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No Ceará, 20 espécies ameaçadas de extinção são alvos do tráfico de animais
Reportagem Seriada

No Ceará, 20 espécies ameaçadas de extinção são alvos do tráfico de animais

Com quatro espécies regionalmente extintas, levantamento exclusivo do O POVO+ com dados do Centro de Triagem de Animais Silvestres do Ceará (Cetas-CE) dá conta do recebimento de 434 indivíduos em algum grau de ameaça de extinção no Estado
Episódio 4

No Ceará, 20 espécies ameaçadas de extinção são alvos do tráfico de animais

Com quatro espécies regionalmente extintas, levantamento exclusivo do O POVO+ com dados do Centro de Triagem de Animais Silvestres do Ceará (Cetas-CE) dá conta do recebimento de 434 indivíduos em algum grau de ameaça de extinção no Estado
Episódio 4
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Há muitos fatores que influenciam o sumiço de uma espécie. Às vezes, são fenômenos ambientais incontroláveis, como a queda do asteroide que, há cerca de 66 milhões de anos, resultou na extinção de 75% de todas as espécies da Terra.

Outras vezes, são as condições climáticas de uma Terra em constante transformação, alternando por milhões de anos entre eras frias e quentes.

A onça-parda (Puma concolor) está em perigo de extinção no Ceará(Foto: Samuel Setubal)
Foto: Samuel Setubal A onça-parda (Puma concolor) está em perigo de extinção no Ceará

Mas nem o poder descomunal da Terra, nem as forças cósmicas foram tão desastrosas e tão rápidas quanto o homem.

De acordo com a União Internacional para a Conservação da Natureza (IUCN, na sigla em inglês), mais de 47 mil espécies estão em risco de extinção no mundo. É o equivalente a 28% de todos os seres vivos conhecidos.

Desmatamento, urbanização, caça e pesca predatórias são alguns dos pontos de tensão entre a humanidade e a biodiversidade. E então, entra o tráfico de animais: um comércio lucrativo que sequestra em abundância, tanto criando novas extinções, quanto agravando as já existentes.

No Ceará, pelo menos 20 espécies de animais ameaçados de extinção estão na mira do tráfico, considerando os animais recebidos pelo Centro de Triagem de Animais Silvestres do Ceará (Cetas-CE), do Ibama, entre 2018 e 2024.

Os dados são do Sistema de Gestão dos Centros de Triagem de Animais Silvestres (sisCetas) do Ceará, obtidos pelo O POVO+ por meio da Lei de Acesso à Informação (LAI). Ao todo, foram 325 espécies recebidas pelo subórgão do Ibama no período, entre mamíferos, aves, anfíbios e répteis.

Ao cruzar os dados do sisCetas com a Lista Vermelha de Espécies Ameaçadas da Fauna do Ceará, identificamos 20 espécies recebidas pelo Cetas-CE em algum grau de extinção.

 

Espécies em extinção recebidas pelo Cetas-CE

 

Ao todo, foram 434 indivíduos em extinção recebidos pelo Cetas-CE, inclusive alguns considerados regionalmente extintos no Estado. É o caso de quatro aves: tucano-toco (Ramphastos toco), arara-canindé (Ara ararauna), flamingo (Phoenicopterus ruber) e arara-vermelha (Ara chloroptera).

Segundo a Lista Vermelha do Ceará, elas integram as nove espécies de aves regionalmente extintas no Estado. Significa que não existem mais indivíduos dessas espécies no Ceará, por mais que eles estejam presentes em outras regiões do Brasil com diferentes graus de ameaça.

Araras-canindés (Ara ararauna) são consideradas como regionalmente extintas no Ceará. Na foto, araras no centro de reabilitação do Instituto Pró-Silvestre, ONG parceira do Ibama(Foto: JÚLIO CAESAR)
Foto: JÚLIO CAESAR Araras-canindés (Ara ararauna) são consideradas como regionalmente extintas no Ceará. Na foto, araras no centro de reabilitação do Instituto Pró-Silvestre, ONG parceira do Ibama

A presença desses animais no Cetas-CE dá pistas das dinâmicas e das rotas do tráfico no Brasil. A arara-canindé, por exemplo, é considerada como Menos Preocupante (LC) nas categorias de risco de extinção a nível nacional, segundo o Sistema de Avaliação do Risco de Extinção da Biodiversidade (Salve) do Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio).

Ela tem registros na Amazônia, no Cerrado, na Mata Atlântica e no Pantanal. Além da Bahia, do Maranhão e do Piauí, ela não é encontrada em outros estados caatingueiros.

“As principais ameaças à arara-canindé são perda de habitat (agricultura e pecuária), caça, captura e tráfico de indivíduos (principalmente na Bolívia e Guiana). Segundo registros de apreensão do Ibama/Goiás e Ibama/RS, esta espécie tem sido vítima do tráfico ilegal de animais silvestres no Brasil”, indica a ficha da arara-canindé do ICMBio.

O papagaio-verdadeiro (Amazona aestiva) está em perigo de extinção e foi o animal em extinção mais recebido pelo Cetas-CE entre 2018 e 2024. Na foto, papagaios no centro de reabilitação do Instituto Pró-Silvestre, ONG parceira do Ibama(Foto: JÚLIO CAESAR)
Foto: JÚLIO CAESAR O papagaio-verdadeiro (Amazona aestiva) está em perigo de extinção e foi o animal em extinção mais recebido pelo Cetas-CE entre 2018 e 2024. Na foto, papagaios no centro de reabilitação do Instituto Pró-Silvestre, ONG parceira do Ibama

Das espécies ameaçadas recebidas pelo Cetas-CE, foram 15 aves e cinco mamíferos. Ainda entre as aves, o papagaio-verdadeiro (Amazona aestiva) registrou o maior número de indivíduos recebidos, com 249 papagaios.

A maioria (148, equivalendo a 59,4%) veio de apreensões, ou seja, diretamente do tráfico, resultando em infrações ambientais. Em seguida, 69 indivíduos chegaram por meio de entregas voluntárias — quando o animal é levado ao Ibama por conta própria da pessoa que estava em posse dele.

Ainda que a entrega voluntária não resulte em infração ambiental, ela ainda é um sinal da influência do tráfico de animais. Afinal, para alguém estar em posse de um animal silvestre, foi antes necessária a captura e venda dele, mesmo que por terceiros.

 

Top 10 espécies ameaçadas de extinção recebidas pelo Cetas-CE (2018 a 2024)

 

Outra espécie em um grau preocupante é o pintassilgo-do-nordeste (Spinus yarrellii). Também conhecido como coroinha, ele está criticamente em perigo de extinção.

No período analisado, o Cetas-CE recebeu um indivíduo de pintassilgo-do-nordeste, oriundo de uma apreensão. A baixa apreensão é sinal de alerta: a categoria criticamente em perigo indica aquelas espécies que enfrentam risco extremamente elevado de extinção na natureza.

E como a Lista Vermelha da IUCN não considera uma espécie extinta até que extensas pesquisas tenham sido realizadas e comprovadas, é possível que espécies extintas ainda estejam listadas como “Criticamente em Perigo”.

 

Entenda as classificações de grau de extinção

 

Por isso, o pintassilgo-do-nordeste é alvo do Plano de Ação Nacional para a Conservação das Aves da Caatinga (PAN Aves da Caatinga). Uma das estratégias é manter uma população destes animais em uma área protegida, a princípio a Reserva Particular do Patrimônio Natural do Ceará (RPPN) Serra das Almas.

“Mas para a gente manter uma população estável lá, você tem que ter uma quantidade de indivíduos que possam ser soltos”, comenta Alberto Klefasz, analista ambiental do Ibama. “E aí não adianta você soltar só os machos, tem que soltar de preferência em casais; mas é difícil encontrar as fêmeas porque os que são mais encontrados no tráfico são os machos.”

 

 

Animais em extinção ficam entre a soltura e o cativeiro

Entre os mamíferos, foram cinco espécies em grau de extinção: a onça-parda (Puma concolor), jaguarundi (Puma yagouaroundi), gato-do-mato-pequeno (Leopardus tigrinus), guariba-da-caatinga (Alouatta ululata) e veado-catingueiro (Mazama gouazoubira).

Os felinos tiveram o maior número de indivíduos recebidos. Foram cinco onças-pardas, quatro gatos-do-mato-pequenos e três jaguarundis, principalmente de apreensões e de resgates.

Ao mesmo tempo, também foram os que conseguiram algum destinamento. Três dos gatos-do-mato-pequenos alcançaram a soltura, enquanto o outro precisou ser encaminhado para um cativeiro.

Predadores são essenciais para manter o equilíbrio dos ecossistemas(Foto: Samuel Setubal)
Foto: Samuel Setubal Predadores são essenciais para manter o equilíbrio dos ecossistemas

Um animal é destinado ao cativeiro quando não possui condições de ser solto na natureza por qualquer motivo. Envolve o encaminhamento do animal para um empreendimento licenciado, como criadores científicos, criadores comerciais, criadores conservacionistas, mantenedouros e zoológicos.

Dois dos três jaguarundis também foram soltos, com o terceiro ainda na categoria “Outros”. Essa categoria pode incluir o encaminhamento de um animal para reabilitação em outro Cetas ou zoológico de apoio com a intenção de que ele retorne posteriormente.

 

Destinamento dos animais ameaçados de extinção recebidos pelo Cetas-CE

 

A soltura de felinos é especialmente importante por serem animais de topo de cadeia. Predadores cumprem um papel essencial no equilíbrio das populações de animais, e em consequência no equilíbrio ecológico.

No caso desses mamíferos, cada indivíduo retirado da natureza pesa muito nos ecossistemas, pressionando ainda mais os conservacionistas a serem bem-sucedidos na soltura deles.

O guariba-da-caatinga, o veado-catingueiro e o pintassilgo-do-nordeste recebidos pelo Cetas-CE ainda aguardam destinação.

 

 

Metodologia

Os dados do Cetas-CE foram obtidos pelo O POVO+ por meio da Lei de Acesso à Informação (LAI), solicitados ao Ibama em dezembro de 2024. Eles correspondem aos recebimentos e às destinações de animais silvestres pelo Centro de Triagem de Animais Silvestres do Ceará (Cetas-CE) entre os anos de 2018 a 2024, extraídos do Sistema de Gestão dos Centros de Triagem de Animais Silvestres (sisCetas).

Foram disponibilizados pelo órgão sete documentos, de 264 páginas no total, em formato .pdf. Essas informações foram sistematizadas manualmente no Google Planilhas pela reportagem, gerando um arquivo .csv.

Para identificar as espécies em algum grau de extinção, a reportagem cruzou os dados do Cetas-CE com a Lista Vermelha de Espécies Ameaçadas da Fauna do Ceará, especificamente as de aves, mamíferos terrestres e répteis e anfíbios.

Na foto, araras no centro de reabilitação do Instituto Pró-Silvestre(Foto: JÚLIO CAESAR)
Foto: JÚLIO CAESAR Na foto, araras no centro de reabilitação do Instituto Pró-Silvestre

Para isso, foi utilizada a ferramenta Notebook LM, inteligência artificial do Google. A reportagem carregou a planilha em formato .csv na ferramenta e os três .pdfs das listas de animais ameaçados na plataforma de IA e a partir disso solicitou a identificação das espécies presentes tanto na planilha, quanto nas listas.

Toda informação apresentada pela ferramenta é acompanhada de uma citação, que indica onde aquele conteúdo consta no texto original. Após receber as respostas, houve um trabalho de conferência e apuração das informações. Vale lembrar que diferentemente de algumas ferramentas de IA, o Notebook LM não gera memória das conversas.

Para reforçar o compromisso com a transparência e a reprodutibilidade, O POVO+ disponibiliza os dados e códigos publicamente em seu perfil no GitHub, que pode ser acessado clicando aqui.

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