A história do interesse internacional nos fósseis caririenses e o consequente colonialismo científico é bem mais antiga do que se imagina: começou em 1800, com o primeiro registro do reconhecimento dos fósseis no Cariri em uma carta enviada pelo naturalista João da Silva Feijó à Lisboa. Junto a ela, o estudioso encaminhou à Academia de Ciências Portuguesa os espécimes de peixes e anfíbios encontrados por ele entre os municípios de Missão Velha e Milagres.
No documento, Feijó descreveu os materiais como “as mais curiosas e raras”. “Jamais, a meu ver, se hão encontrado, e que por isso merecerão a atenção dos Amadores da História Natural, e talvez dos que se aplicam a aprofundar o sistema geral da natureza deste Globo”. O fascínio estava na excepcional fossilização de tecidos moles dos animais, o que até então era considerado impossível.
Mais tarde, nos anos 1823 a 1831, dois naturalistas bávaros publicam a série de livros Reise im Brasilien, no qual adicionaram a ilustração de um peixe fossilizado do Cariri. Eles eram membros da comitiva de Maria Leopoldina da Áustria, um pouco antes de virar imperatriz do Brasil.
Moral da história? É fácil perceber o quão intrínseca a história da colonização brasileira está na paleontologia do País. Esse passado também explica porque 88% dos macrofósseis do Cretáceo caririense descritos entre 1990 e 2021 estão em coleções estrangeiras e ainda não foram retornados.
O dado é da pesquisa "Cavando mais fundo nas práticas paleontológicas coloniais no Brasil e México modernos", publicada nesta quarta-feira, 2 de março, na revista científica Royal Society Open Science. O artigo é uma força-tarefa de 13 pesquisadores dedicados a debater o colonialismo científico e a ética na ciência. Entre eles, o primeiro autor Juan Cisneros, paleontólogo na Universidade Federal do Piauí (UFPI), e mais cinco paleontólogos do Brasil; três pesquisadores mexicanos e quatro paleontólogos da Alemanha, do Reino Unido e do Canadá.
Ao analisar três décadas de publicações paleontológicas envolvendo macrofósseis do Cariri, a equipe identificou que 59,15% delas (o total é de 71 artigos) foram lideradas por pesquisadores estrangeiros. E a maioria (57,14%) desses estudos gringos não tinham nenhuma evidência de parceria com pesquisadores brasileiros ― obrigatório quando se estuda fósseis brasileiros fora do País, segundo a Portaria nº 55/1990 do Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovações (MCTI).
De todos os fósseis descritos por essas pesquisas, 88% foram retirados do Brasil para compor acervos estrangeiros e nenhum deles foi devolvido. O dado fica pior quando aponta que todos esses materiais são holótipos; ou seja, os fósseis utilizados para descrever novas espécies. Nenhum dos artigos reportaram permissões para exportar o material.
A discussão sobre colonialismo científico e investigação por dados do tipo na Paleontologia é nova. Enquanto arqueólogos, compreendidos como das ciências humanas, estão há décadas discutindo a ética científica, os paleontólogos sempre tiveram um certo receio da retaliação.
“É uma característica da nossa ciência, achávamos que essas discussões estavam desassociadas da pesquisa”, comenta o professor Juan Cisneros, da UFPI, em entrevista ao O POVO. Mesmo assim, as práticas colonialistas sempre foram uma pulga atrás da orelha dos pesquisadores de países afetados pela
Então, quando o caso do Ubirajara jubatus veio à tona, os paleontólogos viram uma “oportunidade de levantar essas questões amplamente”. O objetivo é fazer com que o debate consiga chegar ao Norte Global, onde estão os países que mais assumem condutas antiéticas na pesquisa.
A própria escolha da publicação na revista Royal Society Open Science, publicação de renome muito lida na Europa, foi pensada para alcançar o norte. Mas o processo não foi fácil: alguns revisores negaram a avaliação do artigo por não quererem estar envolvidos com o assunto. Foram necessários cerca de três meses para que a revista encontrasse algum revisor disposto a ler o artigo.
O caminho para fazer com que o debate saia da bolha de países afetados ainda é longo. De acordo com a paleontóloga Nussaïbah Raja, pós-doutoranda na Universidade de Erlangen-Nuremberg (Alemanha), a discussão ainda é insuficiente por terrenos alemães. “Poucas pessoas falam sobre isso. Então eu imagino que a discussão também não ocorre em outros países”, lamenta, ainda que destacando o Reino Unido e os Estados Unidos como nações um pouco mais mobilizadas.
“É por isso que é tão importante sermos tão irritantes às vezes”, afirma Aline Ghilardi, paleontóloga brasileira e professora na UFRN. Durante a entrevista, os autores da pesquisa apontam que as pessoas que desrespeitam a ética na ciência é minoritária, mas muito poderosa.
Por outro lado, há esperança com as novas gerações de pesquisadores. Um exemplo é o caso do paleontólogo Matthew R. Downen, dos EUA, responsável pela descrição da aranha Cretapalpus vittari. Ao ser informado da possível origem ilegal do fóssil, o pesquisador foi aberto ao contato da Universidade Regional do Cariri (Urca) sobre a possibilidade de repatriação voluntária do material.
Junto com o holótipo da C. vittari, Downen colaborou com o retorno de outros 35 fósseis de aranhas. Todas já estão no Museu de Paleontologia Plácido Cidade Nuvens, em Santana do Cariri (CE).
“Muitos alunos caem por engano em pesquisas do tipo, lideradas por pessoas que sabem da improcedência dos fósseis”, analisa Renan Bantim, um dos autores da pesquisa e professor-visitante da Universidade Regional do Cariri (Funcap/Urca). O paleontólogo conta que, apesar de saber que o problema era grande, foi uma surpresa ver a dimensão em números e ver quais países se destacavam na posse irregular.
Segundo ele, a Urca já estava trabalhando em um levantamento de holótipos para o Guia de Fósseis da Bacia do Araripe, lançado em novembro de 2021. “Esse artigo é importante porque são dados concretos, não é opinião”, ressalta.
Aliás, a publicação deve impulsionar ainda mais a luta pela repatriação dos fósseis, já que oferece mais embasamento para recursos legais. E o levantamento continuará firme: a ideia é mapear todos os artigos publicados com fósseis do Araripe, para além dos holótipos e macrofósseis.
“Para os insetos o número é tão absurdo que levariam três meses para analisar todos os dados. Vamos ver uma outra realidade, e é possível que aumente a quantidade de fósseis nos EUA nesse sentido”, explica.
Os autores reforçam que o intuito do debate está longe de querer proibir gringos de estudarem fósseis brasileiros. “A ciência é feita com colaboração. Nós queremos que a nossa ciência seja colaborativa”, destaca Juan. “O que estamos tentando fazer aqui é proteger a nossa herança cultural-científica e as pessoas mais vulneráveis.”
A ciência, explicam os pesquisadores, se beneficia da pluralidade e precisa dela para manter a qualidade. Principalmente quando alguns dos objetos de estudo viveram tão mais próximos geograficamente do que poderiam atualmente ― basta lembrar que, há milhões de anos os continentes estavam grudados uns nos outros, como no caso da Pangeia (entre 200 a 540 milhões anos) e os supercontinentes Gondwana e Laurásia (cerca de 200 milhões de anos atrás).
“Pela primeira vez eu trabalhei com pessoas que não estariam no meu grande grupo de colaboração”, afirma o professor Renan. Até então, muitas das publicações dele eram em parceria com a China, por exemplo. Para ele, pesquisas como esta permitem, inclusive, que alguns países se protejam antecipadamente de extrativismos tão intensos quanto no Cariri.
“Nós queremos inspirar outros países a fazerem o mesmo tipo de investigação”, divide Aline. Ela também comemora a oportunidade de ter se aproximado mais de outros países latinoamericanos para o desenvolvimento do artigo, algo possibilitado pelas redes sociais. “Isso me fez perceber como estávamos distantes dos nossos colegas latinos. Essa temática nos ajudou a criar laços fortes.”
ANTUNES, Miguel Telles; BALBINO, Ausenda C.; FREITAS, Idalécio. Early (18th century) discovery of Cretaceous fishes from Chapada do Araripe, Ceará, Brazil–Specimens kept at the ‘Academia das Ciências de Lisboa’Museum. Comptes Rendus Palevol, v. 4, n. 4, p. 375-384, 2005. https://doi.org/10.1016/j.crpv.2005.02.001
Cisneros, JC et al. Digging deeper into colonial palaeontological practices in modern day Mexico and Brazil. R. Soc. Open Sci. 9: 210898. 2022. https://doi.org/10.1098/rsos.210898
PINHEIRO, F. L.; FERNANDES-FERREIRA, H. História da Zoologia no Estado do Ceará Parte II: Paleozoologia e Etnozoologia. Gaia Scientia, v. 8, n. 1, 13 jun. 2014. Disponível em: https://periodicos3.ufpb.br/index.php/gaia/article/view/19401
Reportagens do O POVO exploram o universo dos fósseis do Brasil e do mundo