Repórter especial e cronista do O POVO. Vencedor de mais de 40 prêmios de jornalismo, entre eles Sociedade Interamericana de Imprensa (SIP), Embratel, Vladimir Herzog e seis prêmios Esso. É também autor de teatro e de literatura infantil, com mais de dez publicações.
O homem que entregava carne na porta lá de casa era o diabo. Vinha num cavalo e, provavelmente, o animal era maltratado. Mas nas fabulações de criança, enxergava-o troiano, medonho, narinas bufantes, baba escorrendo nos freios, os quartos enormes e Ele sentado.
O homem gritava "figo gordo" e batia as asas de madeira de dois caixões que o coitado do cavalo era obrigado a carregar na cangalha que o feria. O dia todo, a vida inteira. O peso de existir.
Foi a primeira vez que vi o diabo, talvez minha inaugurante ojeriza à carne de almoçar e jantar. O diabo vendia buchada, miúdos, toucinho, panelada, ossos com tutanos para mão de vaca, rins, rabada e a língua dos defuntos.
Então, não teve mais quem me fizesse comer a mistura dos almoços na casa do Porangabuçu
Mamãe fazia uma língua na semente de coentro, açafroa, alho, gengibre ralado, sal e pimenta vermelha que matava qualquer um no orgasmo, quem comesse.
Comi muito e, depois, tive uma repulsa inominável. A carne não me entrava bem, doía, mamãe via estranhezas e dona Raimunda rezava em mim.
Então, não teve mais quem me fizesse comer a mistura dos almoços na casa do Porangabuçu quando o diabo passava entregando torresmo na porta de quem podia. Nem era, também, pra eu comer a moela nem chupar os pés dos mortos. Eles vinham me arrodear.
O cheiro do cozido tomava o corredor, empestava as telhas, vinha das panelas afobadas nas tampas quentes e batendo em convulsão.
O diabo matava porcos a poucos passos lá de casa e eu tapava os ouvidos para não os escutar me agoniando
As tripas dos porcos fediam no óleo quente. Dava vontade, mas o corpo ressentia a exasperação dos barrões pretos, castrados para engorda.
O diabo matava porcos a poucos passos lá de casa e eu tapava os ouvidos para não os escutar me agoniando, suando com a hora de morrer. Não era uma boa morte e não havia uma Compadecida.
Ouvia as machadadas, os esguichos de sangue, sentia o cheiro aonde fosse e a sensação de alguém fuçando, ciscando e berrando.
Murchavam e uma vez pingou água de rego fedido. "Esse menino é acompanhado"
Um dia antes da matança dos porcos, eu vomitava até dona Raimunda chegar lá em casa ou me levarem derrotado nos braços. Catimbozeira da rua, discriminada no pretume das paredes, ela quem acudia com as folhas de pião roxo.
Murchavam e uma vez pingou água de rego fedido. "Esse menino é acompanhado". Mamãe ficava puta, mas eu sossegava no cavalo que surgia. Não adiantava reza na igreja de Salette e o padre Nauri.
Mas o homem era veemente. Nas primeiras horas da manhã, ele que era o diabo, batia com os cascos do cavalo farpado na soleira da casa de minha bisavó. "Figo gordo", "panelada", "rabada!". E só ia embora quando vovô ou mamãe trazia a panela pra desejar os pedaços dos mortos.
Inqueria me revisitar depois de tanto tempo, a carne com ele era mais barata que no açougue
Num rego que desciado alto, onde ele abatia os corpos, corria sangue sem parar e apodrecia empoçado na esquina na Tavares Iracema com Major Pedro Sampaio. Uma podridão que só voltei a sentir quando entrei no antigo IPPS, repórter ainda menino, depois de uma rebelião. Um putrefeito de bodum de humanidade e inhaca do diabo.
Inqueria-me revisitar depois de tanto tempo. A carne com ele era mais barata que no açougue. Então, seduzia, mas nem todo mundo podia fazer fiado e levar na moleira no final do mês ou perder a alma. Os proventos de subdelegado, de vovô, davam para saldar a pindaíba.
Depois de passar o ano inteiro sacrificando e vendendo a carne dos outros, ele se disfarçava de diabo na Paixão de Cristo da rua. Fazia-se de demônio. E quase todo mundo não comia carne naquele tempo de jejum. Uma hipocrisia com os porcos, com as vacas, os frangos... Comiam peixe. O diabo não comercializava carás.
Dava medo, mas era bonito vê-lo com um facão, a manta de fígado sangrando e, depois, o almoço
Era o diabo na cabeceira da rua. Um homem açoitando o cavalo e os cascos se desequilibrando no calçamento. Dava medo, mas era bonito vê-lo com um facão, a manta de fígado sangrando e, depois, o almoço com cebola branca e açafrão bastardo servido por mamãe. O padre se refestelava.
O diabo era o homem sedutor do Pastoril camuflado de diabo. E, depois, enchia o rabo dos outros com carne e sangue dos agoniados.
Esse conteúdo é de acesso exclusivo aos assinantes do OP+
Filmes, documentários, clube de descontos, reportagens, colunistas, jornal e muito mais
Conteúdo exclusivo para assinantes do OPOVO+. Já é assinante?
Entrar.
Estamos disponibilizando gratuitamente um conteúdo de acesso exclusivo de assinantes. Para mais colunas, vídeos e reportagens especiais como essas assine OPOVO +.