No premiado longa cearense "Represa" (2023), Lucas atravessa o país para visitar o local de nascimento da falecida mãe com o intuito de vender um terreno e, assim, se aproxima de Robson, um irmão que nunca conheceu. Em plena cidade de Jaguaribara, no sertão cearense, ele está buscando a si.
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Essa é a trama da ficção que estreou com sucesso no Festival de Roterdã, no começo do ano, e que se consagrou na 30ª edição do Festival de Vitória, onde o drama cearense produzido pela Tardo Filmes levou os prêmios de Melhor Filme, Direção, Roteiro, Fotografia e Menção Honrosa para o ator coadjuvante Gilmar Magalhães. Essa mesma história tem sombras da vida do seu co-roteirista e diretor, o gaúcho Diego Hoefel, que escolheu Fortaleza como casa após passar no concurso para dar aula da Universidade Federal do Ceará, no curso de Cinema e Audiovisual. E esse "encontro de dois mundos", como chancela o professor cineasta, deu muito certo, dentro e fora das telas.
O POVO - Do zero à tela, como o projeto começou, quanto tempo levou, como se formou para você como longa?
Diego Hoefel - Ele surgiu na minha cabeça primeiro com as imagens das ruínas da antiga cidade de Jaguaribara que começaram a reaparecer, pós-seca, em 2013. A cidade foi inundada em 2002 para dar lugar a um reservatório. Na época, antigos postes, um monumento histórico e caixas d'água reapareceram. De 2013 para cá me surgiu a ideia de fazer um filme ali, mas que era um pouco disforme, sem roteiro ainda. A gente não sabia exatamente o que podia puxar na história, mas eu a levei para a primeira edição do laboratório de roteiro do Porto Iracema das Artes. Dessa época, algumas imagens que pensamos seguiram no filme, e depois, desenvolvemos a história, e aos poucos foram surgindo os diálogos, os personagens. Não esqueço dos ilustres cineastas professores Marcelo Gomes, Sérgio Machado e Karim Ainouz, que incentivaram que essa história virasse roteiro de cinema. Desde então, segui visitando a região, fiz um curta lá ("Cidade Nova"), acabei voltando muitas vezes. A ideia do longa nunca desapareceu e o filme foi aos poucos se solidificando, à medida que a pesquisa foi avançando.
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OP - Mas o projeto que surgiu no Porto Iracema tinha outro modelo?
Diego - A gente começou com uma ideia completamente diferente do que a do filme pronto e, na época, esse laboratório incentivava muito a narrativa em formato de série ou minissérie. A escolha inicial seria essa. Ninguém imaginava que conseguiria fazer um filme ali na região de Nova Jaguaribara em 100% de locações. Talvez o cenário de uma série na época fosse mais propício, entendendo o que significava filmar ali. Mas, como podemos ver, nós conseguimos, filmamos esse longa em um período curtíssimo de quatro semanas e, apesar de visivelmente exaustos ao final da produção, deu tudo certo no final.
OP - Resumidamente, você vê "Represa" como uma história de dois mundos se encontrando?
Diego - Era essa a ideia inicial, sempre foi. Só encontramos uma maneira de como contar essa história, de como fazer isso em tela. Então desde o início eu tinha vontade de falar de um encontro de mundos. Como, por exemplo, aconteceu com a nossa equipe de filmagem, uma equipe que chega e se encontra com as pessoas desse lugar. Eu ficava pensando: como que a gente pode abarcar as especificidades nesse lugar e levar para a nossa vida?
OP - Mas, antes de se materializar em filme, o projeto passou por muitas fases...
Diego - Sim, veja a importância desse tipo de movimento dos laboratórios de produção. Depois que terminei o Porto Iracema, o roteiro passou pelo BR Lab, Novas Histórias no Sesc-Senac São Paulo, o Curitiba Lab, foi até para o importante Guiões, em Portugal, depois o Plot. Ou seja, passamos por vários campos, lugares, olhares e pessoas, que refinaram essa história comigo. Nesse tempo, a gente foi compreendendo o filme, então acho que a história é também de descoberta dele, saber qual era o filme que a gente queria fazer. Foi quando ele ficou claro e começamos o processo de produção, interpretar edital, a coisa deslanchou.
OP - E estar no lugar mesmo, em Jaguaribara, era essencial...
Diego - É isso. Quando falei dessa ideia de uma não urgência, existia essa crença de que, para a gente que estava tocando o projeto, nós tínhamos de entender as perspectivas daquele lugar. Para assim conseguir de fato olhar para aquelas histórias, internalizar e costurar uma história que tocasse. Por isso, a gente precisava respeitar a dinâmica de como as coisas poderiam acontecer naturalmente na cidade e, por fim, no projeto. Foi um pouco assim que tudo aconteceu, por isso que o filme acontece assim também, em tela.
OP - Você fala quase sempre no plural, da feitura do roteiro à produção, que é da Tardo Filmes, uma produtora cearense com lastro sólido e um bom percurso do Ceará para o Brasil e o mundo.
Diego - A Ticiana Augusto Lima (produtora) vem comigo desde o curta, o Guto Parente (diretor de "Estranho Caminho", longa premiado recentemente em Tribeca, Nova York, e que chegou a se qualificar a ser indicado pelo Brasil ao Oscar de Filme Internacional) montou, então desde esse momento já existia um diálogo em fazer meu próximo projeto na Tardo Filmes, naturalmente. Quando o projeto do longa começou a ganhar forma, já estávamos todos juntos dentro, por isso foi um trajeto natural. Lembra aquele percurso que falei sobre todos os laboratórios que passamos? Em todos praticamente fui junto com a minha produtora. De lá para cá, nos desdobramos no desenvolvimento, a gente está junto desde a gênese, da fase embrionária até o seu nascimento, desembocando na tela grande.
OP - Você já citou os laboratórios, e agora também a questão de interpretar os editais para produzir seu filme. Como é importante a gente ter de volta editais no audiovisual brasileiro?
Diego - Eles são essenciais. Nós temos profissionais que trabalham e precisam receber. Para além da questão operária, são profissionais que produzem narrativas, histórias que precisam estar nas telas. Na forma como a gente lida, o cinema nacional depende muito do apoio do Estado e é fundamental para que a gente possa não só produzir todas as imagens, mas também regionalizar o cinema. Ter o cinema produzido em outros espaços, fora do eixo Rio e São Paulo. Com os editais, essas novas histórias são possíveis de serem realizadas. É com essas imagens que a gente faz a construção de um imaginário do Brasil, dos brasileiros, de lugares diferentes. Isso é fundamental para que a gente possa se entender como comunidade nacionalmente. Ver as especificidades de cada uma das regiões, entender, saber quem são as pessoas e de alguma forma simbólica se ver em tela, visitar uns aos outros.
OP - Além de se ver na tela e dar voz aos brasileiros, (também) representar o Brasil mundo afora?
Diego - Sim, a gente tem de se entender como país, mas também para que a gente possa apresentar a si e a multiplicidade do nosso Brasil fora dele ao levar essas imagens por outros países. Principalmente porque somos um país continental. Com todas as pesquisas, com todo esse histórico colonial e as dificuldades de acesso, a gente não pode impor uma lógica industrial, como se estivesse num outro contexto e realidade. A gente tem que entender o país que nós somos e saber a importância fundamental da construção simbólica. Para que esse imaginário de Brasil possa de fato funcionar, para que a gente possa conversar, se entender. A gente viveu anos muito polarizados, de muita ruptura, de muita cisão social, perseguição até. Acho que a gente precisa romper essas dinâmicas, e de uma forma deliciosa. Produzindo, fazendo arte... Do trato social, a gente precisa construir um imaginário que nos una, que nos faça sentir esse pertencimento e que ajude a construir uma comunidade. Eu acho que o cinema é uma ferramenta chave pra isso. Claro que os editais são de extrema importância, e não é só uma importância política, mas possuem uma importância social também, de manutenção e construção desses vínculos sociais e artísticos.
OP - Não apenas a importância de se ver na tela, mas é algo que gira em relação a produção, o imposto volta, há empregos diretos e indiretos.
Diego - Direta e indiretamente é um número muito considerável, impacta toda uma região que é pouco visitada. Este tipo de geração que se dá na economia local é fundamental, assim como em outros filmes que são feitos pelo Brasil. As pessoas precisam entender isso. Passamos por um momento muito triste com praticamente a interrupção do processo produtivo do audiovisual nos últimos anos e hoje nós, que fazemos esse mercado, estamos muito felizes com essa nova retomada. É estratégico inclusive para a cultura brasileira.
OP - Para finalizar, como foi ver seu filme ser exibido como o único brasileiro no Festival de Roterdã, onde estreou na mostra Bright Future, que seleciona os primeiros longas de diretores?
Diego - Honrado em representar o cinema brasileiro e de estar nesse grande festival. Feliz, claro, mas também de cara a gente fica surpreso com o interesse das pessoas em ver um filme,que se passa em uma realidade muito diferente da que os holandeses vivem, lógico. Lá, foram quatro sessões, todas lotadas, das quais pude acompanhar pessoalmente três, e a gente se sente recompensado em ver que o nosso drama, a nossa história, tida como regional, na verdade, é uma história universal, que consegue atingir o emocional daqueles que assistem.
Resenha: Desaguar emoções
Mais do que um filme que coloca frente a frente para uma simples resolução burocrática dois mundos opostos colidindo — o introvertido gaúcho no meio do sertão cearense ao lado de um irmão com quem nunca conviveu —, "Represa" é um filme de nuances e que sabe trabalhar muito bem seu próprio tempo, ao apontar sua história para um reencontro de si mesmo, uma autodescoberta no meio do nada.
O drama de Diego Hoefel, também autor da história original e coautor do roteiro, é ambientado nos cenários reais da velha e nova Jaguaribara, município do sertão do Ceará onde famílias foram removidas para a construção do açude Castanhão. Produção enxuta, e que demorou quatro semanas para ser produzida, tem a chancela cearense da Tardo Filmes, passou com sucesso pelo Festival de Roterdã e estreou no Brasil no 30º Festival de Cinema de Vitória.
O realizador nos convida a conhecer a história de dois irmãos que precisam se conectar através do passado submerso junto com a cidade cearense, ressurgida após a seca, em 2013. Mas nós vamos descobrir mais que pedaços de uma cidade voltando à tona. "Represa "vai naturalmente acontecendo quando o protagonista consegue perceber que o que ele estava procurando não era exatamente um terreno — e, assim, suas emoções, represadas do tempo, precisam desaguar de alguma forma.
*O jornalista viajou a convite do festival
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