
Ricardo Moura é jornalista, doutor em Sociologia e pesquisador do Laboratório da Violência da Universidade Federal do Ceará (LEV/UFC)
Ricardo Moura é jornalista, doutor em Sociologia e pesquisador do Laboratório da Violência da Universidade Federal do Ceará (LEV/UFC)
Moradores de dois bairros de Fortaleza estão vivendo momentos de pânico e de terror nos dois últimos meses por causa do acirramento do conflito entre duas organizações criminosas. Em julho, como O POVO noticiou, 12 pessoas foram assassinadas no Vicente Pinzón. O líder local do Guardiões do Estado (GDE) foi decretado e decidiu mudar de lado, passando para o Comando Vermelho (CV) e levando consigo um contingente de ex-membros da GDE.
Movimentações como essa não ocorrem sem que haja muito derramamento de sangue. O bairro assistiu a tiroteios diários e mortes toda semana. Um dado de memória: em 2016, o Vicente Pinzón se tornou projeto-piloto do Pacto para um Ceará Pacífico, passando a sediar a primeira Unidade Integrada de Segurança (Uniseg), que reunia, dentre várias melhorias, uma delegacia 24 horas e um batalhão da PM.
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O então governador Camilo Santana (PT) se mostrava bastante otimista com as medidas iniciais: “Compreendemos que a ação na redução da violência é uma ação de prevenção. Vamos aumentar a presença da polícia, em parceria com a Guarda Municipal de Fortaleza; ampliar o monitoramento de equipamentos eletrônicos; instalar novas bases móveis e fixas na região; urbanizar a área, com nova iluminação e melhorar a pavimentação das ruas. Enfim, um conjunto de ações que trabalharemos no sentido de prevenir a violência”.
Quase dez anos depois, o único pacto que reina na região é o do silêncio. Neste mês, o conflito espalhou-se para o Papicu, bairro vizinho e que concentra diversas comunidades, dentre elas a Verdes Mares, epicentro de novos confrontos e que se localiza entre os dois bairros.
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As informações dão conta que o local foi tomado pelo CV e que uma liderança da GDE teria sido morta na ação. Vídeos de muros pichados com a inscrição da facção circulam pelas redes, como uma mostra de seu poderio. Há o temor ainda que o Comando Vermelho avance sobre os territórios que ficam no entorno do Terminal do Papicu, uma área bastante populosa e repleta de vielas.
Um parêntese: alguns manuais de jornalismo dizem que não devemos dar nomes às organizações criminosas. No cotidiano dos moradores, contudo, saber se está em uma área “Tudo Dois” ou "Tudo Três” é sinônimo de sobrevivência nos conflitos urbanos da cidade. Negar ou omitir os nomes de tais grupos em nada modifica a situação de quem tem de lidar com a possibilidade de abandonar seu imóvel a qualquer momento.
Tenho tentado, nos últimos dias, apurar o que vem ocorrendo na Comunidade Verdes Mares, mas a dificuldade é imensa. As pessoas não querem falar mesmo tendo suas identidades protegidas. As poucas informações são repassadas de forma fragmentada.
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As escolas têm passado por momentos bastante críticos. Alunos que moram em comunidades rivais precisam conviver em um mesmo espaço, mas como prover isso diante de um contexto de conflito aberto? As unidades escolares não são refratárias à violência que ocorre ao seu redor. Pelo contrário. As famílias querem tirar seus filhos das escolas, alunos são baleados e mortos por causa desse confronto. A gestão escolar, por sua vez, esforça-se para manter as crianças e adolescentes matriculados pelo menos até o fim do ano, quando ocorrem as avaliações.
Nas áreas que ainda permanecem sob o domínio da GDE, o clima é de tensão. O toque de recolher é decretado a partir das 19h. O vazio das ruas contrasta com a animação constante das calçadas, nos tempos em que havia paz. O funcionamento do comércio foi afetado: estabelecimentos fecharam ou mudaram de horário em decorrência das ameaças. O sentimento, para quem não pode se mudar, é de desamparo.
A incapacidade do jornalismo em retratar essa realidade é um estímulo para que o assunto se mantenha bem distante da mesa do café da manhã da classe média. Estamos mais preocupados com as medidas de Trump, se o nosso time cai ou não cai ou com o nome de quem poderá postular a candidatura ao Governo do Estado em 2026. Para muitos fortalezenses, em especial os que vivem em zonas conflagradas, talvez não haja ano novo. Essa dissonância entre o Ceará que avança e o Ceará que regride é uma chaga que teima em permanecer a despeito do número de operações policiais que estejam nas ruas.
A chacina (ainda) é uma das poucas modalidades de crime que conseguem romper essa bolha. Planejada e com um recado macabro a ser passado, ela provoca uma ruptura na banalidade da violência letal do dia a dia e um rasgo no tecido social. O caso mais emblemático, a Chacina do Curió, terá sua quarta sessão realizada esta semana, no Fórum Clóvis Beviláqua. Sete militares irão a júri popular. Quase uma década depois, a expectativa é que o julgamento se encerre no mês que vem.
Punir os responsáveis não é uma tarefa fácil. Ainda mais diante da recorrência com que a chacina vem sendo utilizada como estratégia de atuação. Dados do Comitê de Prevenção e Combate à Violência da Assembleia Legislativa do Ceará mostram que o Ceará registrou 49 ocorrências do gênero nos últimos dez anos. Os ecos desse crime que “grita” soam cada vez mais distantes.
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