Com guerra, inflação e alta de juros somadas aos efeitos da pandemia, o cenário econômico do Brasil representa um contexto de desafios para o ecossistema de inovação brasileiro, sobretudo para as startups – que viveram, durante a crise, um momento de crescimento exponencial. De acordo com a Associação Brasileira de Startups (Abstartups), de 2019 a 2022, o número de empresas criadas saltou de uma média de 12.700 para mais de 22.200, um aumento de cerca de 75%.
Em 2021, os investimentos totalizaram US$ 9,6 bilhões (R$ 47 bilhões), um avanço de quase 250% em relação a 2019, quando os aportes foram de US$ 2,7 bilhões (R$ 13,2 bilhões), segundo dados da plataforma de inovação Distrito.
Foi nesse período que as startups Quinto Andar, Loft e Facily alcançaram o status de unicórnio – ou seja, atingiram uma avaliação de US$ 1 bilhão. As três empresas ficaram em evidência nos últimos meses após a demissão de funcionários sob a justificativa de reorganizações internas e repriorização de tarefas. Ao todo, foram cerca de 400 colaboradores dispensados.
Gustavo Gierun, CEO da Distrito, explica que as startups brasileiras estão sentindo rapidamente os efeitos do desafiador cenário macroeconômico. “As empresas de tecnologia listadas em bolsa sofreram uma correção de preço brutal nos últimos 60 dias, o que impactou diretamente o apetite dos investidores no mercado privado. Para os investidores, o momento é de cuidado. Para os empreendedores, o momento é de ajustar a operação para não ser refém de novas captações”, afirma.
Na avaliação de Gustavo, porém, não deve haver uma ruptura no mercado: “depois de um ano com um volume espetacular de investimentos, estamos vivendo um período de ajuste, por prazo indeterminado, decorrente das condições de mercado. Historicamente, grandes empresas de tecnologia foram criadas em ciclos de aperto econômico. O crivo será maior, mas bons empreendedores ainda terão muitas oportunidades”.
Sobre os casos recentes de demissões, Maurício Cardoso, diretor de operações da incubadora de startups Casa Azul, acredita que é necessário avaliar com cuidado para entender o contexto. “A realidade, na maioria das vezes, é um fluxo mais natural de uma curva de hipercrescimento em curto tempo e depois uma readequação do tamanho da empresa, para que ela consiga se manter por um por um determinado tempo sem eh gerar muito endividamento”, observa.
Apesar dos sinais de desaceleração do mercado, no mês de maio, as startups brasileiras receberam R$ 1,4 bilhão em investimentos, em 40 rodadas. Seguindo o padrão dos últimos anos, as fintechs se mantiveram na liderança dos investimentos nos cinco primeiros meses de 2022. De janeiro a maio, as startups de serviços financeiros somam US$ 1,3 bilhão em aportes, o que corresponde a metade do total investido no ecossistema, conforme a Distrito.
O volume de recursos levantado pelas fintechs nos cinco primeiros meses de 2022 é 13% superior ao igual período do ano passado, quando as empresas captaram US$ 1,15 bilhão em 57 rounds.
De acordo com o head de operação e inovação do Ninna Hub, João Justo, o mercado vem sendo aquecido, principalmente para startups que provêm soluções para negócios (B2B). “uma vez que houve aumento da necessidade de digitalização por meio dos negócios tradicionais, o que abre portas para que esses modelos ganhem espaço, visibilidade e negócios, gerando seu crescimento, sendo que o universo ainda é grande”, justifica.
“O cenário macroeconômico não é muito favorável e vem penalizando as startups, principalmente as de estágio mais inicial (early stages), uma vez que mesmo havendo investimento, os fundos procurarão reduzir seus riscos, procurando startups de maior maturidade ou que sejam o mais profissionalizadas possíveis”, explica.
Para Justo, “se tem sinais de uma possível recessão global, no limiar de um aumento de taxa de juros que pode validar esse ponto, fazendo com que a retenção de capital seja ainda mais severa para o acesso a capital. O momento é desafiador e incerto de forma geral, porém acredito que o Ceará vem evoluindo seu senso de comunidade, melhorando a maturidade das corporações para acesso das startups, o que pode nos ajudar a explorar oportunidades nesse período difícil e sair a frente e manter o ritmo, mesmo em um período de grande turbulência”.
Rapadura Valley: startups cearenses tornam estado um dos pólos de inovação do Nordeste
O Brasil se classifica entre os 10 países com o maior número de startups avaliadas acima de US$1 bilhão, com uma relação total de 16 unicórnios atualmente – concentrados, principalmente, no eixo Sul-Sudeste. Mas não é somente nessas regiões que se encontra o potencial criativo do brasileiro: estados como Bahia, Alagoas, Pernambuco e Ceará têm feito do Nordeste um dos pólos de inovação do País.
O mapeamento mais recente da Abstartups mostra que a região abriga hoje mais de 1.300 startups, com destaque para empresas com soluções em educação, saúde e desenvolvimento de software. E a marca regional dos nordestinos está presente até no nome das comunidades do ecossistema: Caju Valley, em Aracaju; Jerimum Valley, em Natal; Sururu Valley, em Maceió; e Rapadura Valley, em Fortaleza.
“O Rapadura Valley é um grande exemplo de como o ecossistema cearense é organizado e bem desenvolvido se comparado às nossas referências nacionais no Sudeste”, afirma Gabriella Bruno, coordenadora de inovação do ICC Biolabs, startup do Instituto do Câncer do Ceará (ICC) dedicada ao desenvolvimento de soluções em tecnologias disruptivas na área da saúde.
“O nosso estado concentra um grande potencial intelectual e acadêmico e somos excelentes nesse quesito. A inovação nasce sobretudo desse potencial que temos. Além disso, temos inúmeros programas de incentivo à inovação, tanto públicos, como privados, e nosso ecossistema é recheado de pessoas, projetos e instituições que eu posso chamar de “embaixadores” da inovação do Ceará”, acrescenta.
Maior grupo de soluções em saúde do Norte-Nordeste, o ICC Biolabs atua desde 2017 e conta também com um programa de aceleração de startups, que hoje possui 15 empresas em processo de desenvolvimento. A iniciativa fornece estrutura de validação, inclusive, para startups internacionais. “Entre softwares e soluções em biotecnologia, temos soluções que já impactaram mais de 90 mil pessoas, como a Plantão Ativo, que facilita a vida de profissionais que trabalham em regime de plantão”, explica.
Nesse panorama, o Ceará tem investido desde cedo em ações para disseminar a criação de negócios com o cerne em inovação. É o caso do programa Corredores Digitais, da Secretaria de Ciência Tecnologia e Educação Superior (Secitece), que já apoiou mais de 700 startups em todo o estado, com faturamento de mais de 2 milhões de reais pelos negócios.
Outra iniciativa é o programa Clusters Econômicos de Inovação, da Secretaria de Desenvolvimento Econômico e do Trabalho (Sedet), que atua junto ao Corredores Digitais e une governo, mercado e universidade em uma ação que busca resolver problemas estratégicos da região.
Para o gestor de jornada do programa Corredores Digitais, Michael Dhyani, “o estado do Ceará tem um grande potencial para startups, o mercado anseia por soluções que muitas vezes tem que importar para que sejam resolvidas”. “Além disso, o interior do nosso estado que muitas vezes não tem acesso a soluções que estão disponíveis apenas para os grandes centros”, pontua.
Na visão do CEO da HubLocal, startup cearense que cresceu 1000% durante a pandemia e recentemente anunciou 100 vagas de emprego, as startups ainda carecem do principal para atingir o pleno desenvolvimento: incentivos com recursos financeiros.
“O dinheiro é como se fosse o sangue de um negócio, ele não pode faltar jamais, senão ele morre. Boas ideias precisam mostrar indícios que são boas com o mínimo recurso possível e conseguimos identificar várias iniciativas que chegam nesse estágio em nosso estado”, assegura.
O problema, segundo ele, é que após validar a ideia, a startup vai necessitar de recurso financeiro, e ainda se tem poucos investidores locais. “Já vemos algumas iniciativas pontuais de alguns grandes empresários, porém ainda é muito pouco se quisermos um dia ser, ao menos parecidos, com os principais mercados de inovação do mundo”, finaliza.