Logo O POVO+
Presente mais que imperfeito
Foto de Demitri Túlio
clique para exibir bio do colunista

Repórter especial e cronista do O POVO. Vencedor de mais de 40 prêmios de jornalismo, entre eles Sociedade Interamericana de Imprensa (SIP), Embratel, Vladimir Herzog e seis prêmios Esso. É também autor de teatro e de literatura infantil, com mais de dez publicações.

Presente mais que imperfeito

Até hoje, quando menos me dou conta, ainda há um labirinto-de-pai para desaprender sobre quase tudo do paternar-se
Tipo Crônica
1108demitri.jpg (Foto: carlus campos)
Foto: carlus campos 1108demitri.jpg

.

Nalgum perfil de Instagram, desses com mensagens de sentimentalidades ou histórias de botar medo sobre o presente e o futuro, li uma frase que me levou pelo vento. "A paternidade torna mais feliz a infância". Algo assim.

Há umas verdades e alguns absolutos de araque no firmamento da assertiva sobre o paternal.

O vento me levou para debaixo da goiabeira que viveu lá em casa até 1978, quando a casa de minha bisavó Mariana foi equivocadamente vendida, no Porangabuçu, e não tínhamos como levá-la do quintal para a morada nova, na José Bastos.

 

Árvores guardam memórias da infância, de qualquer tempo

 

Foi uma pena e tinha muita saudade da goiabeira que não tinha nome humano. Na verdade, eram três. Duas que davam goiabas vermelhas gigantes e gostosíssimas e uma de frutos com o miolo branco. Uma rareza. 

Árvores guardam memórias da infância, de qualquer tempo. Para os que tiveram a felícia de conviver em quintais. Uma ventura de seiva e fruta que se aprende a gostar de ver rebentar e o encanto de colher o que as plantas dão de graça.

As goiabeiras lá de casa brincaram com a gente e, também, com meu pai e nós na folia. Bem antes do tempo de ele sumir de casa e querer não ser encontrado pelos seis filhos e minha mãe.

 

Isso foi uma fartura pra vida que não sei medir ainda hoje

 

Embora o sumiço, meu pai, nos ensinou a assar castanha de caju no flande furado. A jogar areia quando as amêndoas começavam a papocar na brasa e disse como despelicá-las. Foram aulas divertidas de descobertas das coisas bestas importantes.

Isso foi uma fartura pra vida que não sei medir ainda hoje. Foi na infância também que aprendi a pescar, saindo de madrugada, em 301 açudes no Maranguape e na Ladeira Grande.

Por causa do gosto de meu pai pelo mato e açudes, fui apresentado a um bocado de peixes, de caracóis, de minhocas, de passarinhos e de pessoas que haviam sido abduzidas.

 

É memória também meu pai apagar as luzes da casa durante as sessões de filmes de assombração

 

Tive aulas, com meu pai, de aprender a fazer suco de coco, chibé e saber que nas dunas dava murici e a frutinha era ótima com farinha d'água. Ele tinha aprendido com o pai dele, meu avô Afonso.

É memória também meu pai apagar as luzes da casa durante as sessões de filmes de assombração para dar susto, quando a película se extremava no pavor. Era um medo, mas engraçado e anos depois repeti com meus três filhos - Saulo, Sarah e Pedro - a mesma arrumação.

Doutor Haroldo era divertido e, no dia a dia, como advogado era brilhante, contraditório e um maço de explosivo ambulante. Vi-o ser delicado com mamãe, mas também muito machista a ponto de rasgar-lhe um vestido por causa de um decote nos seios.

 

Aos 81 anos, meu pai não virou santo. Permanece num redemoinho com ele mesmo

 

Quando resolveu desaparecer da vida dos quatro adolescentes, de um pré-adolescente e uma garotinha, houve um vazio e um alívio. Não havia mais brigas com mamãe, mas quando se vai crescendo há um ideal de paternidade que se desmancha.

Aos 81 anos, meu pai não virou santo. Permanece num redemoinho com ele mesmo. Não tenho mais mágoa, tenho compaixão da existência dele que ainda poderia ser prazerosa. Era para estar apascentado, mas permanece numa desavença com a paz que merecia.

Sinto muito, de coração! E queria-o entre os netos e bisnetos nas festas e aleatórios, mas não é comigo.

Sou pai três vezes e aprendi, entre dores e gostosuras (muito mais delícias), a amar o Saulo, a Sarah e o Pedro. A mãe deles - Virgínia - me deu lições. Uma ex-companheira que muito amei e fizemos muitos laboratórios juntos.

 

No impacto, quis soltar o escorpião. Reafirmar minha macheza 

 

Um dia, já adultos, o Pedro disse que tinha medo de mim. O Saulo desenhou que eu era "mais amigo" do que pai. E a Sarah frescou, rindo, ao dizer que preferiria ter levado uma pisa minha (nunca bati em nenhum dos três) do que as broncas acontecidas.

No impacto, quis soltar o escorpião. Reafirmar minha macheza e missão heroica e piegas de pai. Depois fiquei pensando sobre o tempo quando eram pequenos e vivíamos para cima e para baixo. Todo dia uma novidade, silêncios, abismos, gatos, arengas, longes e descobertas florestais...

Até hoje, quando menos me dou conta, ainda há um labirinto-de-pai para desaprender. O mito besta da paternidade e ri entre nós dos equívocos e acertos.

 

Findo com José Régio e seu Cântico Negro

 

Adoro ter vindo pai dos três, repetiria sempre. E, provavelmente, Saulo, Sarah e Pedro serão pais e mãe melhores. Ou não! Sem caçuás nem cangalhas.

Findo com José Régio e seu Cântico Negro. Vale pra mim. Se vim ao mundo, foi só para desflorar florestas virgens e desenhar meus próprios pés na areia inexplorada! O mais que faço não vale nada.

 

MAIS CRÔNICA

Seu Dico que fedia (ou cheirava) a peixe

Paris é onde o amor se acaba

Árvore, cerca, mulheres e a PL do aborto

 

 

Foto do Demitri Túlio

Ôpa! Tenho mais informações pra você. Acesse minha página e clique no sino para receber notificações.

O que você achou desse conteúdo?