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O impacto político das mortes
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O impacto político das mortes

| Brasil | O assassinato de um indigenista e um jornalista no coração da Amazônia assume proporção internacional, com efeitos políticos também locais
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Membro da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (APIB) segura a imagem do jornalista britânico desaparecido Dom Phillips e do especialista brasileiro em assuntos indígenas Bruno Pereira durante um protesto convocado por ativistas do grupo de protesto contra as mudanças climáticas Extinction Rebellion (XR) e membros do APIB perto do prédio da Comissão Europeia em Bruxelas em 16 de junho de 2022 (Foto: KENZO TRIBOUILLARD / AFP)
Foto: KENZO TRIBOUILLARD / AFP Membro da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (APIB) segura a imagem do jornalista britânico desaparecido Dom Phillips e do especialista brasileiro em assuntos indígenas Bruno Pereira durante um protesto convocado por ativistas do grupo de protesto contra as mudanças climáticas Extinction Rebellion (XR) e membros do APIB perto do prédio da Comissão Europeia em Bruxelas em 16 de junho de 2022

Duas semanas depois do desaparecimento na Amazônia do indigenista Bruno Pereira, 41 anos, e do jornalista britânico Dom Phillips, 57, cujas mortes foram confirmadas na última quarta-feira, não há dúvida de que o crime tem um impacto político para o presidente Jair Bolsonaro (PL) e o Brasil.

Mas qual a extensão do efeito do bárbaro episódio: mais local ou internacional? No âmbito nacional, o caso se limitaria à elucidação das motivações e a identificação de possível mandante? Ou pode se refletir também no processo eleitoral?

Para especialistas entrevistados pelo O POVO, é incerto avaliar agora, no calor do momento, o potencial de dano que o fato pode causar ao chefe do Executivo, que busca a reeleição mantendo a mesma plataforma que o elegeu em 2018.

Nela, o desmonte de órgãos como a Funai e Ibama já estava presente, além do ataque aos povos indígenas e a suas terras - fatores que estão na base do contexto de violência da região amazônica do qual Bruno e Dom foram vítimas.

Embora acreditem que a pressão internacional será cada vez maior e a cobrança de resultados da investigação, intensa, internamente não se pode assegurar, dizem as fontes, que o assassinato de um estrangeiro e um servidor federal signifique uma ameaça para o mandatário.

Cientista política do Laboratório de Estudos Eleitorais, de Comunicação Política e de Opinião Pública da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj), Carolina Botelho calcula que as consequências para Bolsonaro são "péssimas".

"Ele perde mais capital político, se é que é possível, para negociar ou melhorar a reputação no diálogo internacional. Pelo menos com as nações democráticas, que defendem os direitos humanos e estão preocupadas com o avanço reacionário que tem dominado a agenda pública no Brasil", aponta a pesquisadora.

One of the coffins containing human remains found during the search for missing British journalist Dom Phillips and indigenous expert Bruno Pereira in the Amazon forest, is carried upon arrival at the Federal Police hangar in Brasilia on June 16, 2022. - Phillips and Pereira went missing on June 5 in a remote part of the rainforest that is rife with illegal mining, fishing and logging, as well as drug trafficking. On June 15 a suspect in the case took police to a place where he said he had helped bury bodies near the city of Atalaia do Norte, where the two had been headed. Human remains unearthed from the site arrived in Brasilia to be identified by experts. (Photo by Sergio LIMA / AFP)(Foto: SERGIO LIMA/AFP)
Foto: SERGIO LIMA/AFP One of the coffins containing human remains found during the search for missing British journalist Dom Phillips and indigenous expert Bruno Pereira in the Amazon forest, is carried upon arrival at the Federal Police hangar in Brasilia on June 16, 2022. - Phillips and Pereira went missing on June 5 in a remote part of the rainforest that is rife with illegal mining, fishing and logging, as well as drug trafficking. On June 15 a suspect in the case took police to a place where he said he had helped bury bodies near the city of Atalaia do Norte, where the two had been headed. Human remains unearthed from the site arrived in Brasilia to be identified by experts. (Photo by Sergio LIMA / AFP)

Disso pode resultar, acrescenta, decréscimo de investimento econômico, "já que mostra desprezo pelas florestas e pelos direitos dos povos originários que deveriam ser assegurados pelo chefe do Executivo também".

Sobre estrago eleitoral, Botelho responde que não saberia medir, mas, ela reflete, "digamos que ele perde capital político e possibilidade de diálogo com os grupos mais preocupados com a democracia e o pacto civilizatório, seja aqui ou fora, e, em consequência, fica restrito aos grupos mais radicalizados e pouco preocupados com essas questões".

Professor de Direito na Universidade Regional do Cariri (Urca), Fernando Castelo Branco entende que a repercussão das mortes tende a ser principalmente "internacional, porque se trata de um jornalista britânico, e não de um meio de comunicação secundário, mas um jornalista colaborador do 'Guardian', um dos principais jornais da Europa".

"Isso vai causar", indica o docente, "uma repercussão na imprensa e em meio às entidades que atuam com direitos humanos e a questão ambiental, o que aumenta o desgaste, a desmoralização e o isolamento político internacional do Bolsonaro".

Castelo Branco pondera, no entanto, que esse desgaste não deve se materializar em vetos a produtos do Brasil ou mesmo em bloqueios econômicos, ou seja, o país não deve sofrer sanções por causa dessas mortes.

"Não acho que os países vão impor restrições de natureza comercial à madeira e ao minério extraídos da Amazônia. Mas, com relação ao isolamento político, isso vai aumentar", projeta.

O pesquisador é igualmente cético quanto ao impacto que o episódio possa ter localmente, a ponto de interferir na campanha de Bolsonaro pela recondução ao cargo, hipótese considerada remota.

"Do ponto de vista interno, todo mundo vai falar muito sobre o assunto, mas não acho que Bolsonaro vai perder muito voto ou apoio ao governo além do que já perdeu. Bolsonaro fala para convertidos, para a base radicalizada do bolsonarismo", analisa.

Como exemplo, ele cita a declaração do presidente segundo a qual Dom Phillips era "malvisto" na Amazônia, uma fala atravessada por desumanidade e falta de empatia com a família das vítimas. Contudo, para o especialista, essa posição do presidente se conecta com o que pensa o seu eleitorado.

"Isso repercute mal entre nós, que temos uma visão sobre o governo que não é a melhor", conclui, "mas entre a base não faz com que perca algum voto".

O ponto de vista é partilhado por Cláudio Couto, cientista político e professor da FGV de São Paulo, para quem o efeito do caso também tem força restrita no cenário brasileiro.

"Creio que é um evento muito negativo para Bolsonaro, sobretudo no âmbito internacional. A péssima imagem que ele já tinha só tende a piorar com esse episódio", antecipa o estudioso, acrescentando que, "no que diz respeito ao peso disso na avaliação do governo e do presidente, bem como nas intenções de voto, eu teria dificuldades de avaliar".

"Suponho que tenha um efeito negativo, mas é difícil mensurar em que medida", examina Couto, que cita dificuldade em determinar a real incidência do crime na opinião pública e se o eleitorado terá "a percepção de que os dois assassinatos resultam da política do governo para as populações indígenas e para a Amazônia".

Funcionários da Fundação Nacional do Índio protestam pelo desaparecimento do jornalista britânico Dom Phillips e do especialista brasileiro em assuntos indígenas Bruno Pereira, em Brasília, em 9 de junho de 2022. A família de um jornalista britânico desaparecido na Amazônia pediu às autoridades britânicas e brasileiras em Londres nesta quinta-feira que intensificar seus esforços para encontrá-lo. Dom Phillips, 57, colaborador regular do The Guardian, e Bruno Pereira, 41, especialista em povos indígenas, foram dados como desaparecidos no domingo depois de se aventurarem no meio da floresta amazônica. (Foto: EVARISTO SA / AFP)
Foto: EVARISTO SA / AFP Funcionários da Fundação Nacional do Índio protestam pelo desaparecimento do jornalista britânico Dom Phillips e do especialista brasileiro em assuntos indígenas Bruno Pereira, em Brasília, em 9 de junho de 2022. A família de um jornalista britânico desaparecido na Amazônia pediu às autoridades britânicas e brasileiras em Londres nesta quinta-feira que intensificar seus esforços para encontrá-lo. Dom Phillips, 57, colaborador regular do The Guardian, e Bruno Pereira, 41, especialista em povos indígenas, foram dados como desaparecidos no domingo depois de se aventurarem no meio da floresta amazônica.

 

O presidente brasileiro Jair Bolsonaro comemora depois de falar com brasileiros em Orlando, Flórida, em 11 de junho de 2022
O presidente brasileiro Jair Bolsonaro comemora depois de falar com brasileiros em Orlando, Flórida, em 11 de junho de 2022

"Fatos como esse não alteram a perspectiva eleitoral", diz pesquisador

O indigenista Bruno Pereira e o jornalista britânico Dom Phillips foram assassinados numa tocaia armada por pescadores ilegais, que, segundo entidade indígena, já vinham ameaçando o brasileiro há algumas semanas.

Entre os presos sob acusação de cometerem o crime, está Amarildo da Costa de Oliveira, conhecido como "Pelado", que assumiu a autoria dos homicídios e indicou o local onde os restos mortais da dupla foram encontrados e de onde foram levados para a perícia, em Brasília - os corpos foram esquartejados e queimados.

De acordo com nota emitida pela União dos Povos Indígenas do Vale do Javari ainda na sexta-feira, 17, "o requinte de crueldade utilizado na prática do crime evidencia que Pereira e Phillips estavam no caminho de uma poderosa organização criminosa que tentou a todo custo ocultar seus rastros durante a investigação".

A fala rebate nota da Polícia Federal, que alegou não haver indício de mandante, tampouco de participação de grupo criminoso por trás dos assassinatos.

Dom e Bruno desapareceram no domingo, 5, quando se dirigiam à cidade de Atalaia do Norte, no Amazonas. Licenciado da Funai, o indigenista havia sido exonerado do posto que ocupava depois de pressão política que se seguiu a uma operação contra a pesca ilegal em terras indígenas.

Apesar de suas mortes terem componentes evidentemente políticas, estando associadas a um contexto de fragilização e asfixia de instituições de controle e fiscalização na Amazônia, o efeito que devem ter sobre o quadro local é questionável.

LOS ANGELES, CALIFÓRNIA - 08 DE JUNHO: Nemo Andy Guiquita, um líder indígena Waorani do Equador, manifesta durante um protesto pedindo a proteção da Amazônia e denunciando o presidente brasileiro Jair Bolsonaro, durante a Nona Cúpula das Américas em 08 de junho de 2022 em Los Angeles, Califórnia.(Foto: MARIO TAMA / GETTY IMAGES NORTH AMERICA / GETTY IMAGES VIA AFP)
Foto: MARIO TAMA / GETTY IMAGES NORTH AMERICA / GETTY IMAGES VIA AFP LOS ANGELES, CALIFÓRNIA - 08 DE JUNHO: Nemo Andy Guiquita, um líder indígena Waorani do Equador, manifesta durante um protesto pedindo a proteção da Amazônia e denunciando o presidente brasileiro Jair Bolsonaro, durante a Nona Cúpula das Américas em 08 de junho de 2022 em Los Angeles, Califórnia.

Professor e pesquisador, o cientista político Cleyton Monte considera que, infelizmente, "fatos como esse não alteram a perspectiva eleitoral do presidente porque as declarações, ações e visão dele não destoam do que está acontecendo".

"As críticas que recebeu, está recebendo e vai receber", assinala, "são dos grupos que já não votariam nele e não têm pretensão de votar".

Monte acrescenta que o eleitorado bolsonarista "não é influenciado por questões ambientais" e que "esses episódios arranham a imagem internacional do Brasil, mas não necessariamente atrapalham Bolsonaro, visto que não têm repercussão negativa forte para o presidente".

"Há outras coisas na ordem do dia", explica, como o próprio aumento no preço dos combustíveis, anunciado na sexta-feira, 17, que resultou em reações do presidente e de seus aliados, como o deputado federal Arthur Lira (PP-AL).

Para o professor e cientista político Pedro Gustavo Souza, da Universidade Estadual do Ceará (Uece), "o fato é lamentável e põe ainda mais em evidência a problemática da Amazônia (desmatamento, grilagem, mortes etc.)".

"Como um dos mortos é um jornalista estrangeiro", adiciona, "desgasta ainda mais a imagem do governo no âmbito internacional, mas, em termos estritamente eleitorais, contudo, é difícil afirmar se terá algum impacto para 2022". (Henrique Araújo)

 

O presidente brasileiro Jair Bolsonaro fala durante a cerimônia de posse de novos ministros no Palácio do Planalto, em Brasília, em 31 de março de 2022
O presidente brasileiro Jair Bolsonaro fala durante a cerimônia de posse de novos ministros no Palácio do Planalto, em Brasília, em 31 de março de 2022

"Esse crime é uma síntese" do governo na Amazônia

Cientista político, Rodrigo Prando (Faculdade Mackenzie) avalia que o assassinato do indigenista brasileiro Bruno Pereira e do jornalista britânico Dom Phillips é "um elemento-síntese de tudo aquilo que o governo Bolsonaro tem em relação à Amazônia".

"Desmonte dos órgãos de controle e a forma como atacou e afrontou cientistas do monitoramento. Tudo que aconteceu (durante os mais de três anos e meio) assume uma síntese nesse crime", aponta o pesquisador.

Na contramão do que dizem outros especialistas no campo político, quando questionado sobre possível impacto, Prando entende que efeitos negativos para Jair Bolsonaro (PL) na disputa eleitoral vão depender de como o tema seja tratado durante a campanha.

"Vamos ver como os adversários do presidente, como Lula, Ciro Gomes, Simone Tebet, vão usar o episódio a fim de dar uma escalada na crítica. Isso vai depender da comunicação que cada candidato vai utilizar", projeta.

Segundo ele, o episódio bárbaro "sem dúvida é um elemento que ganha uma dimensão política no período eleitoral e pode ser explorado em questões mais estruturais, a respeito do desmonte promovido pelo presidente" na região da Amazônia.

Como exemplo, cita a falta de políticas para demarcação de terras indígenas, desmobilização da Funai e do Ibama, afrouxamento do controle na área e o estímulo a atividades como o garimpo.

Um manifestante segura uma faixa com o jornalista britânico desaparecido Dom Philipps e o especialista indígena brasileiro Bruno Pereira lendo (Foto: CARL DE SOUZA / AFP)
Foto: CARL DE SOUZA / AFP Um manifestante segura uma faixa com o jornalista britânico desaparecido Dom Philipps e o especialista indígena brasileiro Bruno Pereira lendo

"Além disso", continua, "há uma questão pessoal, em que o presidente tem dificuldade de ser empático: a gente cansou de ver a forma como ele tratou a pandemia, os milhares de mortes, como desdenhou do sofrimento, da dor e da morte, e agora também por desconsiderar a dor das pessoas envolvidas nesse crime".

Até agora, porém, os adversários do presidente na corrida eleitoral têm evitado um uso mais direto do caso, tecendo críticas à gestão Bolsonaro de maneira mais genérica, sem responsabilizar enfaticamente o chefe do Executivo pela violência na região onde Dom e Bruno foram mortos - uma área amplamente dominada por exploração ilegal dos recursos naturais. (Henrique Araújo)

 

Dom Phillips desapareceu enquanto realizava uma pesquisa para um livro no Vale do Javari da Amazônia junto ao renomado especialista em questões indígenas Bruno Pereira
Dom Phillips desapareceu enquanto realizava uma pesquisa para um livro no Vale do Javari da Amazônia junto ao renomado especialista em questões indígenas Bruno Pereira

Brasil pode ser acionado judicialmente por mortes

O Brasil pode ser responsabilizado internacionalmente pelas mortes de Dom Philips e Bruno Pereira, indica o professor de Direito e pesquisador Fernando Castelo Branco, da Universidade Regional do Cariri (Urca). Segundo ele, "é possível responsabilizar o estado brasileiro sobre essas mortes, mas é um longo caminho" jurídico.

Uma possibilidade, por exemplo, é acionar a Corte Interamericana de Direitos Humanos, da qual o país é signatário desde 1998 e, nesse período, já foi condenado uma dezena de vezes. "De 2006 para cá, quando sofreu a primeira condenação, o Brasil já foi denunciado 11 vezes. Disso resultaram dez condenações", afirma.

Para ele, essa poderia ser uma alternativa caso se queira apurar responsabilidades de agentes do estado nos homicídios de Dom e Bruno na Amazônia, por negligência ou ação direta, comprovada por investigação em curso. "Mas o processo é lento", reitera Castelo Branco, acrescentando que a primeira denúncia contra o Brasil se deu em 1999, mas só resultou em condenação sete anos depois.

"É um caso do Ceará, do Damião Ximenes Lopes, internado na Casa de Repouso Guararapes, em Sobral, e lá morreu quatro dias depois da internação, vítima de tortura", conta o professor.

De acordo com ele, o "Brasil foi condenado a indenizar a família do Damião Ximenes e a responsabilizar aqueles que praticaram os maus-tratos e a implementar uma política de formação e capacitação de profissionais destinada a lidar com pessoas com transtornos psiquiátricos".

"Algo semelhante pode ocorrer (no caso presente)", continua, "mas estamos falando de uma condenação que pode levar alguns anos para acontecer". (Henrique Araújo)

DOM Phillips e Bruno Pereira atuavam em defesa  da proteção de povos indígenas(Foto: EVARISTO SA / AFP)
Foto: EVARISTO SA / AFP DOM Phillips e Bruno Pereira atuavam em defesa da proteção de povos indígenas

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