dramáticos porque não é só a vigilância, o disciplinamento e a punição, mas também o extermínio. É o fazer morrer. Mais que gerir a vida, é dizer quem deve viver e quem deve morrer – como coloca o filósofo camaronês Achille Mbembe com o conceito de necropolítica.
OP - Olhando para esse momento da nossa história e para a atualidade, o que mais lhe chama a atenção?
Kênia - A primeira coisa que me espanta é que, mesmo com pelo menos 30 anos de pesquisa sobre o tema, pouca gente sabe dos campos de concentração no Ceará. Outra questão é fazer com que as pessoas entendam que sem uma política de acolhimento dos pobres e de redistribuição de renda vamos ter sempre o problema da fome, que aliás voltou. Porque a gente voltou a fazer parte do mapa da fome? A fome voltou a ameaçar os mais pobres em todo o território brasileiro.
As grandes favelas que existem até hoje em Fortaleza se compõem a partir daquele ano: Moura Brasil, Pirambu,a Favela do Trilho… Na medida em que há mais pobres na Cidade, há todos os problemas urbanos que possamos elencar e as pessoas passam a formar organizações de existência e resistência.
OP - As atuais relações entre campo e espaço urbano mostram reflexos das décadas passadas…
Kênia - O campo oferece poucas formas de sobreviver e por isso temos o inchaço do espaço urbano. O ano de 1932 é também um ano de boom do processo de favelização em Fortaleza. As grandes favelas que existem até hoje em Fortaleza se compõem a partir daquele ano: Moura Brasil, Pirambu, a Favela do Trilho… Na medida em que há mais pobres na Cidade, há todos os problemas urbanos que possamos elencar e as pessoas passam a formar organizações de existência e resistência.
E essas organizações lembram o porquê de elas estarem aqui e não no campo. Mesmo que seja muito ruim, ainda há o desejo ou a esperança de escapar de algum jeito. Isso é o terror que é produzido pelo latifúndio, pelo capitalismo. A gente pode usar a palavra que for, mas no fim das contas é isso.
OP - Ao mesmo tempo em que essas concentrações permanecem, o empobrecimento e o abandono social são cada vez mais evidentes, por exemplo, no aumento da população em situação de rua. Como a senhora vê isso?
Kênia - Há um volume tão grande de pessoas que não há onde colocar e a rua é o que sobra para elas. Não significa que não continuem na mira, muito pelo contrário. Elas podem não estar em espaços fechados e definidos espacialmente, mas estão sempre desvalorizadas, desrespeitadas e desprotegidas. Estão à mercê de todo tipo de violência e nunca terão sossego enquanto a forma de viver não passar por uma mudança estrutural.
Em uma sociedade desigual e de violência é preciso lembrar. Como colocava Walter Benjamin, se a gente não lembrar, nem os mortos estão salvos. Ou seja, é preciso reparar inclusive a memória dos mortos, dessas pessoas que sofreram de forma bárbara pela ausência do Estado, pela ganância do lucro e pelo racismo.
OP - Noventa anos após a seca de 1932, muitas pessoas desconhecem esse momento da história cearense e seus desdobramentos contemporâneos. Um caminho para realidades menos desiguais seria o direito à memória?
Kênia - Em uma sociedade desigual e de violência é preciso lembrar. Como colocava Walter Benjamin, se a gente não lembrar, nem os mortos estão salvos. Ou seja, é preciso reparar inclusive a memória dos mortos, dessas pessoas que sofreram de forma bárbara pela ausência do Estado, pela ganância do lucro e pelo racismo.
Lembrar é importante para que as gerações passem e saibam até onde se chegou. Mais do que isso, saibam até onde podemos chegar e possam traçar um paralelo com a sua vida. Não adianta ter um espaço de memória para simplesmente dizer como foi, pois corremos o risco de achar que não é mais. O direito e o dever da memória é fazer pensar sobre o presente. Como a gente se reconhece naquilo que está ali em 1932? Que outros campos de concentração temos hoje, mesmo que não mais com esse nome e com essa forma?
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