Há quatro meses, o mundo científico cearense e brasileiro vibrava com a confirmação do Ministério da Ciência, Pesquisa e Arte Baden-Württemberg, da Alemanha, de repatriar o fóssil do Ubirajara jubatus, um dinossauro cearense traficado em 1995. Resultado de mobilização de paleontólogos de todas as regiões, mas especialmente do Nordeste e do Cariri, as tratativas para a devolução do material ainda seguem a passos lentos.
Quem atualiza o cenário é o paleontólogo Allysson Pinheiro, diretor do Museu de Paleontologia Plácido Cidade Nuvens (MPPCN), da Universidade Regional do Cariri (Urca). Ele explica que mantém a conversa com os curadores dos museus públicos alemães e, a pedido deles, enviou pedidos formais de repatriação para todos os institutos. No entanto, ele ainda aguarda as confirmações de recebimento e retornos em relação aos pedidos.
Isso ocorre porque o ministério alemão exigiu que todos os museus públicos com materiais cearenses ― e não apenas o Museu Estadual de História Natural Karlsruhe (SMNK), em posse do Ubirajara ― fizessem um levantamento dos fósseis para seguir com a devida repatriação.
“O (Museu de História Natural) Senckenberg, o maior museu público de ciência natural da Alemanha, disse que ia dar tratamento à questão, mas até agora não recebi resposta”, comenta Allysson. Por outro lado, ele destaca que isso é resultado de uma dificuldade administrativa. “Não é má fé”, reforça.
Como os museus alemães possuem muitos materiais cearenses, reflexo de o país europeu ser o principal destino do tráfico de fósseis do Ceará, o esforço de levantamento e definição sobre o que fica ou volta é maior. “Não há necessidade de devolver todos os fósseis, só os mais especiais. Tem alguns que temos milhares aqui. Então podemos chegar em acordo para deixar duplicatas na Alemanha”, diz.
Na época da notícia de repatriação, a Alemanha emitiu nota afirmando que o Museu Nacional do Rio de Janeiro (MN/RJ) teria sido indicado como “interlocutor oficialmente legítimo” do intercâmbio. Isso tornaria o museu carioca como um “possível local futuro para a apresentação” do fóssil, o que não agradou parte dos cientistas que lutaram pela devolução do Ubirajara.
O caso Ubirajara virou um dos mais emblemáticos casos de tráfico de fósseis do Ceará e do mundo, transformando-se em uma bandeira contra o colonialismo científico. O Ubirajara jubatus é uma espécie de dinossauro cearense do período Cretáceo, há cerca de 110 milhões de anos, com tamanho aproximado de uma galinha, crina ao longo do dorso e, supostamente, duas “fitas”, estruturas rígidas que seriam únicas da espécie.
O estudo publicado na revista científica Cretaceous Research, no dia 13 de dezembro, explica que o fóssil saiu do Brasil para a Alemanha em 1995, integrando agora o acervo alemão do Museu Estadual de História Natural Karlsruhe. No entanto, paleontólogos brasileiros questionaram a existência da autorização e a validade dela. Afinal, como os fósseis nacionais são propriedade da União, a retirada inadequada deles do Brasil é considerada tráfico.
No estudo, os autores afirmam que a autorização foi expedida no dia 1º de fevereiro de 1995, por um agente do escritório regional do Crato do Departamento Nacional de Produção Mineral (DNPM). De fato, a revista Galileu teve acesso ao documento, enviado pelo coautor do estudo Erbehard Frey, pesquisador do Museu Estadual de História Natural de Karlsruhe. A autorização é assinada por José Betimar Melo Filgueira - que já foi condenado por emissão irregular de certificados e laudos do DNPM que colaboraram com um esquema de fraudes.
Ao O POVO, o paleontólogo Felipe Lima Pinheiro opina que a autorização apresentada é inválida. “A carta fala apenas do transporte, mas não cita quantos fósseis, não os descreve, não diz qual o tamanho das caixas”, pontua. O documento também não traz mais dados sobre o autorizado, como número de identidade ou passaporte.
“É [preciso] uma descrição detalhada do que consta. Não é só uma caixa contendo fósseis. Você tem que descrever qual é o fóssil e dizer onde ele estava depositado. Ou seja, necessariamente o fóssil tem que fazer parte de uma coleção científica brasileira antes de ir para fora… E ele vai por um tempo. Ele pode ir, mas tem que ter data pra voltar”, reforça o paleontólogo Allysson Pinheiro.
Além disso, de acordo com o Decreto nº 98.830, de 15 de janeiro de 1990, e a Portaria MCT nº 55, de 14 de março de 1990, a burocracia para estrangeiros estudarem e transportarem fósseis brasileiros vai muito além de uma carta do DNPM. Tudo precisa passar pelo Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovações (MCTI), na época chamado apenas de Ministério da Ciência e Tecnologia (MCT).
A maioria defende que o
Sobre isso, o diretor do museu caririense explicou que não há documento oficial do Brasil indicando o Museu Nacional como representante. O que ocorre é que a ministra alemã da Ciência, Theresia Bauer, por algum motivo indicou o nome da instituição carioca no comunicado de repatriação. Talvez porque era o nome mais conhecido por ela, reflete Allysson.
O diretor do Museu Nacional Alexander Kellner também reforça que a instituição desconhece qualquer comunicado sobre o assunto.
Segundo ele, o museu tem parceria com a Alemanha, França, Reino Unido e outros países para doações de materiais objetivando a reconstrução do acervo do MN, após o incêndio de 2018. “Não sei se nesse ínterim (a nota da Alemanha) saiu nesse sentido”, comenta, destacando novamente nenhuma indicação oficial nem por parte da Alemanha, nem do Palácio da Alvorada.
“Mesmo que houvesse qualquer coisa nesse nível, e não há, com certeza conversaríamos muito com nossos colegas da Urca, com maturidade e inteligência”, diz Kellner.
De qualquer forma, o processo jurídico de repatriamento encaminhado pelo Ministério Público Federal do Ceará (MPF-CE) de Juazeiro do Norte, e acompanhado pelo procurador da República Rafael Rayol, expressa a vontade do MPPCN ser o receptor da peça.
Até pela demora das tratativas burocráticas, o MPF tem certificado costumeiramente o desejo da instituição de abrigar a peça, sempre reafirmado pelo museu. “No processo, o Ubirajara retorna ao Cariri”, tranquiliza Allysson.
Por enquanto, não há data prevista para o retorno do fóssil.
Enquanto o museu de Santana do Cariri (CE) aguarda a chegada do Ubirajara e outros materiais, Allysson atualiza sobre uma nova conquista: começa a catalogação dos fósseis localizados na antiga sede do Departamento Nacional de Produção Mineral (DNPM) no Crato.
O DNPM, atual Agência Nacional de Mineração (ANM), teve a sede caririense fechada em 2018. Desde então, um acervo com milhares de fósseis ficou enclausurado no local, sem cuidado adequado. Mas a partir desta semana, o MPPCN tem autorização para catalogar os materiais e transferi-los para o acervo do museu.
“Ainda não sabemos a quantidade, mas são alguns milhares”, informa o diretor. Segundo ele, entre as peças existem algumas inéditas de grande potencial científico.
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