Ricardo Moura é jornalista, doutor em Sociologia e pesquisador do Laboratório da Violência da Universidade Federal do Ceará (LEV/UFC)
Ricardo Moura é jornalista, doutor em Sociologia e pesquisador do Laboratório da Violência da Universidade Federal do Ceará (LEV/UFC)
Há dez anos era publicada a primeira coluna sobre segurança pública do O POVO. Sob um olhar retrospectivo, posso afirmar, com toda a certeza, que a criminalidade no Ceará passou por transformações radicais no período. 2014 foi o último ano do governo Cid, que deixou sua marca na política cearense com a criação do programa de policiamento comunitário Ronda do Quarteirão.
A percepção de que a polícia deveria se aproximar mais da população foi certeira. PMs que conversavam com moradores era uma imagem até então que beirava o absurdo diante de um histórico de muita truculência e pouco papo da instituição. No entanto, o programa era bastante oneroso, a começar pelos seus veículos, as camionetes Hilux, que se tornaram símbolo de ostentação.
Além disso, tamanha proximidade exige uma conduta exemplar e uma formação ainda mais qualificada que a tradicional. Os escândalos que surgiram do mau uso das camionetes mancharam a imagem do Ronda, enfraquecendo sua razão de ser perante as comunidades. O ano em que Fortaleza sediou jogos da Copa do Mundo se encerrou batendo recordes de assassinatos.
Em meio a isso, cresceu a demanda por uma polícia ostensiva e que intimidasse mais. O Raio, então, ganhou musculatura e capilaridade, passando a configurar o principal instrumento das políticas de segurança. Escrevi sobre isso afirmando que o "Raio era o novo Ronda", haja vista ocupar esse espaço no imaginário social.
Mal sabíamos, àquela época, que um processo de mudanças subterrâneo ocorria nas entranhas da periferia. As gangues de bairro se remodelavam, organizando-se sob uma bandeira única que pacificava os históricos conflitos entre grupos de rua e bairros. Tais reconfigurações, contudo, ocorreram sob nossas vistas sem que nos déssemos conta disso.
Sabe quem poderia ter acionado esse alarme? O policiamento comunitário realizado por programas como o Ronda. Estar na comunidade também uma estratégia de inteligência. Qualquer roda de conversa em 2015 teria como mote a sensação de tranquilidade inédita de poder andar por todo o bairro, sem restrições. Abordei esse sentimento em um texto intitulado "A paz consentida" após ser alertado por três policiais que algo diferente estava acontecendo. Pela primeira vez funks mencionavam a união de bairros que historicamente eram rivais. Quem havia feito essa mediação?
O termo "facção" deixou de ser conhecido como uma inocente unidade fabril de confecção e passou a encarnar a nova forma de atuação criminal. A "paz" fez com que as estatísticas criminais do primeiro ano do governo Camilo caíssem vertiginosamente. Em nível federal, as turbulências políticas impediam um aporte semelhante ao ocorrido no Pronasci. A gestão estadual teria de se virar com seus próprios recursos. Veio então o Ceará Pacífico.
A existência das facções demorou a ser reconhecida por quem fazia a segurança pública à época. Tudo seria obra de "pirangueiros", pessoas que, na hierarquia do crime, ocupam os postos mais baixos. A guerra que eclodiu em 2017 desfez qualquer tentativa de manter a opinião pública alheia ao que estava acontecendo nos territórios dominados pelas organizações criminosas. Bastava olhar para os muros das cidades tomados por siglas que viriam a ser nossas bastante conhecidas e uma senha de sobrevivência para quem trilha os becos e vielas da cidade.
A velocidade da expansão dos grupos criminosos era maior que a capacidade de organização das forças de segurança. Chegamos a mais de 5 mil homicídios em 2017, um recorde. O mês de outubro daquele ano chegou a contabilizar 16 assassinatos por dia, em média. Embora isso nunca tenha sido confirmado publicamente, a concepção do Ceará Pacífico se fragmentou em meio às várias tentativas voluntariosas de lidar com o problema.
Tudo se inicia com as Unidades Integradas de Segurança (Uniseg) que sumiram do noticiário, então temos a expansão desenfreada do Raio e, por fim, o Programa de Proteção Territorial e Gestão de Risco (Proteger), cujo projeto-piloto foi a instalação de um container na comunidade do Gereba, no Grande Jangurussu. Muitas iniciativas, pouca articulação entre elas.
2019 se inicia com mudanças no sistema prisional e uma forte reação oriunda das facções. Atentados, veículos incinerados, pânico nas ruas. A ruptura da franca comunicação entre quem está nas grades e quem está nas ruas causou um abalo nas organizações criminosas, enfraquecendo-as. O ano fecha com índices baixos de violência letal, como não se viam há uma década.
Em fevereiro de 2020, os PMs se amotinam. No mês seguinte, a pandemia nos assola. O crime, contudo, não fecha suas portas. Ao contrário, reorganiza-se mais uma vez, com a emergência de novas denominações. Elmano de Freitas assume e mantém os pilares de seu antecessor na área. Até mesmo o número de homicídios no fim do ano é igual ao anterior. Qual será a marca da atual gestão? O que ela nos trará de novidade? Seguiremos acompanhando por aqui. Que venham os próximos 10 anos!
Ricardo Moura é jornalista, doutor em Sociologia e pesquisador do Laboratório de Estudos da Violência (LEV/UFC)
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