Os influenciadores que divulgam o Fortune Tiger — ou o “jogo do tigrinho”, como é conhecido — são apenas a face mais visível do multibilionário mercado dos cassinos ilegais na internet.
Nesse iceberg ao qual as autoridades brasileiras ainda têm dificuldade de ver a parte submersa, também se fazem presentes agenciadores, gerentes e, só, então, os “chefes” dos empreendimentos — que, quase sempre, estão no Exterior.
Nas investigações policiais às quais O POVO teve acesso, os chineses aparecem de maneira destacada entre aqueles que dão as cartas nesse negócio criminoso.
Na operação Gizé, deflagrada em março pela Delegacia Regional de Juazeiro do Norte (Cariri Cearense), por exemplo, os “chineses” foram mencionados várias vezes pelos influencers da região que acabaram sendo presos.
No relatório final do inquérito, foram colacionados prints de conversas dos influenciadores com estrangeiros em aplicativos como WhatsApp. Em um deles, um homem cujo telefone tinha prefixo da Malásia apareceu enviado o login de uma “conta demo” do jogo.
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“Esta conta demo tem 2k de fundos”, diz o agente da plataforma. “Você pode fazer login para fazer vídeos de jogos. Envie-me o link para a história (stories do Instagram) quando terminar”.
É por meio das contas demo que os influencers gravam os vídeos em que aparecem mostrando aos seguidores que estão faturando grandes somas de dinheiro com o tigrinho. Na verdade, a conta é pré-programada para fazer com que pareça que os divulgadores estão vencendo.
Os prints dos “comprovantes” de pagamento dos prêmios que os influenciadores costumam divulgar, na verdade, são as transferências realizadas pelo serviço de divulgação, descobriu a Polícia.
“Ele coloca eu acho que é mil reais na conta teste, ou mais, depende”, disse em uma das conversas captadas pela Polícia a influencer Victoria Haparecida de Oliveira Roza. “Ai você vai jogando lá, o jogo do tigre é muito bom, o do dragão e o do touro, são os três que eu jogo. Aí você coloca 5 ou 10 reais. Como não é seu dinheiro, tanto faz. Mas aí você só grava quando você ganhar”.
Em outro trecho, ela aparece admitindo o golpe: “Amiga, seja sincera, tá, entre nós. A conta demo ela tem diferença da tipo, da nossa. Ela é mais fácil, ela é mais assertiva, ela é tipo programada. Porque mulher, eu ganho muito nas contas demo”.
Durante a Gizé, a Polícia Civil se deparou com fotos dos divulgadores em Dubai, nos Emirados Árabes Unidos, acompanhado de alguns dos estrangeiros, possivelmente, donos ou gerentes da plataforma.
“Conforme mensagens trocadas entre Milena Peixoto e Karol Justino, nos dias 21 e 22 de maio de 2024, Milena diz que o chinês é dono da plataforma que ela está divulgando e que ele está indo para todo canto com os investigados (Milena, Janisson e Victória), destacando-se que na época os investigados se encontravam em Dubai em viagem paga por donos de plataformas com as quais os influenciadores digitais colaboraram”, escreveu a Polícia Civil em um dos relatórios.
“Eles me pagam 10 mil por plataforma e lançam plataforma de 3 em 3 dias”, afirmou Tassia Avelina Franklin Leandro, outra influencer indiciada. Alguns dos influenciadores do Cariri afirmaram ganhar até R$ 200 mil por mês com a divulgação do Tigrinho.
Em depoimento, um outro investigado chegou a fazer um esboço da estrutura do grupo. “Conforme confessado pelo indiciado JANISSON MOURA SANTOS, o ‘jogo do tigrinho’ envolve uma rede criminosa hierarquizada, a qual tem como chefe o chinês, tratando-se de pessoa até então anônima”, escreveu o delegado Giovani Silva de Moraes.
“Logo abaixo do dono/chefe (chinês), existe o ‘gerente da plataforma’, tratando-se da pessoa responsável por entrar em contato com os influenciadores digitais e fechar o acordo de cooperação”, conclui.
O delegado prossegue descrevendo haver ainda a figura do “agente de plataforma”, que, “geralmente” é um brasileiro que tem acesso aos influenciadores digitais.
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“Abaixo do gerente se encontra o influenciador digital, responsável por fazer a divulgação da plataforma; e, como último estágio da organização criminosa, encontram-se os assessores dos influenciadores digitais, os quais são os responsáveis por administrar os grupos e divulgar as plataformas sob as ordens dos influenciadores”.
O fato dessas pessoas estarem fora do País é uma dificuldade a mais para que a Polícia combata esse crime. Desde 1º de janeiro deste ano, portaria do Ministério da Fazenda determina que os sites de exploração de jogos eletrônicos de azar tenham sede e administração no Brasil, sendo vedadas pessoas jurídicas que sejam filiais, sucursais, agências ou representações de empresas do exterior.
Em novembro passado, o Senado Federal instaurou a Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) para investigar “a crescente influência dos jogos virtuais de apostas on-line no orçamento das famílias brasileiras”.
Desde então, a CPI das Bets, como ficou conhecida, tem convidado para depor influenciadores digitais e empresários associados à prática, assim como têm ouvido policiais que, ao redor do País, investigam os grupos que exploram o jogo do tigrinho.
Em 26 de novembro, foi a vez do delegado Erick Sallum, da Polícia Civil do Distrito Federal (PCDF). Em sua apresentação, Sallum descreveu ter descoberto que os criminosos se valem de, pelo menos, três estratagemas para lucrar com o tigrinho: sites hospedados em países onde a exploração do jogo de azar é legal; ferramentas de disparo em massa de SMS; e abertura de instituições de financiamento (open finances).
O delegado relatou que, mesmo estando em português e aceitando Pix como forma de pagamento, os servidores desses sites são de países como Geórgia, Curaçao ou Ilhas Virgens Britânicas.
Dessa forma, quando a Agência Nacional de Telecomunicações (Anatel) ou a Justiça determinam que as provedoras de internet bloqueiem um determinado site de apostas, os golpistas podem mudar uma única letra do endereço virtual e continuar operando normalmente.
Para divulgar o site hospedado em servidor estrangeiro, os proprietários das plataformas recorreram tanto a influenciadores digitais, quanto a anúncios comprados em sites ou aplicativos. O POVO já registrou, até mesmo, o uso de hacking para a divulgação — uma vulnerabilidade existente em um site da Universidade Federal do Ceará (UFC), por exemplo, foi usada para a publicidade de plataformas de apostas online.
Erick Sallum afirmou na CPI que os golpistas recorrem também a empresas de telemarketing que oferecem serviços de disparo em massa. Ele contou, que, ao pedir a uma dessas empresas os dados cadastrais de quem havia solicitado o serviço para divulgar o tigrinho, foi informado que a contratação se dava apenas mediante o fornecimento de um nome e de um email.
Já o pagamento poderia ser feito com criptomoedas. “A criptomoeda, a gente não consegue rastrear”, desabafou o delegado. “Isso é um desafio para as polícias mundiais, não é só no Brasil, isso é FBI (Polícia Federal do Estados Unidos)”.
Assista à participação do delegado Erick Sallum na CPI das Bets
O delegado também relatou que, em maio de 2024, três chineses foram presos após entrarem no Brasil com visto de turista e, em São Paulo, pagarem R$100 para usarem um CPF, com o qual criaram uma instituição de pagamento.
Conforme o Banco Central, essas instituições não precisam de autorização para funcionar desde que movimentem menos de R$ 300 milhões por ano e tenham menos de R$ 30 milhões em recursos em conta. Essas open finances também não são passíveis de bloqueio de valores por meio do Sistema de Busca de Ativos do Poder Judiciário (Sisbajud).
“Então, o pilantra foi ao banco tradicional, abriu a instituição de pagamento”, afirmou o delegado. “Aí, depois, o pilantra procura outro pilantra e abre uma (conta) embaixo. E só lá embaixo você teria os usuários finais. Isso aqui gera um embaralhamento do dinheiro que é impossível ser rastreado”.
No caso da organização criminosa investigada pela PCDF, foi identificado que, em seis meses, R$2,5 bilhões foram enviados para o Exterior a partir de casas de câmbio. Os criminosos utilizavam as operações denominadas FX, em que é possível enviar até US$ 10 mil por pessoa física para fora do País sem precisar de autorização ou mesmo declarar à Receita.
Conforme Sallum, os criminosos enviaram esse montante bilionário a partir de CPFs, muitos de crianças, de idosos e, até mesmo, de pessoas mortas. “A própria Casa de câmbio mandou para o Conselho de Controle de Atividades Financeiras (Coaf), falou: ‘Olha, essa instituição de pagamento está me mandando planilha com 500 pessoas mortas. E, quando nós pedimos para eles corrigirem, eles mandaram de novo, só trocaram o nome’”.
Erick Sallum ainda apresentou à CPI matéria de uma TV angolana acompanhando uma batida da Polícia daquele país em um hotel da cidade de Luanda onde funcionava uma central de uma casa de apostas que operava no Brasil.
“Esses são operadores que ficam ali no joguinho, alimentando, mandando mensagem, induzindo as pessoas a jogarem”, afirmou o delegado. Na ação policial, cidadãos chineses foram presos.
Para Sallum, faltam mecanismos legislativos para punir de forma mais adequada quem explora o tigrinho. Ele propôs a tipificação dos crimes de exploração de cassino online e de divulgação de cassino desautorizado. Além disso, defendeu um maior rigor em relação às instituições de pagamento e aos bancos que permitem esse tipo de transação.
“E isso aqui, senadores, não é só para bet, viu? O PCC (Primeiro Comando da Capital), o Comando Vermelho, todas as facções criminosas, tráfico de drogas, crimes cibernéticos, estão todos se utilizando de uma coisa chamada instituição de pagamento”.
Em depoimento à CPI das Bets no último mês de novembro, o empresário Fernando Oliveira Lima, conhecido como Fernandin OIG, buscou fazer uma diferenciação entre o que seria o Fortune Tiger lícito e o que seria o Tigrinho “pirata”. Conforme afirmou, os jogos ilegais utilizam algoritmos manipulados, que fazem com que o apostador perca mais.
De acordo com ele, o Tigrinho original é de propriedade da empresa PG Soft, criada em 2015 e cuja sede fica em Malta, um pequeno país europeu composto por um arquipélago no Mar Mediterrâneo. O empresário afirmou que o jogo licenciado tem a certificação GLI (Gambling License International) e retorna 97% do dinheiro apostado pelo jogador.
“O que eu verifiquei? É que esses sites piratas, que a gente chama hoje de chineses, que estão realmente fazendo todo esse problema no Brasil, eles não são... o Tigrinho deles não é da PG Soft; é um algoritmo manipulado que até o meu time de dev (programação) viu que é vendido, vendido por poucos dólares lá nos sites de dark web, essas coisas”, disse Fernando.
Em sua fala, o empresário ainda mencionou que a Associação Nacional de Jogos e Loterias (ANJL), da qual ele faz parte, realizou um estudo em que, em 24 horas, foram detectados 2.037 sites que exploravam o Tigrinho falso.
Em novembro de 2024, reportagem da BBC sobre a PG Soft apontou que a empresa chegou a ter a operação suspensa pelo governo de Malta em setembro de 2020, mas que a licença foi novamente concedida e o grupo voltou a funcionar de maneira legal.
Segundo a reportagem, a PG Soft diz ter mais de 200 empregados, mas documentos vazados no que ficou conhecido como Paradise Papers mostra que mais de 60 empresas diferentes foram registradas no mesmo andar do pequeno prédio de Malta no qual a PF Soft diz ser sua sede.
A BBC também descobriu que, no Linkedln, 24 pessoas aparecem como sendo funcionários da PG Soft, sendo que a maioria delas é de países como Tailândia, Indonésia e Singapura.
Em seu site, a PG Soft disse ter desenvolvido uma ferramenta que permite com que os jogadores possam identificar se um jogo atribuído a empresa é autêntico ou não. Jogos falsos, afirma a empresa em um texto em inglês, podem permitir roubos de dados, violações de privacidade e, até mesmo, perdas financeiras.
Fernando foi convocado à CPI das Bets enquanto sócio da One Internet Group (OIG), uma das empresas investigadas pela Polícia Civil de São Paulo em um inquérito sobre lavagem de dinheiro através das bets.
O Conselho de Controle de Atividades Financeiras (Coaf) identificou atipicidade em uma transação em que a OIG pagou R$1,7 milhão a uma empresa que está no nome de uma mulher cuja profissão é faxineira. Entrevistada pelo portal Metrópoles, a mãe da mulher que teria recebido o pagamento estranhou a transação. “Alguém está usando o documento dela, não é possível”, disse.
Em seu depoimento à CPI, Fernando disse que só tomou conhecimento do caso por meio da imprensa e que precisaria consultar o seu departamento jurídico para se manifestar sobre o caso.
Durante as diligências da operação Gizé, a Polícia Civil do Ceará (PC-CE) se deparou com pessoas que perderam até R$ 60 mil com as apostas do Jogo do Tigrinho. Nos três depoimentos de vítimas dos influenciadores Cariri ao qual O POVO teve acesso, foram vários os pontos em comum.
Todas começaram a apostar acreditando que poderiam ganhar tanto quanto os influenciadores digitais diziam ganhar em suas redes sociais. Nenhuma das vítimas sabia que aqueles valores ou somente eram alcançados nas contas manipuladas, ou, então, eram valores referentes às comissões pagas pelas plataformas, não às apostas.
Outros elementos que apareceram nas oitivas foram as dicas falsas dadas pelos influencers, que diziam, por exemplo, que determinada plataforma estava pagando mais em determinada hora — o que não acontecia.
As vítimas também relataram ter tido dificuldades para sacar valores nas raras vezes que ganhavam. Um dos relatos dá conta de que as plataformas exigiam que o apostador jogasse mais para receber os prêmios e, nesse meio tempo, a vítima acabava perdendo o que havia ganhado.
Outro golpe aplicado pelos influenciadores dizia respeito a sorteios feitos por eles próprios. Uma das vítimas disse que Victoria Oliveira fazia sorteios prometendo depósitos de determinados valores, mas que o dinheiro não foi pago quando a depoente foi a vencedora.
As consequências dessas práticas nas vidas das vítimas foram nefastas. Uma delas disse ter recorrido a agiotas para pagar as dívidas que contraiu com o Tigrinho, assim como chegou a precisar vender uma motocicleta.
Outra disse que, por seis meses, gastou “tudo o que tinha” com os cassinos onlines, tendo deixado de comprar “coisas básicas” para sua família e, ainda, perdido o emprego. Não bastasse as perdas financeiras, também havia o adoecimento psiquiátrico. Uma das vítimas disse que, “por pouco”, não tirou a própria vida por causa das dívidas contraídas.
Uma das indiciadas na operação Gizé, Victoria Haparecida de Oliveira Roza, apareceu nas diligências policiais mostrando ter conhecimento do prejuízo causado pelo jogo clandestino.
Em um áudio encontrado pelos investigadores, ela disse que uma vítima contactou-a dizendo que estava “viciada em jogo” e que havia contraído uma dívida de R$ 3 mil. A mulher pedia um conselho a Vitoria para parar de jogar, pois o marido dela não sabia do vício.
“Ela não sabe o que fazer, diz que faz dois dias que não joga”, disse Vitória no áudio. “Ah, meu Deus. Agora, como diabo essa menina conseguiu meu número? Gente, juro, eu só respondi porque achei que era alguma coisa relacionada a (...). Ah, meu Deus, ela fez um escândalo. Se eu soubesse que era isso. Meu Deus do céu”.
Na CPI das Bets, Lucimério Barros Campos, delegado da Polícia Civil de Alagoas, trouxe um exemplo de uma das práticas mais vis com as quais ele se deparou ao investigar os influenciadores daquele estado que estavam envolvidos com o Tigrinho.
Ele narrou uma sketch feita por um influencer em que ela ia a uma feira livre e fingia não ter dinheiro para comprar um peixe. Então, o vídeo mostra a influenciadora tendo uma ideia: ela aposta em um cassino online.
“E aí ela diz: ‘Está vendo você? Você, que está aí sem dinheiro pra fazer sua feira? Você pode jogar na bet tal, e é fácil assim’”, descreveu o delegado. “Quantas pessoas simples estão ali realmente precisando pagar uma conta de energia não vão cair numa publicidade orgânica dessa?”, questionou.
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