Ancestralidade, batuques, fé e preconceito, tudo isso envolve as diversas religiões de matriz africana, que hoje em dia são praticadas em vários lugares do mundo, principalmente no Brasil. Mas você sabe como elas chegaram em território nacional? Antropólogos explicam como essa vinda se efetivou e destacam os obstáculos enfrentados até os dias atuais.
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Candomblé, Umbanda, Batuque, Tambor de Mina, Quimbanda e Xangô, ambas são apenas algumas das diversas variações das religiões vindas do continente africano e adaptadas em território brasileiro.
As denominações, criadas no Brasil, surgiram dos festejos realizados em regiões como: Angola, Benim e Nigéria. O processo aconteceu durante o período de escravização, quando a população negra foi trazida ao Brasil.
“A gente tem o costume de reservar um espaço específico da vida à religião, mas na verdade é muito mais complexo”, é o que afirma o antropólogo Leonardo Almeida.
Os costumes se “encontraram” com outras tradições no País, como o catolicismo europeu e práticas indígenas, como a Jurema (Catimbó). Segundo Leonardo, o processo, que se iniciou na região Sudeste, deu origem ao que chamamos hoje em dia de religiões de matriz africana.
As práticas religiosas se concentravam em sua grande maioria na região litorânea, como o Rio de Janeiro e Salvador, por onde os navios com os escravizados atracavam.
Franck Ribard, antropólogo e professor na UFC, esclarece que as festas são momentos importantes de congregação entre iniciados e simpatizantes em torno das entidades.
“Nesse sentido são datas importantes tanto do ponto de vista social, quanto espiritual, em momentos de sintonia dos corpos dançando aos sons dos atabaques, de partilha do axé e do compartilhamento posterior dos alimentos preparados ritualisticamente”.
Cantar e dançar ao som do atabaque estabelece um modo próprio e fundamental da atividade religiosa. “Da homenagem e da conexão do pessoal iniciado com as entidades das religiões de matrizes africanas”, explica o antropólogo.
Conforme Franck, foram se constituído repertórios e ritmos variados dedicados às entidades e aos diferentes momentos e situações da prática religiosa.
De acordo com ele, no âmbito culinário, as comidas, através dos seus diferentes ingredientes e saberes sedimentados são diversos tipos de energias que.
“Além de servirem com oferendas às entidades, são, muitas vezes, consumidos pela comunidade do terreiro e os vizinhos, visitantes”, acrescenta o antropólogo.
O antropólogo também explica que as festas se tornaram parte da cultura popular brasileira através da relação histórica com o continente africano, o dinamismo e a resistência cultural e identitária dos povos africanos trazidos ao País.
“A cultura popular brasileira emergiu naturalmente das bases culturais africanas religiosas ou não, que se re-territórializam aqui ao contato das populações indígenas e europeias. A cultura popular brasileira é muito rica e diversa, infelizmente às vezes não reconhecida na sua herança africana”, adiciona.
Ainda com a diversidade religiosa e o passar do tempo, as celebrações dessas religiões sofrem com diversas questões, uma delas é o racismo religioso. Para Franck Ribard, as principais questões atribuídas ao crime seria o racismo estrutural e a herança secular de mais de 350 anos de escravidão.
“Às quais se juntam estratégias atuais perigosas de incentivo ao ódio e à perseguição por parte de certas vertentes radicais de igrejas cristãs que buscam se posicionar no mercado da fé”, explica.
“Essa intolerância e esse racismo religioso maculam, infelizmente, nosso país, na rua, no ônibus, na repartição pública, no shopping, na escola, na favela ou em relação aos terreiros ou às festas religiosas”, finaliza o antropólogo.
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De acordo com o Inventário dos Povos de Terreiro do Ceará, feito pela Secretaria do Desenvolvimento Agrário (SDA), pelo menos 89,2% das lideranças de terreiro sofreram algum tipo de preconceito religioso.
A maioria das lideranças, 298 delas (60,32%), afirmou ter sofrido Racismo/Intolerância religiosa praticada por evangélicos”. Em complemento, as indicações das lideranças acerca de “Racismo/Intolerância religiosa praticada por evangélicos”, ou seja, as vezes que esta opção foi marcada, correspondem a 23% de todas as marcações realizadas na questão.
No caso específico do Ceará, das 494 lideranças entrevistadas, 183 (37%) afirmaram ter sido vítima de “Racismo/Intolerância religiosa praticada por católicos”, 148 (29,9%) afirmaram ter sido vítima de “Racismo/Intolerância religiosa praticada por pessoas de outras religiões” e 132 (26,7%) afirmaram ter sido vítima de “Racismo/preconceito étnico-racial”.
Algumas leis combatem a intolerância religiosa e outros crimes de preconceito voltados à comunidade negra. São exemplos a Lei 11.635/2007, que institui o Dia Nacional de Combate à Intolerância Religiosa. A data é comemorada anualmente em todo território nacional no dia 21 de janeiro.
Outro decreto é a Lei 14.532/2023, que equipara a injúria racial ao crime de racismo e reforça a proteção à liberdade religiosa.