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Sul da América em chamas: o mapa de uma crise
Reportagem Especial

Sul da América em chamas: o mapa de uma crise

Instabilidade política e institucional no continente preocupa lideranças quanto à manutenção da democracia. Previsão para o período pós-pandemia é de aumento da miséria e da fome na região

Sul da América em chamas: o mapa de uma crise

Instabilidade política e institucional no continente preocupa lideranças quanto à manutenção da democracia. Previsão para o período pós-pandemia é de aumento da miséria e da fome na região
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Aos trancos e barrancos. Assim tem caminhado a América Latina frente a crises sociais, econômicas e, sobretudo, humanitárias nos últimos anos. Para piorar, o cenário é de um agravamento desses problemas projetado para o período pós-pandemia.

Sob o risco de sofrer uma nova década de retrocessos, a região vê a Covid-19 desidratar governos e intensificar problemas históricos relacionados à desigualdade e à pobreza. Um solo fértil para o populismo e para o autoritarismo que de novidade nada tem por aqui.

As sete maiores economias da região (Brasil, México, Argentina, Colômbia, Chile, Venezuela e Peru) têm um denominador comum atualmente: desemprego em alta e os mais pobres pagando fatura dobrada pela crise.

Membro de organização de esquerda segura cartaz durante protesto contra medidas econômicas do governo do presidente argentino Alberto Fernandez, em Buenos Aires, em 17 de setembro de 2020, durante a pandemia de Covid-19. Por outro lado, grupo de direita ligados à oposição também criticam as medidas sanitárias tomadas por Fernández no combate ao novo coronavírus (Foto de RONALDO SCHEMIDT / AFP)
Foto: Foto de RONALDO SCHEMIDT / AFP
Membro de organização de esquerda segura cartaz durante protesto contra medidas econômicas do governo do presidente argentino Alberto Fernandez, em Buenos Aires, em 17 de setembro de 2020, durante a pandemia de Covid-19. Por outro lado, grupo de direita ligados à oposição também criticam as medidas sanitárias tomadas por Fernández no combate ao novo coronavírus (Foto de RONALDO SCHEMIDT / AFP)

O último relatório da Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe (Cepal) estima que a extrema pobreza atingirá 83,4 milhões de pessoas na região em 2020 e destaca papel do Estado para amenizar cenário catastrófico. No caso, evitar que a crise sanitária passe a ser também de segurança alimentar.

Na América do Sul, apenas dois países têm aparente estabilidade desde o início da pandemia: Paraguai e Uruguai. O primeiro, apesar dos bons índices relacionados ao controle do novo coronavírus, registra frequentes protestos na zona fronteiriça com o Brasil. As cidades de Pedro Juan Caballero e Ciudad Del Este são entrepostos comerciais importantes que, com a fronteira fechada há seis meses, somam dezenas de milhares de desempregados.

O Uruguai do presidente Lacalle Pou é a principal referência de sucesso latino-americano de bons resultado diante da Covid-19 (Foto: EITAN ABRAMOVICH / AFP)
Foto: EITAN ABRAMOVICH / AFP
O Uruguai do presidente Lacalle Pou é a principal referência de sucesso latino-americano de bons resultado diante da Covid-19 (Foto: EITAN ABRAMOVICH / AFP)

Fora esses dois países, a crise política na América do Sul é uma constante. O Peru vive uma longa guerra entre Legislativo e Executivo. A Bolívia tem um governo interino acusado de perseguir opositores. A Colômbia vive mais uma jornada de violenta repressão policial. Os demais países têm o povo indo às ruas para exigir algum tipo de melhoria após sentirem os primeiros efeitos da crise.

A pandemia da Covid-19 deteriorou – ainda mais – lideranças e instituições já fragilizadas pelo processo que ocorria desde de 2019, com a onda de protestos no Chile e posteriormente em quase toda a região. Entretanto, o desgaste traz consigo a percepção da necessidade de agir. Em 22 de outubro de 2019, O POVO publicou reportagem trazendo uma panorama de crise na América do Sul. Em 11 meses, muita coisa mudou com a pandemia, mas o cenário de tensão prossegue

Avaliando o cenário de contínuas crises institucionais, três organizações lançaram, no último dia 15 de setembro, manifesto no qual apontam caminhos a serem tomados para garantir a modernização da democracia da América Latina.

A Idea International, a Fundação Fernando Henrique Cardoso e a Fundação para a Democracia e o Desenvolvimento publicizaram o documento "Cuidemos da democracia para que não seja vítima da pandemia". Na declaração, assinada por 160 lideranças latino-americanas, pelo menos 21 ex-governantes e membros de organizações relevantes da região expressam preocupação e expectativas. 

Estamos vivendo um momento de inflexão no futuro do mundo e de nossa região que gera ameaças e oportunidades. Por isso alçamos nossa voz para fazer um chamado: diante da pandemia, vamos cuidar do presente e do futuro da democracia. Existem riscos latentes que, se não atuarmos rapidamente, podem produzir grave deterioração democrática
 
Documento assinado por várias instituições pedindo atenção à manutenção da democracia na América do Sul

No documento, as lideranças também destacam o aumento da responsabilidade do Poder Executivo e a necessidade de fortalecer mecanismos de controle governamental para garantir a autonomia de parlamentos e tribunais na supervisão das medidas extraordinárias adotadas por governantes. “Os poderes executivos devem fazer uso responsável das medidas de exceção para evitar violações dos direitos humanos e restrições arbitrárias à liberdade", afirmam.

Complementando que a mesma responsabilidade é recomendada também quanto ao uso das Forças Armadas e que essas não devem se envolver em tarefas de segurança pública. “A emergência não deve ser vista como um cheque em branco para enfraquecer os controles e a prestação de contas, nem solapar a luta contra a corrupção. Muito pelo contrário”, ressaltam os líderes, tentando promover a conscientização dos países a respeito da ameaça à democracia representada pela pandemia. 

 

A crise institucional no Peru

Presidente Martin Vizcarra apresentando uma declaração no Congresso onde enfrentou um julgamento de impeachment, em Lima, em 18 de setembro de 2020, do qual saiu vitorioso (Foto de Andres VALLE / Presidência do Peru / AFP)
Foto: Andres VALLE / Presidência do Peru / AFP)
Presidente Martin Vizcarra apresentando uma declaração no Congresso onde enfrentou um julgamento de impeachment, em Lima, em 18 de setembro de 2020, do qual saiu vitorioso (Foto de Andres VALLE / Presidência do Peru / AFP)

No Peru, o atual presidente Martín Vizcarra se livrou, na sexta-feira, 18, de ser destituído pelo Congresso ao encerramento de um julgamento político, após a oposição não conseguir angariar os votos necessários para tirá-lo do poder.

Vizcarra, um engenheiro de 57 anos, foi acusado de incitar duas assessoras a mentirem em um inquérito parlamentar sobre a relação dele com um cantor investigado por contratos irregulares. Entretanto, o contexto no qual ocorrem os conflitos entre Legislativo e Executivo é mais amplo e antigo.

Dividido politicamente desde as eleições de 2016, quando Pedro Pablo Kuczynski (PPK) venceu Keiko Fujimori (líder da atual oposição e filha do ex-presidente Alberto Fujimori), o país andino viu alguns de seus ex-presidentes investigados por corrupção ligada à empreiteira brasileira Odebrecht. Entre eles PPK, que renunciou com menos de dois anos no poder. Um dos ex-mandatários, Alan García, cometeu suicídio no ano passado para não ser preso.

Mosaico de fotos mostra o ex-presidentes peruanos (em cima) Alberto Fujimori (1990-2000); Alejandro Toledo (2001-2006); Alan Garcia (1985-1990 e 2006-2011); (embaixo) Ollanta Humala (2011-2016); Pedro Pablo Kuczynski (2016-2018); Martin Vizcarra (2018-). Duas décadas de conflito político marcam a história recente do Peru (Foto por STF / AFP)
Foto: AFP
Mosaico de fotos mostra o ex-presidentes peruanos (em cima) Alberto Fujimori (1990-2000); Alejandro Toledo (2001-2006); Alan Garcia (1985-1990 e 2006-2011); (embaixo) Ollanta Humala (2011-2016); Pedro Pablo Kuczynski (2016-2018); Martin Vizcarra (2018-). Duas décadas de conflito político marcam a história recente do Peru (Foto por STF / AFP)

Vizcarra, vice de PPK, assumiu pregando forte agenda anticorrupção e ganhou popularidade por isso. Em 2019, ele dissolveu o Parlamento, controlado pela oposição, e convocou novas eleições em uma manobra prevista na Constituição.

A atitude ocorreu após congressistas ignorarem proposta do presidente para alterar o modelo de escolha dos juízes do Tribunal Constitucional - instância máxima do Judiciário peruano, que tem nomes indicados pelo Congresso. Vizcarra tentava impedir que a oposição controlasse a corte máxima do Peru.

Em resposta, o Legislativo aprovou a suspensão do presidente por "incapacidade moral" e nomeou para seu lugar a então vice-presidente Mercedes Aráoz que chegou a prestar juramento, mas no dia seguinte renunciou. Vizcarra permaneceu no poder e a dissolução do Congresso foi concluída com novas eleições realizadas em janeiro deste ano para mandato até 2021. A popularidade do presidente disparou após o dissolvimento do Congresso.

O Judiciário como ferramenta política na Bolívia

A presidente interina da Bolívia, Jeanine Añez, anuncia retirada da corrida presidencial um mês antes das eleições em La Paz, Bolívia (Foto: PRESIDENCIA / AFP)
Foto: PRESIDENCIA / AFP
A presidente interina da Bolívia, Jeanine Añez, anuncia retirada da corrida presidencial um mês antes das eleições em La Paz, Bolívia (Foto: PRESIDENCIA / AFP)

Com eleições presidenciais na Bolívia marcadas para 18 outubro deste ano, o clima é de forte tensão política. Há cerca de 20 dias, a presidente interina Jeanine Añez anunciou retirada da disputa presidencial. O objetivo de Añez é evitar a vitória do esquerdista Luis Arce, apoiado pelo ex-presidente Evo Morales, do partido Movimento Ao Socialismo (MAS).

"Hoje, deixo de lado minha candidatura à presidência da Bolívia, para cuidar da democracia", disse a presidente interina, de direita, em pronunciamento na TV no último dia 17 de setembro, no qual explicou que sua decisão foi tomada "ante o risco de que o voto democrático se divida entre vários candidatos e que, devido a isto, o MAS acabe vencendo a eleição", em 18 de outubro.

Candidato presidencial boliviano do partido Movimento pelo Socialismo (MAS), Luis Arce lidera as pesquisas desde que foi nomeado em janeiro. Mas no mais recente levantamento, viu se aproximar o ex-presidente Carlos Mesa. (Foto de Aizar RALDES / AFP)
Foto: Aizar RALDES / AFP
Candidato presidencial boliviano do partido Movimento pelo Socialismo (MAS), Luis Arce lidera as pesquisas desde que foi nomeado em janeiro. Mas no mais recente levantamento, viu se aproximar o ex-presidente Carlos Mesa. (Foto de Aizar RALDES / AFP)

Añez deixou a corrida eleitoral um dia após a divulgação de uma pesquisa nacional da fundação católica Jubileo em que ela aparecia em quarto lugar, com 7% das intenções de voto, atrás de Arce (29,2%), do ex-presidente Carlos Mesa (19%) e do líder cívico regional Luis Fernando Camacho (10,4%).

Após o anúncio de Áñez, imediatamente surgiram versões de que a presidente interina abriu um canal de negociação com Mesa para formar uma coalizão contra o MAS nas urnas. Mesa afirmou nas redes sociais estar "sempre disposto ao diálogo".

"A decisão de travar o MAS e abrir uma nova etapa na qual, em primeiro lugar, estão as pessoas sempre será do povo boliviano", escreveu Mesa, que elogiou a decisão de Áñez, embora tenha criticado a presidente interina pela maneira como lidou com a pandemia e a crise econômica.

O ex-presidente da Bolívia, Evo Morales, atualmente vivendo no exílio na Argentina após 14 anos no poder, disse em 18 de setembro de 2020 que retornaria à Bolívia no dia seguinte às eleições gerais de 18 de outubro, se seu candidato escolhido a dedo para liderar o partido do Movimento pelo Socialismo (MAS), Luis Arce, fosse o vencedor. (Foto de Alejandro PAGNI / AFP)
Foto: Alejandro PAGNI / AFP
O ex-presidente da Bolívia, Evo Morales, atualmente vivendo no exílio na Argentina após 14 anos no poder, disse em 18 de setembro de 2020 que retornaria à Bolívia no dia seguinte às eleições gerais de 18 de outubro, se seu candidato escolhido a dedo para liderar o partido do Movimento pelo Socialismo (MAS), Luis Arce, fosse o vencedor. (Foto de Alejandro PAGNI / AFP)

Añez assumiu o poder no país após golpe de Estado que derrubou Evo em 2019. Desde então, sentimento anti-Morales pautou as ações de seu governo, utilizando-se da máquina estatal para perseguir opositores.

Nesse mês de setembro, a organização internacional de Direitos Humanos Human Rights Watch (HRW) solicitou que o Ministério Público boliviano retirasse as acusações de terrorismo contra Evo Morales, que está refugiado na Argentina desde o golpe em 2019.

A acusação contra Morales é de que teria incentivado bloqueios rodoviários contra o governo interino. A ONG aponta que acusações de terrorismo, crime que pode gerar até 20 anos de prisão, são “desproporcionais”.

A única alegação usada como “prova” pelo governo é uma gravação telefônica entre Morales e um dirigente camponês na qual o ex-presidente – que negou ser dele aquela voz – incentivava bloqueio para impedir a entrada de alimentos nos centros urbanos. A manobra é comum e costuma ser eficaz em protestos no país de relevo entrecortado pela Cordilheira dos Andes.

A violência policial na Colômbia

Na Colômbia, foi reacendido o debate – e a ira da população – em relação à violência policial após ocorrer no país episódio similar ao assassinato de George Floyd nos Estados Unidos. Na capital Bogotá, o advogado Javier Ordóñez recebeu diversos choques de armas do tipo taser após ser abordado por dois agentes por supostamente descumprir regras de isolamento.

Em vídeo que circula nas redes sociais, o homem implorava aos policiais que parassem com a agressão que prosseguiu mesmo quando ele já estava imobilizado. Ordóñez foi conduzido ao hospital, mas não resistiu. O crime ocorreu no último dia 8 e os policiais envolvidos tiveram pedidos de prisão decretados.

Grandes cidades como Medellín, Cáli além da própria Bogotá registraram protestos nos quais eclodiram confrontos entre a população e as forças de segurança que deixaram 12 mortos, 258 civis feridos, 315 policiais feridos e 95 postos de comando atacados. A população acusa a polícia de repetir a utilização da força excessiva. A maioria das mortes nos atos foram decorrentes de tiros de arma de fogo.

A instabilidade política na Colômbia também acirrou-se no último mês quando o ex-presidente Álvaro Uribe (2002-2010), uma das lideranças políticas mais influentes da América Latina, foi preso preventivamente após determinação da Suprema Corte. Ele é investigado por suspeita de suborno e manipulação de testemunhas, que teriam prestado depoimentos em favor de Uribe numa investigação sobre suposta relação dele com grupos paramilitares.

Ex-presidente colombiano entre 2002 e 2010, Álvaro Uribe é considerado um dos principais líderes da direita da América Latina
Foto: Mauricio DUEÑAS/AFP
Ex-presidente colombiano entre 2002 e 2010, Álvaro Uribe é considerado um dos principais líderes da direita da América Latina

A prisão (domiciliar) é sem precedentes no país. Líder do partido do atual presidente Iván Duque, Uribe renunciou ao cargo de senador numa tentativa de tirar da Suprema Corte a responsabilidade da investigação, transferindo-a ao Ministério Público. Ele foi o parlamentar mais votado para o Senado em 2018.

A alta popularidade do ex-presidente se dá pela mão de ferro na guerra contra guerrilhas como as Farc, mesmo motivo pelo qual muitos colombianos o criticam.

Durante os anos que esteve na presidência, Uribe foi acusado de incentivar um esquema que culminou no escândalo conhecido como “falsos positivos”. Na ocasião, as Forças Armadas estabeleciam metas e premiações, como recompensa em dinheiro e promoção, para soldados que apresentassem destaque no combate aos guerrilheiros.

>> LEIA NO O POVO+ : 'Falsos positivos', a trama sanguinária dos militares na Colômbia

Civis eram mortos e depois trajados como membros da guerrilha em cenários de luta forjados. A organização internacional de direitos humanos Human Rights Watch estimou que a prática matou mais de 2.000 pessoas na Colômbia.

O golpe militar no Chile reverbera

Próximo de completar um ano da convulsão social iniciada em meados outubro de 2019, os chilenos vivem a expectativa da realização de um plebiscito para alterar a configuração da atual Constituição, herdada do período ditatorial no país (1973-1990). O direito ao plebiscito, que será votado no próximo dia 25 de outubro, foi conquistado após meses de atos de rua que culminaram na maior revolta social dos últimos 30 anos no país e num saldo de dezenas de mortos e milhares de feridos.

Grande parte da população questiona o modelo econômico adotado pelo país, que afeta suas vidas em setores básicos como saúde, educação e previdência social. No episódio mais marcante, em termos numéricos, mais de um milhão de pessoas caminharam pela capital Santiago, em episódio que ficou conhecido como a “Marcha más grande de Chile”. Manifestantes pediam a renúncia do atual presidente Sebastián Piñera, que, cerca de um ano depois, segue no cargo, mas fragilizado. Os protestos só arrefeceram com a chega da pandemia de coronavírus, mas mesmo assim não cessaram por completo.

Sebastián Piñera tem sido pressionado pela população em razão das medidas que seu governo tem tomado no aspecto social
Foto: Alan Santos/Presidência da República
Sebastián Piñera tem sido pressionado pela população em razão das medidas que seu governo tem tomado no aspecto social

No último 11 de setembro os chilenos foram às ruas para lembrar seus mais de 3,2 mil mortos e desaparecidos no 47º aniversário do golpe militar que matou o então presidente Salvador Allende, dando início a 17 anos de ditadura comandada pelo general Augusto Pinochet.

No mesmo dia, o governo do presidente Sebastián Piñera renovou, por mais três meses, o chamado “estado de exceção por catástrofe” devido à pandemia da Covid-19, mantendo nas mãos de militares a responsabilidade sobre questões de ordem pública e a manutenção de um toque de recolher noturno que deve vigorar pelo menos até a metade de dezembro.

Quatro dias depois, em 15 de setembro, documentos divulgados pelo National Security Archive apontaram que em 1970, cerca de três anos antes do golpe, o então presidente dos Estados Unidos, Richard Nixon, deu ordem para impedir que Salvador Allende assumisse. Conjunto de relatórios intitulados “A opção extrema: derrubar Allende” teve sigilo retirado e foi anexado a um estudo de segurança nacional que analisou vantagens e desvantagens do golpe militar no Chile.

Peter Kornbluh, diretor do projeto de documentação no Chile e autor do livro Pinochet: Os Arquivos Secretos, afirmou que uma reunião no Salão Oval marcou "o primeiro grande passo para minar a democracia no Chile e apoiar o advento de uma ditadura militar".

Uma mulher segura uma flor e uma placa com a foto do presidente do Chile (1970-73) Salvador Allende lendo Verdade e justiça. Políticos executados durante homenagem às vítimas da ditadura militar (1973-1990) no cemitério geral de Santiago, em 11 de setembro de 2020, no 47º aniversário do golpe do general Augusto Pinochet que derrubou Allende. (Foto de MARTIN BERNETTI / AFP)      Caption
Foto: MARTIN BERNETTI / AFP
Uma mulher segura uma flor e uma placa com a foto do presidente do Chile (1970-73) Salvador Allende lendo Verdade e justiça. Políticos executados durante homenagem às vítimas da ditadura militar (1973-1990) no cemitério geral de Santiago, em 11 de setembro de 2020, no 47º aniversário do golpe do general Augusto Pinochet que derrubou Allende. (Foto de MARTIN BERNETTI / AFP) Caption

La Bonaerense: a polícia protesta na Argentina

No início da pandemia a Argentina foi extremamente elogiada pelos baixos números que apresentava em relação a casos e mortes por Covid-19. Entretanto, mesmo vivendo uma das quarentenas mais longas do mundo, tais índices cresceram e o apelo popular pelo fim do isolamento também aumentou.

A grave crise econômica no país data de pelo menos duas décadas antes da pandemia, mas certamente será agravada por ela. Sabendo disso, a população e algumas categorias profissionais pressionam o governo para correr atrás do prejuízo, o que tem resultado em protestos.

Caso que obteve destaque internacional ocorreu na província de Buenos Aires, no último dia 9 de setembro. Um grupo de policiais organizou uma manifestação em frente à Quinta de Olivos, a residência presidencial, pedindo melhores salários.

Crise econômica agravada pela pandemia tem aumentado a pressão sobre o governo de Alberto Fernández
Foto: AFP
Crise econômica agravada pela pandemia tem aumentado a pressão sobre o governo de Alberto Fernández

O presidente Alberto Fernández prometeu atender à demanda, mas exigiu respeito à institucionalidade. Em pronunciamento, ele se disse preocupado e pediu "amigavelmente e democraticamente” que os agentes revissem a atitude.

Fernández teve apoio de líderes da oposição que também rejeitaram a manifestação no local. "Não é a forma nem o lugar. A presença de policiais em Olivos é inaceitável", escreveu Horacio Rodríguez Larreta, prefeito da cidade de Buenos Aires e opositor do governo.

O estopim para as manifestações foi o anúncio de investimentos para a segurança, mas não para salários. O ato fez novas manifestações surgirem pela província gerando tensão.

La Bonaerense” exige aumento de cerca de 50% e melhorias nas condições de trabalho. O salário base é da ordem de 37,5 mil pesos (cerca de R$ 2,6 mil). O governador da província Axel Kicillof garantiu que haverá “melhora salarial importante”.

Policiais da polícia da província de Buenos Aires soltam fumaça azul em meio à demanda por aumento de salários e melhores condições de trabalho em La Matanza, província de Buenos Aires, Argentina, em 9 de setembro de 2020, em meio à nova pandemia de coronavírus. (Foto de JUAN MABROMATA / AFP)
Foto: JUAN MABROMATA / AFP
Policiais da polícia da província de Buenos Aires soltam fumaça azul em meio à demanda por aumento de salários e melhores condições de trabalho em La Matanza, província de Buenos Aires, Argentina, em 9 de setembro de 2020, em meio à nova pandemia de coronavírus. (Foto de JUAN MABROMATA / AFP)

O problema tem raízes no início desta década, quando o então governador da província Daniel Scioli (um peronista como Fernández e atual embaixador da Argentina no Brasil) aumentou o número de policiais de 40 mil para 90 mil. A medida criou uma espécie de bomba-relógio devido à incapacidade orçamentária para lidar com mais que o dobro de agentes.

Veio a pandemia e esgotaram-se fontes de renda extra dos policiais, como atuação na segurança de eventos esportivos e artísticos. A insatisfação da categoria ocorre em uma província com mais de 17 milhões de habitantes.

Venezuela, a crise sem fim

Vivendo uma grave crise política, econômica e humanitária desde 2015, com milhões de pessoas migrando para outros países, a Venezuela teve o ápice do agravamento das tensões políticas no ano passado, quando o opositor Juan Guaidó se autoproclamou presidente interino. De lá para cá, políticos de oposição sofreram sanções ou se autoexilaram em embaixadas ou outros países.

Em 2020, a alta comissária das Nações Unidas para os Direitos Humanos e ex-presidente chilena, Michelle Bachelet, criticou a situação no país. Ela denunciou por meio de um extenso relatório práticas do governo Nicolás Maduro como: detenções arbitrárias, violações de direitos humanos e inúmeros casos de tortura e desaparecimentos forçados.

Nicolás Maduro tem estado na mira de órgãos internacionais de defesa dos Direitos Humanos (Foto: JHONN ZERPA / AFP / PRESIDÊNCIA VENEZUELANA)
Foto: JHONN ZERPA / AFP / PRESIDÊNCIA VENEZUELANA
Nicolás Maduro tem estado na mira de órgãos internacionais de defesa dos Direitos Humanos (Foto: JHONN ZERPA / AFP / PRESIDÊNCIA VENEZUELANA)

Em manobra política, Maduro decretou no fim de agosto passado um indulto para dezenas de deputados opositores que, em princípio, poderão participar das eleições parlamentares marcadas para dezembro. O pleito definirá nova composição da Assembleia Nacional, órgão relevante na aprovação de acordos internacionais, mas controlado pela oposição que vem questionando o pleito por não o julgar igualitário.

Com o objetivo de recuperar o comando da Casa, o governo Maduro sinaliza liberar a participação de opositores muito pela preocupação com a percepção internacional. Na eleição da Assembleia Nacional Constituinte (formada por apoiadores de Maduro) em 2017 e na própria reeleição do presidente em 2018, houve questionamentos da comunidade internacional. Atualmente o governo Maduro não é reconhecido por mais de 50 países.

Um outro ponto de tensão no país caribenho são as eleições nos Estados Unidos. O secretário de Estados americano Mike Pompeo fez em setembro viagem de três dias aos países vizinhos da Venezuela (Brasil, Suriname, Guiana e Colômbia) , com o objetivo de aumentar a pressão sobre Maduro, cuja influência na região, segundo ele, "não pode ser tolerada".

A missão de Pompeo foi vista como ação para catapultar a popularidade de Donald Trump, atrás nas pesquisas ante o rival democrata Joe Biden. Sobretudo na Flórida, onde estão muitos migrantes latinos antichavistas. Em pronunciamento na TV, Maduro garantiu que a visita de Pompeo "fracassou".  

"Mike Pompeo está em uma viagem de guerra contra a Venezuela, mas o tiro saiu pela culatra e Mike Pompeo falhou em todas as suas tentativas de organizar os governos do continente em uma guerra contra a Venezuela"
 
Nicolás Maduro durante uma videoconferência com militares transmitida pelo canal do governo venezuelano

 > Análise de pesquisadores

O aspecto estrutural da crise na América Latina

Na análise do cientista político e professor da Universidade Federal do Ceará (UFC) Fábio Gentile, a América Latina sairá da atual conjuntura com ainda mais desigualdade e problemas para resolver. “A pandemia piorou a coisa, mas a relação de dependência, principalmente na relação com os Estados Unidos e potências europeias, não beneficia os países latinos que ainda tem 'governos neoliberais'”, aponta.

Gentile destaca que a região sempre foi marcada por ondas de alternância de poder. “Ondas neoliberais, ondas progressistas e agora mais uma vez uma onda neoliberal”, destaca, enfatizando importância do resultado do processo eleitoral nos EUA este ano para o futuro do cenário no continente.

“A eleição americana tem um impacto na política da América Latina. Não é que mudará a relação de hegemonia dos EUA, mas pode influenciar a forma como as relações e a política deste país será desenvolvida aqui”, explica.

>> LEIA NO OP+ Páginas Azuis com Fábio Gentile: "Bolsonaro é um populista com traços fascistas"

>> LEIA NO OP+ : O cenário eleitoral dos Estados Unidos em meio à pandemia

Cientista político italiano radicado no Ceará, Fábio Gentile pesquisa e escreve sobre populismo, fascismo e regimes autoritários
Foto: Aurelio Alves/ O POVO
Cientista político italiano radicado no Ceará, Fábio Gentile pesquisa e escreve sobre populismo, fascismo e regimes autoritários
Uribam Xavier, também cientista político e professor do Departamento de Ciências Sociais da UFC, defende um olhar macroestrutural para analisar as frequentes crises em países latino-americanos.

“Nós vivemos uma crise mundial relacionada à crise do capitalismo. Várias regiões do mundo passam por crises ou conflitos, mas estes não os atingem da mesma maneira ou com a mesma intensidade”, explica.

Xavier destaca que historicamente a inserção da América Latina no contexto internacional é atrelada a um contexto de subordinação que provoca a instabilidade vista frequentemente nos países da região.

“A América Latina foi durante a sua formação, e ainda é, uma produtora de bens primários dos países europeus e dos EUA. Para que esses países do chamado ‘Primeiro Mundo’ pudessem se industrializar, eles tinham nos países latinos uma reserva de bens e de mão de obra que os possibilitou reservar tempo e recurso para se modernizar. Só existe o primeiro mundo porque existe o terceiro mundo”, complementa.

Uribam Xavier destaca que essa relação de subserviência é um dos fatores que provoca a fragilidade política que acarreta no “aumento da pobreza, violência, miséria e da barbárie”. No entanto ele pondera na avaliação que a crise é mais do modelo econômico do que individual.

“Me parece que essa crise (do capitalismo) não tem solução. Esses eventos estão ocorrendo em um espaço de tempo mais curto e mais próximos uns dos outros. Nos anos 1980 tivemos uma década perdida, nos anos 1990 a crise da dívida externa e de outros problemas. Em 2008, uma crise econômica mundial, em 2016 uma nova crise. Perceba como elas ocorrem ciclicamente”, explana.

Projetando que nem todos os governos terão uma mesma solução ou saída para amenizar a crise pós-pandemia, Fábio Gentile aponta um caminho em comum a ser tomado.

“Sou a favor da ideia de repensar o papel do Estado, e das políticas públicas, para benefício do povo. O combate à crise passa pelo combate ao neoliberalismo e pelo reforço da democracia com políticas públicas de cunho social, como a criação de uma renda básica e investimentos em programas de agricultura familiar. Ou seja, uma intervenção mais ampla do Estado”, defende.

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