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O homem de três corações: a história de Antônio Pereira de Moura
Reportagem Seriada

O homem de três corações: a história de Antônio Pereira de Moura

No segundo episódio da série sobre transplante de órgãos, a história do seu Antônio que está marcada na pele, escondida sob o tecido da camisa. A cicatriz vertical, que começa no colo e termina um pouco antes do abdômen, bem no centro do corpo, é a lembrança de seus dois transplantes cardíacos

O homem de três corações: a história de Antônio Pereira de Moura

No segundo episódio da série sobre transplante de órgãos, a história do seu Antônio que está marcada na pele, escondida sob o tecido da camisa. A cicatriz vertical, que começa no colo e termina um pouco antes do abdômen, bem no centro do corpo, é a lembrança de seus dois transplantes cardíacos
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Coração. Um coração adulto em repouso bate entre 60 e 100 vezes por minuto. São cerca de 4 a 6 mil batimentos por hora, aproximadamente 3 milhões por mês e mais de 3 bilhões em uma vida.

O que é possível viver entre os 3 bilhões de batimentos de um coração? O olhar pensativo de Antônio Pereira de Moura não inibe a risada do tipo “ora, que pergunta”.

Sentado em sua casa, no bairro Tabapuazinho, na Região Metropolitana de Fortaleza, ele compartilha conosco a história de sua vida. Os quadros cheios de registros com a família retratam os afetos cultivados ao longo de seus 62 anos.

ParaTodosVerem: Antônio Moura observa um quadro com um recorte de jornal da notícia do seu primeiro transplante de coração. Ele é um homem branco de cabelo grisalho e olhos azuis(Foto: FCO FONTENELE)
Foto: FCO FONTENELE ParaTodosVerem: Antônio Moura observa um quadro com um recorte de jornal da notícia do seu primeiro transplante de coração. Ele é um homem branco de cabelo grisalho e olhos azuis

Com um ar de incerteza, balança a cabeça para indicar que não entendeu a pergunta. A tranquilidade com que pensa na própria trajetória faz parecer que sua vida foi como outra qualquer: estudou até onde deu, trabalhou, casou-se duas vezes, teve filhos.

Mas a diferença da história que estamos contando — a história do seu Antônio — está marcada na pele, escondida sob o tecido da camisa. A cicatriz vertical, que começa no colo e termina um pouco antes do abdômen, bem no centro do corpo, é a lembrança de que seus mais de 3 bilhões de batimentos foram compartilhados entre três corações.

Ele foi o primeiro paciente a passar por um transplante de coração na rede pública de transplantes do Ceará, em 1999. O primeiro a receber um coração no Hospital de Messejana (HM) e o primeiro a receber um segundo coração em um retransplante.

Uma vida entre as batidas e as falhas de um dos órgãos mais importantes do corpo humano. Atualmente, 436 pessoas esperam por um novo coração no Brasil — a maioria, homens entre 50 e 64 anos.



O médico e coordenador cirúrgico do Serviço de Transplante Cardíaco do HM, Juan Mejia, que participou dos transplantes de Antônio, diz que o Brasil, apesar de transplantar muito — cerca de 500 corações por ano —, ainda está abaixo da recomendação da Organização Mundial da Saúde (OMS): entre 6 e 8 transplantes cardíacos por milhão de habitantes.

A escassez de doadores, o tempo crítico e os problemas de compatibilidade sanguínea estão entre os principais fatores que tornam os transplantes cardíacos procedimentos tão difíceis e sensíveis.

Características que acrescentam à história de Antônio um "Q" a mais de incredulidade. Pois, em um país tão diverso e com um sistema de transplantes ainda em desenvolvimento, ele teve a sorte de encontrar não um, mas dois corações.

Gratidão que Antônio carrega na memória e no coração — eternizada nos nomes dos três filhos mais jovens: Ruan, Davi e Juliana. Uma homenagem aos médicos Juan, David e Juliana que lhe devolveram a vida. “Eles cuidaram muito bem de mim”, rememora.

 

 

A vida antes dos transplantes

Rodeado de carinho desde os primeiros anos, Antônio Pereira de Moura é o caçula homem entre cinco irmãos: três homens e duas mulheres. Nasceu e viveu boa parte da vida em Fortaleza, com a mãe, o pai e a família.

Ele lembra, com uma risada sapeca e envergonhada, que sempre foi muito popular na escola. Estudou até a quinta série e, muito jovem, precisou deixar os estudos após o pai falecer de problemas cardíacos.

“Papai faleceu antes dos meus 15, morreu muito jovem. Daí tive de ajudar minha mãe em casa. A família toda já era da marcenaria, então comecei a fazer alguns trabalhos também”, conta.

ParaTodosVerem: Antônio Moura e os irmãos em uma das tradicionais feijoadas da família(Foto: Reprodução/ Arquivo pessoal)
Foto: Reprodução/ Arquivo pessoal ParaTodosVerem: Antônio Moura e os irmãos em uma das tradicionais feijoadas da família

Antônio ressalta mais de uma vez, durante a conversa animada, a união entre todos, o carinho e a tranquilidade com que sempre tentou levar a vida.

“Sempre fui muito feliz. Na juventude gostava de brincar, organizar quadrilhas juninas, times de futebol de bairro. Estive sempre no meio das pessoas. Gostava de dançar — inclusive, bêbado, em cima de carros durante os comícios”, comenta, risonho.

Mas tão marcantes quanto os transplantes foram os acontecimentos que o colocaram nessa estrada.

ParaTodosVerem: Antônio Moura sentado em frente aos quadros da família(Foto: FCO FONTENELE)
Foto: FCO FONTENELE ParaTodosVerem: Antônio Moura sentado em frente aos quadros da família

Foi no retorno de uma festa com o irmão que Antônio perdeu o controle do automóvel em uma curva e acabou batendo. “O veículo ficou destruído, quem se aproximou do acidente tinha certeza que não tinha como alguém ter sobrevivido”.

Para a surpresa da família, após uma rápida ida ao hospital, ele foi mandado para casa, sem nenhum ferimento ou sequela.

Foi só ao retornar ao trabalho que Antônio começou a sentir desconfortos no coração, sempre após pequenos esforços físicos. Não conseguia concluir trabalhos e era frequentemente enviado ao hospital com fraqueza e desmaios.

Em seguida, veio uma série de visitas médicas, exames e internações. Ninguém conseguia definir com exatidão quais as causas que o levavam a não conseguir executar com a mesma facilidade de antes atividades simples do dia a dia.

O homem conta que só quando foi encaminhado ao Hospital de Messejana e avaliado pelos médicos João David e Juan Mejia encontrou finalmente as respostas buscadas durante meses.

“Me colocaram deitado na maca, os médicos chegaram, me olharam. Aí o Dr. Juan disse logo de cara: ‘aí só outro coração resolve’. Falou e foi ponto final”, comenta.

João David de Souza Neto, cirurgião coordenador da Unidade de Transplante e Insuficiência Cardíaca do Hospital de Messejana, detalha a complexidade da condição de Seu Moura, os desafios estruturais da época e o impacto transformador desse evento.

 

 

Um coração que virou legado

O diagnóstico de Antônio apontava para uma insuficiência cardíaca grave. À época, os tratamentos disponíveis, como medicamentos e marca-passo, eram ineficazes diante da progressão acelerada da condição.

Em meio à piora do quadro, Antônio foi colocado na lista de espera para transplantes. Era o fim dos anos 1990, e o Hospital de Messejana, referência em doenças cardíacas, ainda não tinha um serviço consolidado.

Até então, seis procedimentos semelhantes haviam sido realizados em hospitais privados. Mas agora, o objetivo era ousado: provar que a rede pública poderia salvar vidas em cirurgias de alta complexidade, criando um serviço “duradouro, longo e perene”, explica João David.

ParaTodosVerem: À esquerda o cirurgião João David, um homem branco de cabelo grisalhos e à direita o paciente Antônio Moura, um homem branco de cabelo grisalhos(Foto: Daniel Galber - Especial para O Povo)
Foto: Daniel Galber - Especial para O Povo ParaTodosVerem: À esquerda o cirurgião João David, um homem branco de cabelo grisalhos e à direita o paciente Antônio Moura, um homem branco de cabelo grisalhos

“A realidade hospitalar daquele tempo era de improvisos. Não havia uma equipe especializada, nem protocolos estabelecidos. Onde hoje funciona uma unidade completa de insuficiência cardíaca, antes havia somente um espaço vazio”, comenda o cirurgião.

A Unidade de Terapia Intensiva (UTI), improvisada, era a única disponível — voltada à respiração, não ao coração. E não existia uma Central de Transplantes como hoje, responsável por organizar a captação e a redistribuição de órgãos.

O aprimoramento de técnicas cirúrgicas permite que, hoje, o órgão seja extraído de um doador e transportado dentro de um intervalo de quatro horas até o receptor.

Antes, a logística era mais complexa. O coração não era extraído até o momento da efetivação da doação. O doador precisava ser levado vivo "Apesar de manterem os batimentos cardíacos com auxílio de respiradores e outros maquinários médicos, os pacientes doadores já estavam diagnosticados com morte encefálica, condição irreversível."  até o local da cirurgia.

ParaTodosVerem: Imagem do quadro de organização do Centro de Transplantes do Ceará(Foto: FERNANDA BARROS)
Foto: FERNANDA BARROS ParaTodosVerem: Imagem do quadro de organização do Centro de Transplantes do Ceará

Infelizmente, muitas vezes o coração não chegava em condições para ser transplantado, já que o doador podia sofrer uma parada cardiorrespiratória durante o percurso.

João David, relembra que, no início, ele e Juan Mejia eram tudo: “médicos, enfermeiros e plantonistas”. Por vezes precisaram revesar os cuidados em jornadas de até 48 horas seguidas ao lado de Antônio.

Atitude que o paciente relembra carinhosamente até hoje. “Nunca vou esquecer do doutor Juan e do doutor João, dois dias sem pausa ao meu lado. É o tipo de cuidado que não da para esquecer”.

O cirurgião comenta que “como um milagre”, seis meses após a inclusão de Antônio da lista de espera, um doador apareceu dentro do próprio hospital — algo raríssimo.

Isso poupou tempo, deslocamento e riscos. A cirurgia reuniu mais de dez profissionais, entre anestesistas, enfermeiros e cirurgiões.

“Era o primeiro transplante cardíaco da história do Hospital de Messejana, e todos queriam fazer parte”, comenta David.

Se presenciar uma história como essa já parece excitante para alguém menos envolvido na medicina, imagine para um médico formado ou em formação. Naquele hospital que não ficava no eixo Rio-São Paulo, um evento histórico estava prestes a acontecer.

 

 

Três corações, uma história

O primeiro coração transplantado deu a Antônio mais cinco anos de vida. Mas em 2005, ele voltou a enfrentar complicações, e passou por um novo procedimento: tornou-se o primeiro paciente do Ceará a receber um retransplante de coração. Uma nova chance, um novo recomeço.

Assim, ele passou a carregar uma história única no peito — com três corações: o que nasceu com ele, o primeiro transplantado, e o segundo, que pulsa até hoje.

Brincalhão, Moura comenta que cada um dos três filhos mais novos foi feito entre os intervalos de cada transplante, “para testar se o coração dava conta do recado”. A esposa, na onda sapeca do marido, chegou a pedir que os médicos não o transplantassem mais: “Cada coração novo, o ‘homi’ quer um filho”.

Matéria do O POVO de 1999 sobre o transplante de Antônio Moura(Foto: O POVO DOC)
Foto: O POVO DOC Matéria do O POVO de 1999 sobre o transplante de Antônio Moura

Para o médico João David, o sucesso do primeiro transplante foi significativo para a transformação do Hospital de Messejana e do sistema de saúde pública do Ceará. A repercussão da operação atraiu investimentos, fortaleceu o programa de transplantes e mostrou que o serviço público brasileiro era, sim, capaz de fazer história.

Atualmente o hospital é o maior centro de transplante cardíaco do Norte e Nordeste, e um dos mais importantes do Brasil. Conta com uma equipe completa — médicos, enfermeiros, psicólogos, assistentes sociais, dentistas, nutricionistas — e uma unidade exclusiva para insuficiência cardíaca, com 28 leitos.

Realiza transplantes para pacientes de vários estados, do Tocantins ao Maranhão e, em 2024, atingiu o recorde de 35 transplantes realizados em um único ano.

ParaTodosVerem: O médio João David e Antônio Moura abraçados no Hospital de Messejana (Foto: Daniel Galber - Especial para O Povo)
Foto: Daniel Galber - Especial para O Povo ParaTodosVerem: O médio João David e Antônio Moura abraçados no Hospital de Messejana

Uma importância que tornou Antônio uma celebridade entre os médicos e enfermeiros. Como se estivesse em casa, ele caminha alegre e cumprimenta do recepcionista até o plantonista mais jovem.

Alguns passam por ele e em tom de brincadeira o repreendem: “seu Moura, se cuida, seu Moura, não fica zanzando por aí”. Antônio ri, e comenta: “eles ficam me dando sermão, dizem que não posso ficar vadiando, mas eu sou teimoso mesmo”.

Perguntamos ao cirurgião João David se ele sente que, para além de um paciente, ganhou um amigo: “ganhei um amigo e um compadre, sou padrinho do pequeno Davi”.

Antônio Moura em seu aniversário de 63 anos ao lado dos filhos e dos netos(Foto: Reprodução/ Arquivo pessoal)
Foto: Reprodução/ Arquivo pessoal Antônio Moura em seu aniversário de 63 anos ao lado dos filhos e dos netos

Hoje, Antônio só pensa em uma coisa: viajar, aproveitar a família e viver cada dia intensamente com amor e tranquilidade. E claro que não pode faltar as festas e a tradicional feijoada que, em todo aniversário, reúne os amigos.

A história de Antônio Pereira de Moura não é só sobre os batimentos de cada novo coração. É sobre o que ele viveu e construiu no intervalo de cada pulsação. Sobre tudo o que se pode viver entre o primeiro e o, ainda distante, último “tum-tum”.

 

 

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