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Embates entre Secultfor e classe artística marcam gestão
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Embates entre Secultfor e classe artística marcam gestão

Relação entre trabalhadores e trabalhadoras da cultura com a gestão é marcada por tensões; classe demanda diálogo, mas não vê abertura
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Tradicional Salão de Abril é um dos principais eventos de artes visuais do País (Foto: Thiago Matine/Divulgação)
Foto: Thiago Matine/Divulgação Tradicional Salão de Abril é um dos principais eventos de artes visuais do País

 Na primeira entrevista concedida ao O POVO já como titular da Secretaria da Cultura de Fortaleza (Secultfor), em 6 de janeiro de 2021, Elpídio Nogueira ressaltou que pretendia agir em busca de "abrir diálogo com todos os segmentos para que a gente possa construir uma agenda, um calendário, ações que passem dos editais". Mais de dois anos depois, a avaliação da gestão por artistas ouvidos pelo Vida&Arte é marcada por críticas à falta de diálogo, ações e transparência.

A programação de Carnaval promovida neste ano pela Prefeitura foi paradigmática na conflituosa relação da Secultfor com a classe. A tradicional festa se desenrolou em meio à demora do resultado dos editais do período e a contratação de atrações de maneira independente da chamada pública.

Titular da secretaria de Cultura de Fortaleza (Secultfor), Elpídio Nogueira destacou, em janeiro de 2021, a busca por uma abertura ao diálogo "com todos os segmentos"
Foto: Divulgação
Titular da secretaria de Cultura de Fortaleza (Secultfor), Elpídio Nogueira destacou, em janeiro de 2021, a busca por uma abertura ao diálogo "com todos os segmentos"

Em discurso de encerramento no pólo do Benfica, Elpídio foi vaiado por parte do público. Ao O POVO, o secretário rebateu as vaias citando suposto "viés político" de artistas que fariam do embate um "trampolim na cultura". "Eles podem fazer isso, mas não vou responder. Vou tratar a cultura de Fortaleza suprapartidariamente", afirmou.

O acúmulo de tensões entre gestão e classe passa ainda por problemas de diferentes ordens em vários eventos calendarizados, do Salão de Abril — cuja edição de 2022 ficou marcada por erro na utilização dos nomes sociais de artistas trans —, ao Festival de Teatro — com execução atropelada —, além da falta de informações acerca do andamento do Edital das Artes e questionamentos sobre o uso de equipamentos como o Teatro São José, por exemplo.

Confira primeira parte da reportagem | Cultura na gestão Sarto é marcada por recordes negativos de investimentos

"A atual gestão tem estabelecido uma forma de política unilateral, com poucos diálogos com as artistas e coletivos. Não tem conseguido dar fluxo aos processos, editais, pagamento, ou seja, não tem tido fluxo que, minimamente, dê alguma perspectiva de continuidade dos trabalhos", avalia Henrique Gonzaga, membro do grupo Nóis de Teatro.

"Os prazos são prometidos e não cumpridos, o diálogo com a classe é difícil e tudo o que a Secretaria planeja e realiza é inacreditavelmente fora do contexto da Cidade", lista Honório Félix, artista da dança e do teatro. Uma proponente do Edital das Artes que prefere não ser identificada relata ausências da gestão. "O edital foi lançado há quase um ano e não houve, até agora (14 de fevereiro), retorno algum quanto ao resultado final. Isso gera desgaste extremo e desconfiança de um órgão no qual devemos confiar", aponta. Somente no dia 5 de abril, o resultado do certame foi divulgado. 

"Tenho sentido, principalmente após o Salão de Abril, que existe uma apatia e um desinteresse enorme pela classe artística. A ausência dos gestores na abertura e durante a exposição deixou claro que a gestão atual não se interessa pelo movimento artístico e tampouco pelos agentes e trabalhadores da cultura", ressalta o artista visual Beijamim Aragão, selecionado para o evento no ano passado.

Beijamim ainda observa o que define como "desmonte", com "interesses privados à frente da construção da política pública" e enfraquecimento de mecanismos de construção do diálogo com a sociedade civil, como fóruns e o Conselho Municipal de Política Cultural (CMPC).

A cantora Claudine Albuquerque ecoa as críticas. "Vemos equipamentos sucateados, com programações muito aquém das capacidades e sempre com as mesmas atrações. Os chamamentos não são claros, quem são e como são escolhidas as curadorias (são) menos ainda", aponta.

"A falta de regularidade ou pelo menos entendimento de fluxo dos editais, demora nos resultados, erros nos resultados, execuções de eventos e editais com prazos curtíssimos, tudo isso demonstra a falta de capacidade de planejamento da gestão e desemboca em falta de ações continuadas para artistas e coletivos", resume Henrique.

O ator e diretor lista como ações centrais que a Secultfor deveria tomar pontos como a organização de cronograma exequível de ações, planejamento de execução de recursos e, "mais urgente", o estabelecimento de "política de continuidade" que dê segurança a artistas e coletivos.

Claudine destaca, ainda, diálogo e transparência. "Primeiramente, abrir diálogo com profissionais para conhecer as necessidades da classe. Em seguida, tendo essas informações, promover ações transparentes no chamamento, de modo que haja mais facilidade de acesso e diversidade nas programações", demanda.

 

 

Relembre cobertura de problemas ligados à Secultfor

Beijamim lembra também do lugar de instrumentos de participação civil. "A secretaria tem um papel importante para fortalecer o Conselho de Cultura e os fóruns. Os agentes da cultura precisam ter espaço na gestão para construir o calendário de ações, pensar a política pública e fiscalizar o uso dos recursos e a execução do orçamento público", cobra.

O cenário, porém, é de descrença. "Estou desesperançoso que essa gestão seja capaz de dialogar. A única solução possível que consigo enxergar é uma mudança no cargo de Secretário, acompanhado de uma nova equipe", afirma Honório.

Em retrospecto, o artista lembra da ocupação da sede da Secultfor ocorrida em 2015, durante a gestão do então prefeito Roberto Cláudio e do secretário Magela Lima. "Estávamos passando por um momento de descaso muito grande, com atraso nos editais e falta de ajuste nos valores. Como a falta de diálogo era grande, a única saída foi a ocupação, que rendeu frutos como a lei que regulamenta o lançamento anual do Edital das Artes", recupera.

"Apesar disso, continuamos a ter problemas grandes com a Secultfor. Na gestão de Gilvan Paiva (secretário entre abril de 2018 e dezembro de 2020), a Cultura de Fortaleza teve uma melhora no cumprimento aos prazos prometidos e no diálogo com a classe trabalhadora através do Conselho Municipal da Cultura. Depois, com a gestão do secretário Elpídio Nogueira, tudo isso desandou", destrincha.

O principal impactado, observa o artista, é o cidadão de Fortaleza. "Evidentemente, os artistas e trabalhadores da cultura passam por inúmeros problemas pela falta de oportunidade para a realização dos seus projetos. Mas o mais prejudicado é o fortalezense, que fica desassistido do seu direito de acesso às artes e à cultura. Esse é o maior problema. Política cultural é para a cidade. E a cidade não está sendo abastecida", lamenta.

Pandemia demandou "adaptações", justifica Secultfor

A partir dos dados levantados pelo O POVO, o Vida&Arte contactou a Secretaria da Cultura de Fortaleza em busca de justificativas para as reduções que vêm marcando a gestão em importantes investimentos e ações. A pasta afirma que teve que passar por "adaptações" relacionadas à pandemia que afetaram a execução orçamentária, como a impossibilidade de "realizar grandes eventos como Carnaval, festejos juninos e outros tantos festivais que movimentam o setor".

Destacando o valor previsto na LOA 2022 para a Secultfor como "o maior orçamento dos últimos dez anos", a secretaria afirmou ao Vida&Arte por e-mail que "mesmo com o avanço da vacina e uma significativa melhora no cenário de pandemia, o ano de 2022 ainda exigiu algumas adaptações". "O Ciclo Carnavalesco de Fortaleza, por exemplo, foi uma das ações que estavam planejadas mas que não pôde ser realizada", exemplifica a pasta, referindo-se ao período de 2022.

"Contudo, apesar de toda delicadeza do período, a secretaria registrou a quarta maior execução orçamentária da década. Foram R$ 22.528.380.00 inseridos na cena cultural da cidade", afirma a Secultfor, que elenca ainda o lançamento de 11 editais e dois processos licitatórios "que contemplaram desde o credenciamento de profissionais até a realização de grandes eventos para o público, além da aquisição de materiais e formação de agentes culturais".

O valor de R$ 22,5 milhões compartilhado pela Secultfor refere-se ao empenhado e, por isso, difere-se do valor de pouco mais de R$ 21,1 milhões levantado pelo OP e citado no primeiro texto, que diz respeito ao pago. Ambos os dados estão disponíveis no acompanhamento da execução orçamentária da secretaria no Portal da Transparência.

Já a descrição dada pela Secultfor da "quarta maior execução orçamentária da década" em 2022 leva em conta os valores brutos. A partir dos dados do OP — cuja base foi o acompanhamento da execução orçamentária do Portal da Transparência entre 2014 e 2022, portanto em recorte temporal distinto do ressaltado pela Prefeitura —, revelam-se como numericamente maiores, na ordem, as execuções de 2019 (R$ 33 mi), 2016 (R$ 24 mi), 2020 (R$ 23 mi) e 2022 (R$ 21 mi).

Dados apontam quedas acentuadas em diferentes aspectos de execução orçamentária da Secultfor
Foto: Thiago Matine / Secultfor
Dados apontam quedas acentuadas em diferentes aspectos de execução orçamentária da Secultfor

No entanto, os dados do OP ressaltam o percentual, o que ajuda a evitar discrepâncias. A partir disso, é possível saber, como já citado, que o pagamento de 2022 correspondeu a 28% do orçamento previsto na LOA — e ressaltado pela Secultfor em resposta à reportagem — de R$ 75,5 milhões.

Em relação à porcentagem de 0,41% no empenho, a Secultfor respondeu se utilizando do fato de que a função cultura, na LOA 2022, correspondia a 1,03%, ou R$ 102.462,129,00. Valor, destaca a pasta, "destinado pela Prefeitura para todas as ações e projetos com esta rubrica, não necessariamente executados pela Secultfor, ao longo do ano", uma vez que outras secretarias contam com orçamento "para atividades culturais relacionadas aos serviços prestados na sua área de atuação".

A resposta, no entanto, se refere a um ponto diferente do questionado. A LOA de fato previu 1,03% para a função orçamentária Cultura, mas somente 0,41% do valor empenhado pela Prefeitura de Fortaleza em todas as funções foi destinado para tal função.

Já em relação à redução de 88% na subfunção difusão cultural, a pasta volta a apontar o contexto de pandemia como responsável. "A cultura foi, sem dúvida, um dos setores mais prejudicados pela pandemia. Foram dois anos sem a possibilidade de realizar grandes eventos como carnaval, festejos juninos e outros tantos festivais que movimentam o setor. Mas, à medida que a vacinação avançou e o cenário ficou mais favorável, a Secultfor retomou a agenda de seus equipamentos, além de implementar projetos fundamentais para a promoção da cultura de Fortaleza", afirmou.

Gestão "pratica diálogo", mas informações seguem desencontradas

O IX Edital das Artes, um dos principais instrumentos de difusão cultural da Secretaria da Cultura de Fortaleza, foi lançado em maio de 2022 e tinha previsão de execução no segundo semestre daquele ano. O resultado final da chamada foi divulgado, porém, quase um ano depois do lançamento, na quarta-feira, 5 de abril — ainda que a pasta tenha informado ao Vida&Arte em 30 de março previsão de divulgação para o dia 31.

Questionada sobre dificuldades na realização de eventos, programações e políticas contínuas — como o próprio Edital das Artes, o Salão de Abril, o Festival de Teatro e o Ciclo Carnavalesco —, a pasta responsabiliza "eventos que independem da gestão" e defende que "nos pontos que dependem, exclusivamente, do corpo técnico da Secretaria, os processos costumam correr dentro do prazo previsto".

Ciclo Carnavalesco de 2023 foi marcada por problemas e tensionamentos da gestão com artistas e produtores
Foto: Samuel Setubal
Ciclo Carnavalesco de 2023 foi marcada por problemas e tensionamentos da gestão com artistas e produtores

De acordo com a pasta, "o cronograma de alguns editais foi prejudicado por eventos que independem da gestão. Por exemplo, cada vez que ocorre uma falha no sistema do mapa cultural, que é uma plataforma por onde são veiculados todos os trâmites da seleção, há uma pausa no processo. Até que os proponentes possam utilizar a ferramenta, o edital fica impossibilitado de avançar para as fases seguintes. Então, se há uma prorrogação no prazo das inscrições, será adiada a fase de avaliações e assim, o cronograma vai sendo alterado", afirma a Secultfor.

"Nos pontos que dependem, exclusivamente, do corpo técnico da Secretaria, os processos costumam correr dentro do prazo previsto. Em março, pouco mais de um mês depois do Carnaval, já foram pagos todos os proponentes do edital do Ciclo Carnavalesco adimplentes com a pasta", exemplificou a gestão, apesar da quebra do prazo dado do resultado final do XI Edital das Artes.

A Secultfor lista, ainda, os editais já concluídos, em processo ou programados pela pasta para 2023. Entre eles, estão o do 74ª Salão de Abril, que já teve resultado divulgado; Maracatus e de Cultura Tradicional Popular, com inscrições abertas; e o I Edital de Circuito de Teatro, com lançamento programado para 24 de abril.

Entre editais em "elaboração para lançamento em breve", como afirma a pasta, estão o dos Festejos Juninos, de Pesquisadores do Ciclo Junino, do Festival de Teatro, o X Edital das Artes e os da Lei Paulo Gustavo.

Ao questionamento da reportagem sobre a atual configuração e papel do Conselho Municipal de Política Cultural, a Secultfor afirma que o órgão colegiado permanente tem "caráter normativo, deliberativo, fiscalizatório e consultivo" cuja finalidade é "promover a gestão democrática e autônoma da cultura no Município".

Além disso, o CMPC também fomenta "a articulação governamental com os Sistemas Nacional e Estadual de Cultura, garantindo a continuidade e permanência das políticas, programas, projetos e ações de interesse municipal", bem como "auxilia na elaboração e/ou aprimoramento da legislação cultural de Fortaleza, propondo critérios de uso e ocupação de seus equipamentos culturais".

Finalmente, questionada sobre ações para realinhar a relação da pasta com a classe cultural no restante da gestão, a pasta afirma que "acredita, e pratica, o diálogo com todas as linguagens culturais da Cidade". "Durante as reuniões mensais do Conselho Municipal de Política Cultural, por exemplo, o Secretário possui uma pauta que é sugerida pelos conselheiros. A gestão aceita as proposições que são encaminhadas e acredita que políticas públicas se constroem em conjunto", finaliza.

 

Metodologia

Para esta análise, foram coletados dados de despesas da Prefeitura de Fortaleza por Função e por Área de Atuação, disponíveis no Portal da Transparência. Foram consideradas as despesas por função no período de 2010 a 2022 e as despesas por área de atuação no período de 2014 a 2022. Em seguida, foi realizada uma análise descritiva dos dados e a correção monetária com base no Índice Nacional de Preços ao Consumidor Amplo (IPCA).

Para garantir a transparência e a reprodutibilidade desta e de outras reportagens guiadas por dados, O POVO+ mantém uma página no Github na qual estão reunidos códigos e bases de dados produzidos para as publicações.

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