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Carroça de Mamulengos: a arte brincante que agrega e encanta
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Carroça de Mamulengos: a arte brincante que agrega e encanta

Há quase 50 anos, família Gomide cresce em torno da arte da cultura popular a partir de Juazeiro do Norte
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Crianças da família se integram à Companhia Carroça de Mamulengos desde bebê (Foto: Lela Beltrão/Divulgação )
Foto: Lela Beltrão/Divulgação Crianças da família se integram à Companhia Carroça de Mamulengos desde bebê

Mais do que bonecos feitos de madeira, sisal, bucha e cabaça, os personagens aos quais dá vida a arte brincante da família Gomide são parte constituinte da sua história. Hoje em sua terceira geração, a memória da família e da companhia Carroça de Mamulengos se entrelaçam e dão vida a brincadeiras e bonecos.

A narrativa não tem fim ao terminar as apresentações ou ao sair de cena, porque a companhia familiar construída por Carlos Gomide e Shirley França, e todos aqueles que com os anos passaram a também constituí-la, demonstra o poder arrebatador da arte.

É assim mesmo que ela começa, com uma apresentação que Carlos assistiu enquanto ainda morava em Brasília e que lhe proporcionou o primeiro contato com o teatro de bonecos pernambucano, o mamulengo. Foi esse contato que desencadeou a gênese do ofício que ele vem desempenhando há 47 anos.

Mesmo antes de ser fascinado pelo teatro de bonecos, Carlos já tinha sonho de viver de teatro. Trabalhando de manhã e de tarde, encontrava tempo à noite para ensaiar em uma oficina teatral no Serviço Social do Comércio (Sesc) do Distrito Federal.

À época, com seus vinte e poucos anos, ele morava no alojamento da maior papelaria de Brasília, responsável pelo fornecimento de papel aos ministérios brasileiros, onde trabalhava, carreira que, segundo ele, pagava relativamente bem. Entretanto, o encantamento com a apresentação foi tamanho que decidiu deixar o antigo trabalho e dedicar-se à arte.

"Eu tomei uma opção radical na minha vida, tomei uma decisão que não faria mais nada que eu não desejasse e que não me trouxesse plenitude," conta o artista.

Determinado a viver para a arte e munido de um saco de dormir, Carlos passou três meses dormindo em quadras de Brasília, indo todas as manhãs ao Sesc para confeccionar os bonecos, à época feitos de sucata, para montar a sua brincadeira.

Carlos Gomide, diretor da Carroça de Mamulengos(Foto: Divulgação)
Foto: Divulgação Carlos Gomide, diretor da Carroça de Mamulengos

 

"Eu fiquei três meses dormindo nas ruas até que a brincadeira tivesse pronta, o espetáculo estivesse montado. A partir daí, eu comecei a apresentar em praças, comecei a apresentar em escolas, aniversários, instituições, e assim surgiu a companhia Carroça de Mamulengos," explica.

Durante as apresentações em Brasília, especificamente em apresentações para a Fundação Cultural do Distrito Federal, Carlos conheceu Shirley França. Após assistir uma de suas apresentações, a convite dele, ela também dividiu o encantamento pelo teatro de bonecos.

"A companhia Carroça tem uma história de montagens que sempre tocou o coração e a alma de muita gente, então desde essa primeira montagem, eu me lembro que existia um encantamento das pessoas com as apresentações", lembra.

Recordar sua trajetória com Shirley leva Carlos a pensar sobre a importância, para além dos planos que são traçados na vida, das coisas que acontecem quando não estamos esperando. "O que fortalece as nossas vidas são os nossos encontros, não só com seres humanos, pode ser com um local, com uma imagem, com um livro. São encontros," reflete.

Foi também pelo encontro com um amigo que lhe disse que ele "precisava conhecer Juazeiro do Norte", que Carlos mudou-se com Shirley para a cidade onde hoje vivem com sua família.

Chegando pela primeira vez na cidade, a qual considera um "grande celeiro de cultura popular", os dois deparam-se com uma romaria e com vários brincantes e diferentes folguedos.

O encanto com o Cariri foi o que motivou o casal a firmar raízes no Ceará, apesar de sempre viajarem para fazer suas apresentações. Para ele, "morar em Juazeiro é uma opção dada a cultura, dado às pessoas que estão aqui," explica.

Além disso, mesmo não tendo religião, o artista diz ter uma conexão profunda com o trabalho social e, em Juazeiro do Norte, pode estar em contato com o espírito de Padre Cícero, que com ele divide a opção pelos desvalidos.

Carlos destaca a atuação da Carroça de Mamulengos no cerne das comunidades, para além do teatro e das apresentações, em um esforço de para cumprir o papel do artista e do ser humano de, com sua sensibilidade, não fechar os olhos para a realidade de desigualdade social e injustiças que percebe ao viajar pelo Brasil.

Levando em suas malas algumas roupas, livros e os bonecos sempre presentes em sua história, Carlos e Shirley passaram por diferentes cidades brasileiras compartilhando a sua arte.

Em 1984, no último dia de um festival em Natal, Rio Grande do Norte, a plateia foi surpreendida ao saber que a filha dos bonequeiros Shirley e Carlos, que participavam do evento, havia nascido.

O casal, já estabelecido em Juazeiro do Norte, no Ceará, não esperava a chegada da filha primogênita e viajou sem o enxoval da menina ou mesmo fraldas para o bebê, artigos que foram doados pelos participantes do festival à recém-nascida. Por isso, Maria Gomide conta que já nasceu rodando chapéu.

Com um ano de idade, Maria ganhou a Burrinha, boneca tradicional da Carroça, a primeira com a qual brincam os membros da família logo que nascem e aprendem a andar. Burrinha foi criada para Maria, mas também passou pelas mãos de seus irmãos, por isso a cada novo membro, ela ganhava um novo boneco, de forma a permitir que todos participassem da brincadeira.

Companhia Carroça de Mamulengos reúne família em torno da tradição da cultura popular
Companhia Carroça de Mamulengos reúne família em torno da tradição da cultura popular

Crescer com arte

Maria, Antonio, Francisco, João, Pedro, Isabel e Luzia cresceram em meio aos palcos. Chegadas, despedidas, figurinos, maquiagem, bonecos, espetáculos, monociclos e malabares, todos esses elementos fazem parte das memórias de infância dos irmãos. Por isso, a família carrega consigo um modo único de viver, uma presença que, segundo a primogênita, "sustenta um território em si".

"Fomos criados com uma itinerância. Sempre viajamos juntos. Sempre viajei com meu pai e minha mãe. É como se a gente sempre carregasse o nosso pedacinho de terra com a gente. Onde a gente estava, a gente estava em casa, onde estavam meu pai, minha mãe, meus irmãos e os bonecos, toda a nossa identidade", conta Maria.

Mesmo desempenhando diferentes profissões - Maria, como terapeuta holística, Antônio, como agroflorestor e Francisco, como pesquisador - os filhos de Carlos e Shirley têm em sua identidade a vocação para o teatro. De acordo com Maria, mesmo que fiquem afastados da arte, todos têm um espetáculo na ponta da língua.

Companhia Carroça de Mamulengos reúne família em torno da tradição da cultura popular
Companhia Carroça de Mamulengos reúne família em torno da tradição da cultura popular

Herança brincante

Carlos e Shirley têm hoje sete netos que carregam em si a herança brincante dos pais e avós. Aos 68 anos, Carlos começa a ver os netos também participando da brincadeira. "É como se a Carroça estivesse ressurgindo, fosse novamente uma gênese da Carroça", expressa.

É o caso de Ana, filha de Maria Gomide, que já nasceu brincante. "Quando eu nasci, já tinha um figurino para mim. Eu lembro do meu primeiro figurino, ele era todo amarelinho, de retalhos", lembra a menina

Aos 11 anos, Ana carrega consigo a herança de 47 anos da Carroça de Mamulengos, responsabilidade que torna-se ainda maior ao montar e apresentar a sua apresentação solo.

Com nome "Babauzinha", a brincadeira é uma homenagem ao avô, Carlos Gomide, a quem ela chama de "vovô Babau". Ela explica que o babau é como se chama o teatro de bonecos da Paraíba.

A animação do público é grande e, para Ana, essa foi uma das dificuldades de se apresentar sozinha: acalmar as crianças. "Minha mãe consegue acalmar mais a plateia. Quando eu vou encenar sozinha, eu sempre fico com medo de a plateia ficar muito animada e eu não conseguir acalmar a plateia, mas eu estou vendo que a cada espetáculo eu vou ficando melhor," diz Ana.

Familiares e outros integrantes

À medida que a família cresce, mais pessoas passam a integrar a Carroça de Mamulengos. É o caso de Idália, esposa de Antonio, que hoje é costureira e bonequeira e participa da companhia fazendo cenários, figurinos e bonecos. Gabriela, esposa de João, também passou a integrar o grupo, fazendo parte da produção e, posteriormente, cuidando das redes sociais.

Segundo Maria, todos participam, de uma forma ou de outra, até porque os trabalhos da Carroça de Mamulengos vão muito além dos palcos.

Maria Gomide lembra, também, que além dos genros e noras, em vários momentos pessoas foram morar com a família e, posteriormente, acabaram formando suas próprias companhias. Hoje a companhia também tem uma equipe de produção e técnicos, e trabalha com parceiros de criação.

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