Repórter especial e cronista do O POVO. Vencedor de mais de 40 prêmios de jornalismo, entre eles Sociedade Interamericana de Imprensa (SIP), Embratel, Vladimir Herzog e seis prêmios Esso. É também autor de teatro e de literatura infantil, com mais de dez publicações.
Quarto de bonecas era o compartimento que meu tio-avô Conceição, ex-marinheiro, manteve por anos. Um homem hétero, gente boa quando sóbrio e bruto quando bebia. Um macho branco, de olhos verdes e que sabia fazer muita coisa.
Conheceu o mundo em cima de quase todos os navios da Marinha de guerra brasileira. Navegou, também, na corveta Caboclo - a avó das embarcações milicas. Anos depois, mareei a bordo dela por causa de uma onda de través, por três dias, até a ilha inesquecível de Trindade. Fui reportar.
Mas o caso aqui é o quarto de bonecas dele, risco de estereótipo para falar de machismo, mas vou me arriscar. Tenho "lugar de fala". Bruto como ele só, porém não tinha vexame em mostrar as bonecas que comprou do Planeta inteiro e foi fazendo prateleiras pra elas e um quarto de menino.
Meu tio-avô Conceição, um pescador de açude de mão cheia, findou a vida praticamente sozinho
Teve duas filhas, mas com as bonecas dele elas não podiam brincar. Tinha medo de que as violassem, que não fossem cuidadosas. Teve um filho também e ele olhava sem grandes interrogações, preferia pescar siri na maré cheia do cais de Camocim. Morreu jovem.
Meu tio-avô Conceição, um pescador de açude de mão cheia, findou praticamente sozinho. Depois de uma vida de gritos e grosserias, a esposa acabou indo cuidar do destino dela. Fez o certo, testemunhei muitas brutalidades.
E eu não compreendia por que um homem que mantinha um quarto e costurava roupas para bonecas era tão rude na convivência com o feminino. Meu pai também é assim, meu avô não fugia à regra - mesmo tendo sido um homem gentil com os seis netos.
Costura que havia visto dona Remédios fazer no Lago Seco, uma preta que viveu a vida toda empregada
O quarto de bonecas do tio era lindo, parecia uma cena de filme das princesas da Disney (era a referência que tínhamos quando pivetes e pivetas). Todo ano, ele costurava roupinhas novas pra elas. Num ponto perfeito de casinha de abelha.
Costura que havia visto dona Remédios fazer no Lago Seco, uma preta que viveu a vida toda empregada de minha bisavó branca, filha de português e racista. E, também, com dona Terezinha - senhora que costurava nossas roupas de final de ano que mamãe encomendava e eu odiava ir experimentar por horas e o medo do alfinete furar a pinta.
Meu tio-avô teve um final melancólico, sozinho. Não foi praticamente sozinho, foi solitário, mesmo, no Conjunto Ceará. Entendam, não era um cara do mal. Não. E isso não é passar o pano. Foi criado feito macho e nunca soube desaprender a gritar com a mulher, a bufar, a reclamar da comida, a achar que fêmeas tinham parte com o depender dos provedores e dos filhos.
Chegamos nos pássaros recortados em manchetes de jornal sobre assassinato de mulheres, feminicídios
Quando fui escrever esta crônica, disse para o Carlus Campos sobre o tema da coluna. Ainda iria começar a narrativa. O primeiro título do texto seria "como criar filhos não machistas?". Permaneceu.
Pedi a arte, mas não tinha ainda uma ideia do que poderia ser o desenho. Pensei numa encruzilhada de caminhos, várias chegadas e partidas. Achei senso comum, meio coach, meio catecismo católico, meio revista da igreja Universal.
Chegamos nos pássaros recortados em manchetes de jornal sobre assassinato de mulheres, feminicídios quase diários. O peso do pássaro morto na pegada de um macho brutalizado desde a barriga da mãe. Ou antes em algum estupro, importunação ou assédio.
É do macho matar mulheres. É não, é machismo. É da vaquejada maltratante, é do futebol com estupro
Não fosse assim, o desejo arquetípico de um varão de primeira e a decepção do fraquejo de ter "trabalhado para os outros" na rebentação de uma menina.
Daí tantos filhos machos matando à faca, a tiros, ateando fogo, atropelando, decepando cabeças de meninas, de mães, de esposas, de ex-companheiras. A matança é quase diária, dá no jornal e os homens não se constrangem de continuar executando-a.
É do macho matar mulheres. É não, é machismo. É da vaquejada maltratante, é do futebol com estupro, é de magistrados escrotos reforçando a violação. É do bolsonarismo e da esquerda também. É de padres, pastores e espíritas criminalizando o aborto e, cruelmente, abusando de crianças.
É da família, da igreja, da escola e da rua, criar filhos para espancar, gritar, tocar fogo, estuprar e assassinar filhas
É do léxico machista o "mah", o "macho" e o "má" na boca de garotos e até de moças. Perpetuação do machismo "sem intenção". Coisa ainda do arquétipo da senzala, da escrotice dos invasores europeus, de indígenas, de negros e de judeus.
É da família, da igreja, da escola e da rua, criar filhos para espancar, gritar, tocar fogo, estuprar e assassinar as filhas uns dos outros. Um costume, infelizmente, perenal.
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