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Leidiane merecia Fernanda Torres
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Demitri Túlio é editor-adjunto do Núcleo de Audiovisual do O POVO, além de ser cronista da Casa. É vencedor de mais de 40 prêmios de jornalsimo, entre eles Sociedade Interamericana de Imprensa (SIP), Embratel, Vladimir Herzog e seis prêmios Esso. Também é autor de teatro e de literatura infantil, com mais de 10 publicações

Leidiane merecia Fernanda Torres

para Leidiane, feito Eunice Paiva, sempre faltará um pedaço. A cearense, uma despeliculadora de castanha de caju na rural Chorozinho, teve o filho Mizael Fernandes, de 13 anos, sumido dos dias dela morto por um policial militar
Tipo Crônica
2601demitri.jpg (Foto: carlus campos)
Foto: carlus campos 2601demitri.jpg

Não é ironia nem birra. Quero apenas, sem radicalismo farinha, pegar uma carona na vibração de Fernanda Torres. Uma boa caráter, provável, e desafeita à performance quando não está atuando ou quando amanhece descabelada e precisando escovar os dentes. Feito os que não nasceram flores.

Num exercício de convexidade, desejaria ver a cearense Leidiane Rodrigues Fernandes sendo indicada ao Oscar e já tendo ganhado o Globo de Ouro. E em seu discurso, semelhante ao de Fernandinha, falar também da ausência doída de alguém desaparecido do amor dela - o filho Mizael. No caso de Eunice, o ex-deputado Rubens Paiva.

Ora, a Sarah – minha hija ex-grudente – foi embora e, talvez, só regressará ao Ceará nas vacances. Fui deixá-la no aeroporto e passei uma madrugada chorando, revendo memórias, seu amor por mim na infância, os cabelos cacheados, as bonecas Barbie, a fome por leitura, as idas ao cinema com Saulo e Pedro, as broncas porque eu chegava atrasado aos eventos na escola.

Chorei feito besta quando Pedro se mudou para estudar em Sobral (bem aí!). Quando se despregou de mim e deixou de me perguntar, às 22 horas, para onde iríamos, depois de um dia de diversões. Também houve aperto de jiboia quando Saulo se largou, sem passagem de volta, para João Pessoa, Rio e Recife. Chorei.

Em algum momento, como desenha a existência cartesiana, os três "sumiram" de mim (o pai esvaziado) e natural fui me contentando com a saudade. Nós nos falávamos de algum modo. E o reencontro era nas férias, nas festas de fim do ano e nos inesperados.

Sabia que uma hora, mesmo eles reclamando de meus desaparecimentos ou eu disputando a agenda deles, nos abraçaríamos na encruzilhada. Teríamos (temos) a oportunidade de dizer do mar que sentimos um pelo outro, e ainda brincar de pai, filhos, irmãos e amigos.

Mas para Leidiane, feito Eunice Paiva, sempre faltará um pedaço. A cearense, uma despeliculadora de castanha de caju na rural Chorozinho, teve o filho Mizael Fernandes, de 13 anos, sumido dos dias dela morto por um policial militar, segundo apontam investigação da CGD.

Um dia, feito Rubens Paiva, Mizael saiu de casa com a promessa corriqueira de que voltaria. O ex-deputado se arrumou para, supostamente, ir à rua resolver algo trivial do trabalho e regressar com pães e leite. No entanto, foi levado, em 1971, por um bando de assassinos – militares e civis – que serviam à ditadura (1964-1985). Não voltou até hoje.

O garoto Mizael, morto pelo sargento da PM Neemias Barros da Silva, saiu de casa para a residência da tia Lizângela Rodrigues, em 2020, para uma consulta médica. Foi, mas regressou sem vida para Leidiane. Também "desapareceu", não voltou para os dias e os futuros com ela.

Leidiane poderia ter sido indicada ao Oscar de alguma coisa apenas para denunciar, no português de pouca escola, que o Ministério Público do Ceará (MPCE) a fez remoer a dor pela falta que Mizael faz.

O promotor de Justiça Sérgio Leitão, de Chorozinho, pediu que a Justiça inocentasse o sargento e mais dois PMs que já haviam virados réus, em 2022, pelo assassinato de Mizael. O pedido vai na contramão da investigação da Controladoria dos Órgãos da Segurança Pública do Ceará (CGD), que conta a história de um assassinato a sangue frio.

E ainda há o testemunho ocular de Lizângela Rodrigues (que desapareceu) e que reforça, com o que mostrou a CGD, absurdos da noite de 1º de julho de 2020.
Pela investigação, os PMs, fortemente armados e impondo medo, de acordo com a CGD, conseguiram uma "permissão" para entrar na casa inviolável. Os policiais estavam atrás de um perigoso "loiro". Afobados, teriam confundidos o cabelo louro do garoto com o do bandido.

Mizael, um pixote branco e mirrado, dormia em um dos quartos. Nem acordou, teria sido executado no sono.

Pela investigação, quando viram a quimera que criaram, os policiais teriam alterado a cena do crime. Está tudo no relatório da CGD: teriam inventado um revólver que nunca existiu com Mizael, retirado o corpo do lugar e levado a roupa de cama tomada pelo sangue. Fora outras fraudes para caiar o assassinato do menino que dormia. O promotor desconsiderou a investigação, e levou em conta apenas o argumento dos PMs de que teria havido legítima defesa.

A despeliculadora de castanha de caju, Leidiane, ainda está aqui. Enlouquecendo com a ausência de Mizael desaparecido nos dias dela. Uma mãe que enterrou o filho.

Cabe à Justiça avaliar com rigor o pedido do promotor. O Ministério Público e a Defensoria Pública são as últimas portas que temos para recorrer contra ilegalidades.

Foto do Demitri Túlio

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