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Um continente em polvorosa
Reportagem

Um continente em polvorosa

América do Sul registra crises de naturezas política, econômica e humanitária. Analistas apontam possíveis causas
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O Chile ordenou um toque de recolher durante a noite pelo terceiro dia consecutivo na segunda-feira, enquanto manifestações violentas e saques que deixaram 11 pessoas mortas continuaram pelo quarto dia consecutivo (Foto: Martin BERNETTI / AFP)
Foto: Martin BERNETTI / AFP O Chile ordenou um toque de recolher durante a noite pelo terceiro dia consecutivo na segunda-feira, enquanto manifestações violentas e saques que deixaram 11 pessoas mortas continuaram pelo quarto dia consecutivo

País tido como ponto fora da curva, estável política e economicamente, o Chile registrou mortes nos últimos dias durante onda de protestos contra aumento de passagens de transporte público. Foram 11 óbitos confirmados desde o último sábado. Na noite de ontem, o presidente Sebastián Piñera propôs um "acordo social" com aliados e opositores para tentar por fim aos protestos.

Recentemente, em cenário similar, o Equador também contabilizou mortes durante protestos nos quais a população se contrapôs à retirada do subsídio a combustíveis.

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Faíscas de ordens política, econômica e, consequentemente, social, estabeleceram em 2019 cenário de incêndio na América do Sul. Se às vezes o sentido dado ao termo é metafórico, em outros momentos ele assume contornos concretos, como as chamas que vistas este ano em protestos no Equador e no Chile.

Vista de uma escultura ecuestre do ex-comandante-chefe do Exército chileno, Manuel Baquedano, com o rosto coberto por uma bandana durante protestos em Santiago, em 20 de outubro de 2019. - Novos confrontos eclodiram na capital do Chile, Santiago, no domingo depois de duas pessoas morreram quando um supermercado foi incendiado durante a noite, enquanto protestos violentos provocavam raiva por causa de condições econômicas e desigualdade social que atingiam o terceiro dia. (Foto de Pablo VERA / AFP)
Vista de uma escultura ecuestre do ex-comandante-chefe do Exército chileno, Manuel Baquedano, com o rosto coberto por uma bandana durante protestos em Santiago, em 20 de outubro de 2019. - Novos confrontos eclodiram na capital do Chile, Santiago, no domingo depois de duas pessoas morreram quando um supermercado foi incendiado durante a noite, enquanto protestos violentos provocavam raiva por causa de condições econômicas e desigualdade social que atingiam o terceiro dia. (Foto de Pablo VERA / AFP)

Além disso, o Congresso peruano foi dissolvido por um presidente contrariado. A Argentina passa por crise financeira, está afogada em dívidas e atravessa, ainda, acirramento eleitoral, com a possibilidade de retorno do kirchnerismo. Também em cenário de polarização eleitoral, o Uruguai assiste a movimento contrário, com a esquerda mujicana ameaçada.

Às voltas com dissidência das Forças Armadas Revolucionárias Colombianas (Farc), a Colômbia vive recrudescimento da violência. Mesmo assim, massiva quantidade de venezuelanos migra para este país, em número já superior a 1,3 milhão de pessoas, já que a terra natal, sob o comando de Nicolás Maduro, vive crise humanitária. Recente, acordo entre Paraguai e Brasil envolvendo Usina de Itaipu Binacional tornou Mario Abdo Benítez traidor para parcela da população e alvo de processo de impeachment que não se concretizou no Parlamento.

A Onda Rosa, como foi batizada a predominância eleitoral obtida por líderes de esquerda e centro-esquerda na virada do século, deu espaço a concepções liberais e conservadoras nos últimos anos. As fragilidades, contudo, perduram.

Magno Karl, doutorando em Ciência Política pela Willy Brandt School of Public Policy (Alemanha), aponta que a última década (2000-2010) propiciou crescimento econômico, com melhora nas rendas das famílias e nos índices educacionais. Este salto, porém, não foi devidamente aproveitado pelos governos.

"Quando se imaginou que teríamos estabilidade política e econômica, o que se viu foi a prosperidade trazendo descontrole financeiro", critica, traçando linha em comum entre os países. A retirada do subsídio aos combustíveis no Equador, opina o estudioso, foi modo de conter gastos, que falhou em comunicar à população equatoriana a importância do gesto.

O cientista político e docente Cleyton Monte, por sua vez, entende ser difícil ver pontos em comum quando cada lugar reserva extremas particularidades. O que se vê em comum, ele aponta, é o pálido crescimento econômico que os países registram ano a ano, "alguns países com retração". Segundo relatório mais recente do Banco Mundial, para 2020, Argentina e Venezuela têm previsão de queda em seus PIBs, com - 1,3% e -25%, respectivamente. O Brasil sobe, mas timidamente, de 2,2% para 2,5%.

PROTESTOS contra aumento da tarifa do transporte público no Chile já deixou rastro de 11 mortes e milhares de detenções desde o último sábado
PROTESTOS contra aumento da tarifa do transporte público no Chile já deixou rastro de 11 mortes e milhares de detenções desde o último sábado

A retórica dos governos de centro-direita e direita que ascenderam ao poder, portanto, é a de reduzir rombos fiscais, conforme aponta Monte. "Minando políticas sociais adotadas pelos governos anteriores." Isso porque a "esquerda não é reconhecidamente cautelosa quando se trata de gastos públicos", rebate Karl.

Como primeiro fator para esclarecer o colapso, o doutor em Direito pela Université Paris Descartes (França), Emmanuel Furtado, ressalta que o continente é reflexo do avanço da China aos Estados Unidos na batalha pelo poder mundial. E os países sul-americanos, ele relaciona, são amplamente dominados pelo capital econômico e político dos americanos. Tanto que, no ritmo de Donald Trump, forças conservadoras emergiram nos países de cá.

Pessoas protestam na praça Italia em Santiago, Chile, em 21 de outubro de 2019. - O número de mortos no Chile subiu para 11, disseram autoridades na segunda-feira, depois de três dias de violentas manifestações e saques que viram o presidente Sebastian Pinera alegando que o país estava "em guerra." (Foto de Pablo VERA / AFP)
Pessoas protestam na praça Italia em Santiago, Chile, em 21 de outubro de 2019. - O número de mortos no Chile subiu para 11, disseram autoridades na segunda-feira, depois de três dias de violentas manifestações e saques que viram o presidente Sebastian Pinera alegando que o país estava "em guerra." (Foto de Pablo VERA / AFP)

Furtado comenta que a crise econômica no continente se acentuou em 2014. Foi assim que, no contexto brasileiro, a ex-presidente Dilma Rousseff (PT) foi deposta dois anos depois. As políticas que Michel Temer (MDB) conseguiu ou tentou implementar, então, tinham caráter antipopular, a exemplo do congelamento dos gastos públicos. "São medidas de forte austeridade, de congelamentos, para utilizar o valor basicamente do contribuinte para pagar juros e dívidas", analisa.

Para jogar água neste incêndio, mais do que a Organização das Nações Unidas (ONU), por exemplo, Monte destaca o papel das instituições internas. Ele enumera: Legislativos, Judiciários, sociedade civil organizada, Ministério Público e partidos.

Manifestantes entram em choque com a polícia durante um protesto em Santiago, Chile, em 21 de outubro de 2019. - O Chile ordenou um toque de recolher durante a noite pelo terceiro dia consecutivo na segunda-feira, enquanto as violentas manifestações e saques que deixaram 11 pessoas mortas continuaram pelo quarto dia consecutivo. . (Foto de CLAUDIO REYES / AFP)
Manifestantes entram em choque com a polícia durante um protesto em Santiago, Chile, em 21 de outubro de 2019. - O Chile ordenou um toque de recolher durante a noite pelo terceiro dia consecutivo na segunda-feira, enquanto as violentas manifestações e saques que deixaram 11 pessoas mortas continuaram pelo quarto dia consecutivo. . (Foto de CLAUDIO REYES / AFP)

O relato de um manifestante chileno

Quando o presidente chileno Sebastián Piñera tuitou que todos têm direito à livre manifestação, desde que não ponham em risco a segurança nacional, Felipe Gaune Ogaz, professor de educação musical, não tardou a responder. "É por isso que seus militares andam pelas ruas com armas de guerra destinadas a jovens e famílias que se manifestam nas ruas", escreveu num dos posts mais curtidos dentre as respostas.

Gaune mora na região de O'Higgins, na província de Cachapoal. Ao lado de Valparaíso, Biobío e Coquimbo, O'Higgins é um dos lugares em estado de emergência.

Numa mistura do português adquirido no período em que estudou na Universidade de Brasília, entre 2014 e 2015, com o espanhol, língua materna, ele relata ao O POVO que a alta do preço da passagem de metrô apenas acompanhou outras políticas que acentuaram desigualdades sociais no País.

Ele enumera que a educação superior é muito cara, a água é privatizada, o salário dos políticos, segundo ele, são infinitamente maiores que os das demais pessoas. "O sistema de pensão está em crise, as pessoas aposentadas recebem uma cota de R$ 500, aproximadamente", acrescenta, convertendo a moeda em sua fala. "Isso foi o que fez transbordar o copo d'água e a gente começou a se manifestar nas ruas."

Diante do cenário de tensão, Piñera afirmou que o País está em guerra. Ele estava rodeado de militares durante pronunciamento. Logo depois, foi contradito por um subordinado, o general Javier Iturriaga, responsável pelas operações de segurança. "Sou um homem feliz, não estou em guerra com ninguém." "Então, nem o general apoia os ditos de Piñera", conclui Gaune. Apesar do desencontro de impressões, o toque de recolher segue em vigência. É a primeira vez que isso ocorre desde o fim da ditadura do militar de Augusto Pinochet (1973-1990).

Embora se some aos manifestantes, Gaune se põe contrário aos atos de vandalismo. "Tem bandido fazendo bagunça? Tem muito e, lamentavelmente, isso criminaliza as manifestações." Ele admite que parcela dos manifestantes roubam TVs, por exemplo, e até automóveis, além dos incêndios a supermercados.

Gaune enfatiza que o clima, apesar de tenso, permite sair tranquilamente às ruas. E se volta contra a imprensa da região, que diz propagar medo para que as pessoas fiquem com medo. Para validar as próprias palavras, ele enviou fotos e vídeos que o mostram nas ruas. Para ele, a imagem que mostra o presidente em uma pizzaria durante jantar com a família, em meio ao turbilhão, foi prova de irresponsabilidade.

"(A imprensa diz) Que não há comida nos supermercados e tal, e não é assim. Minha mãe trabalha em supermercado e está tranquilo. O problema é que muita gente está assustada e fica fazendo longas filas pra comprar", escreve. Principal jornal chileno, o El Mercúrio foi atacado mesmo após o toque de recolher. "Tomara que tudo melhore para a América Latina", encerra. 

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