Há milhões de anos, todo o mundo foi habitado por organismos incríveis, hoje conhecidos por meio de fósseis. Mesmo tendo ocupado a Terra sem distinção de territórios, os dados sobre essa biodiversidade ancestral estão concentrados na América do Norte e na Europa Ocidental — juntos, esse norte global gera 97% dos dados paleontológicos mundiais.
É estranho. O Brasil, por exemplo, é um país fértil em fósseis de vários períodos; a Chapada do Araripe, no Cariri brasileiro, é uma lagerstätte (depósitos sedimentares nos quais a preservação dos fósseis é excepcional) fenomenal reconhecida por todo o globo. De acordo com pesquisa publicada na revista científica Nature Ecology and Evolution, essa produção do norte global é indício do colonialismo científico ao qual países do sul global têm sido submetidos.
A conclusão veio após análise de 26.409 publicações das últimas três décadas (1990-2020) sobre o país das instituições de pesquisa dos autores e o país de origem dos fósseis. As pesquisadoras, entre elas a brasileira Aline Ghilardi (UFRN), também analisaram a presença de autores dos locais originários dos materiais e as relações sociodemográficas dos envolvidos.
Em primeiro lugar na lista de produção, responsável por um terço dos trabalhos globais sobre paleontologia, estão os Estados Unidos da América. O problema é que quase metade dos fósseis estudados por eles vêm de outros lugares. Igualmente, paleontólogos locais — ou seja, de instituições do mesmo país do fóssil — participaram em apenas metade desses estudos.
Já no 11º lugar no ranking de produções, a Suíça se destaca por ter adquirido dados fora do seu território em 86% dos artigos. É a maior proporção entre os 15 países com mais publicações. “Mais da metade dessas pesquisas é publicada sem a contribuição de pesquisadores do país de origem dos fósseis”, destaca a pesquisa liderada pelas pesquisadoras Nussaïbah Raja e Emma Dunne.
A ciência parasitária, ou ciência paraquedas, é a prática na qual “países de renda mais baixa são explorados por seus fósseis e dados, mas o conhecimento e poder são mantidos pelos países de renda mais alta”, explica nota das pesquisadoras. No estudo, a origem dos fósseis e a ausência de pesquisadores locais foram dois pontos principais para identificar os mais afetados pela ciência parasitária.
A maioria está localizada no sul global, especialmente: República Dominicana, Mianmar, Namíbia, Groenlândia, Tanzânia, Madagascar, Uzbequistão, Omã, Quirjistão e Etiópia. “Atualmente”, indicam as pesquisadoras, “os destinos mais populares para a ciência paraquedista são Mianmar, República Dominicana, Marrocos, Mongólia e Kazaquistão”.
Esses países têm, em sua maioria, Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) baixo ou médio. Segundo a análise da pesquisa, são justamente os fatores socioeconômicos e políticos que influenciam a produção de pesquisa paleontológica. É dizer que países com IDH alto, por terem mais investimento em educação, têm mais possibilidades de pesquisa. Ainda, o IDH alto costuma acompanhar um bom índice de Produto Interno Bruto (PIB), que mede a economia das nações.
“A maior correlação encontrada, todavia, foi a associada ao legado colonial, ou seja, o maior impacto na produção de pesquisa paleontológica, está ligado ao histórico colonial de cada país”, pontuam.
Nesse sentido, vale destacar o que é considerado legado colonial pelas autoras:
É um engano acreditar que não faz mal que 97% dos dados paleontológicos estejam concentrados no norte global. É preciso questionar não só a ausência de pesquisadores locais, mas também como os países tiveram acesso aos fósseis estudados. Em dezembro último, o Museu do Plácido Cidade Nuvens anunciou que 487 fósseis brasileiros foram devolvidos ao Cariri apenas em 2021; deles, 237 foram recuperados por meio da operação Santana Raptor, da Polícia Federal.
Na última terça-feira, 8, 21 fósseis apreendidos durante inquéritos da Polícia Federal (PF) iniciados desde 2011 foram entregues ao Museu de Paleontologia da Universidade Regional do Cariri (Urca). A Justiça Federal autorizou a devolução das peças, que integram o patrimônio da União e são de comercialização proibida. "São inquéritos mais antigos, em que o material fóssil estava apreendido na delegacia, e a gente decidiu doar para a Urca, onde vai poder ser usado melhor, para a sociedade, em prol da educação", explicou o chefe da Delegacia de Polícia Federal em Juazeiro do Norte, Denis Colares de Araújo
Ele ressaltou que os fósseis, pelo Artigo 25, parágrafo 4º da Lei de Crime Ambiental, são "produtos não perecíveis e deverão ser doados a instituições culturais ou educacionais, sendo esse o caso da Urca".
“O tráfico de fósseis frequentemente estimula a coleta não controlada de fósseis. Uma coleta mal feita, sem dados geográficos corretos, informações estratigráficas e/ou do contexto, faz com que o fóssil seja pouco informativo ou, inclusive, vire um problema”, destaca ao O POVO a coautora do artigo, paleontóloga brasileira Aline Ghilardi.
Segundo ela, erros de localização podem “levar décadas para serem corrigidos e, frequentemente, são pesquisadores locais que vão ter que acabar dedicando o seu tempo a fazer essas correções”.
Outro empecilho são as modificações que os fósseis costumam ser submetidos para aumentar o valor financeiro das peças.
“Isso pode dificultar ou atrasar o trabalho dos paleontólogos ou mesmo gerar interpretações errôneas por parte deles, como já aconteceu algumas vezes, inclusive com um fóssil brasileiro, o espinossaurídeo do Araripe, Irritator challengeri. Novamente, isso gera ruídos para a Ciência, ou "dados ruins" que podem levar muitos anos para serem corrigidos”, exemplifica.
Quanto à falta de diversidade e representatividade de autores, o problema está na não pluralidade de ideias. Mesmo em fenômenos naturais, diferentes perspectivas são necessárias para ampliar as interpretações e hipóteses.
Com a pesquisa, as autoras esperam impulsionar a discussão sobre decolonização científica e sugerem o desenvolvimento de colaborações “mais equitativas, éticas e sustentáveis, baseadas na confiança e respeito mútuos, que não apenas considerem, mas priorizem as necessidades e interesses das populações locais”. (Colaborou Marília Serpa)