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Há flores velhas sem um colibri
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Repórter especial e cronista do O POVO. Vencedor de mais de 40 prêmios de jornalismo, entre eles Sociedade Interamericana de Imprensa (SIP), Embratel, Vladimir Herzog e seis prêmios Esso. É também autor de teatro e de literatura infantil, com mais de dez publicações.

Há flores velhas sem um colibri

Toda família tem silêncios e embaraços, é a história da vida privadíssima e muitas vezes criminosa
Tipo Crônica
0309demitri (Foto: carlus campos)
Foto: carlus campos 0309demitri

Ninguém é obrigado a visitar um tio que está para morrer na UTI. Nem contribuir com vaquinhas eletrônicas porque "o pobrezinho" do irmão da mãe está na pindaíba.

Família talvez seja a coisa melhor do mundo, quando presta. Mas não deveria existir quando é embusteira. Pior ainda quando se vale de "Evangelhos" para ser maledicente com o corpo dos outros.

Digo assim porque um tio meu está sendo acudido em uma UTI e, de repente, virou o candor de Plutão e da Terra. E na "melhora da morte" começou a cobrar a visita de uma tia, irmã dele.

 

Insistiram e encheram o saco da "desalmada"

 

A família se mobilizou para pressionar a fulaninha, "pessoa desatenciosa!". Pouco generosa com o irmão enfermo, um senhor de igreja.

Insistiram e encheram o saco da "desalmada". Afinal, era hoje e não seria amanhã o restinho de existir do irmão mais velho. Coitado! Naquela condição de finalização e a pedir perdão.

O tio não queria fazer a travessia sem abraçar um a um e abençoá-los. Ele foi ministro da Eucaristia, depois se entregou ao Jesus dos crentes e até tomou passes em centros espíritas de amigos.

 

Filho é meio isso, o catecismo e a própria mãe reforçaram que "honrar pai" é pétreo

 

Titia veio me perguntar, talvez porque virei jornalista, sobre uma palavra que ela andava caçando por causa da situação desse tio.

- Qual é meu filho? Aquela coisa de sentir pelo outro na hora que a criatura tá se lascando?

"Pena, tia?".

- Não, não. É outra palavra, mas esqueci. Tô com ela na boca, mas não sai. Aquela, quando você é obrigada a se compadecer da penúria de um filho-da-puta?

É "compaixão", tia?

- Isso, meu amado! Compaixão. Suas outras tias e tios estão me tirando o juízo, pedindo que eu tenha e vá à UTI. O que você acha, sobrinho?

Toda família tem silêncios e embaraços, é a história da vida privadíssima e muitas vezes criminosa.

Sem saber das coisas, falei pra minha tia que não fosse ao hospital nem alimentasse culpa. Restasse ele lá, estava bajulado por alguns filhos.

 

E várias pessoas sabiam, a própria mãe dos dois. O pai dos dois

 

Filho é meio isso, o catecismo e a própria mãe reforçaram que "honrar pai" é pétreo. Mesmo que "o paizinho ou o painho" tenha estuprado a irmã mais nova dele. A tia que não quis visitá-lo.

E várias pessoas sabiam, a própria mãe dos dois. O pai dos dois. Os irmãos mais velhos... e o calado por isso ficou da porta para dentro.

Mas chega o dia em que o silêncio depõe sobre o histórico de parentes e os estupros em família.

E aí, começa... Das duas filhas abusadas por dois namorados da mãe.

De uma tia estuprada pelo próprio marido, recorrentemente.

De outro tio, sem ser o que estava na UTI, invadir o corpo da cunhada mais nova.

Sem contar as empregadas "que comemos", vindas do interior e da periferia. Domésticas de casa ou da vizinhança.

 

Entre dores, alucinações e memórias de casada, ela rasgou que o marido "iria comê-las"

 

Lembrei-me de uma jovem senhora que, perto de ser finalizada por um câncer (há pouco tempo), rejeitou cuidadoras paliativas.

Entre dores, alucinações e memórias de casada, ela rasgou que o marido "iria comê-las". Não tragam.

Comeu todas que ela botou em casa. Meninas, mocinhas, velhas... Ela descobria e apenas mandava as mulheres embora. Arrependia-se.

Por último, um leitor não gostou do que escrevi sobre o léxico do machismo. É também da crônica não se apetecer.

Ele escreveu: "Não sabia que o Demitri Túlio era adepto do policiamento linguístico da extrema-esquerda".

Continuou: "Uma afirmação dessas aí é de uma ingenuidade (ou ignorância) sociolinguística de dar pena!".

Eis o que havia escrito. "É do léxico machista o "mah, o "macho" e o "má" na boca de garotos e até de moças. Perpetuação do machismo "sem intenção". Coisa ainda do arquétipo da senzala, da escrotice dos invasores europeus, de indígenas, de negros e de judeus". Foi na crônica "Como criar filhos não machistas".

Minha resposta: É da língua e da cultura dos machos feito nós.

 

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