“Ela já vinha apresentando alguns problemas, fomos para os médicos, mas eles não descobriram o que era. (No início), ela teve uma perda de força, que tirou a voz dela, parou de falar. Em seguida, também parou de andar”, remonta Antônio Martins. O relato é sobre a esposa dele, Tânia Maria, que viveu quase seis anos dentro de um hospital.
Tânia foi internada pela primeira vez em 21 de novembro de 2017 no Hospital Geral de Fortaleza (HGF). “Ela teve uma parada (cardíaca), foi entubada e, até aí, eu não sabia o que ela tinha. A gente ficou desesperado, sem saber o que fazer e, para mim, tudo era novo. Eu nunca tinha passado por um momento difícil. Ela ficou entubada e eu passei oito dias naquele corredor, sem querer ir para casa”, relembra seu Antônio.
Depois de quase seis meses no HGF, ela foi transferida para o Hospital Geral Waldemar de Alcântara (HGWA) no dia 18 de maio de 2018, onde ficou até abril de 2022, quando faleceu. “Eu parei de trabalhar para cuidar dela, tinha carteira assinada e tudo, mas se eu tivesse que fazer tudo isso de novo, eu faria”, diz seu Antônio, que complementa: “Para mim, (o hospital) foi uma casa que a gente arrumou. Sem aquele pessoal (os profissionais), a gente não cuidava dela. Eu não tinha condições. Nem financeira, nem de força braçal.”
Seu Antônio e dona Tânia sempre tiveram vontade de renovar seus votos de casamento quando completassem 25 anos juntos. A data, no entanto, chegou enquanto a esposa ainda estava internada. Os profissionais do hospital tomaram conhecimento do desejo dos dois e decidiram organizar uma festa para o casal.
“Todo mundo ali se doou para que aquilo fosse feito. Foi um trabalho muito bonito em um momento muito difícil que estávamos passando.”
A história de Tânia e Antônio é exemplo do que se entende como atendimento humanizado na saúde. “Hoje em dia, com a evolução da humanidade, e dos serviços de excelência, o paciente é visto cada vez mais como um cliente ativo (no sentido de receber um serviço, não no sentido financeiro) e com direitos. Não basta apenas a unidade hospitalar receber o paciente e ofertar a consulta, a cirurgia ou qualquer outro procedimento”, explica Elisfabio Duarte, diretor administrativo do Hospital Regional do Sertão Central (HRSC), de Quixeramobim, no Sertão Central do Ceará.
“O paciente é um humano que não basta apenas a instituição recebê-lo de qualquer maneira, mas tratá-lo como um humano singular. Ele é uma pessoa humana amada por alguém. Como a gente fala aqui, ‘o paciente não é só um paciente, ele é amor da vida de alguém’”, diz Elisfabio.
O atendimento humanizado, de modo simples, é uma abordagem que visa tratar o paciente não apenas como um conjunto de sintomas e doenças, mas sim como um ser humano integral, com necessidades físicas, emocionais e psicológicas. A abordagem se torna ainda mais importante quando se trata de pacientes que passam longos períodos em hospitais, como no caso de Tânia, que passou quase seis anos internada.
O diretor ainda afirma que “pesquisas nessa área da psicologia organizacional, e também da gestão estratégica das organizações de saúde, apontam que existe uma relação direta entre qualidade da ambiência e da prestação de serviço com o tempo de recuperação.”
Maria da Silva Duarte, 76, está internada há cerca de duas semanas — desde o dia 28 de fevereiro — no Hospital Estadual Leonardo da Vinci (Helv), localizado no bairro da Aldeota, em Fortaleza, tratando uma trombose. A filha dela, Suely Duarte, 48, passa dia e noite ao lado. "Minha cama box é aquela ali”, brinca, apontando para um sofá-cama. As duas passam 24 horas dentro do hospital e “para a cabeça não pirar” — como diz Dona Maria — ela costuma brincar com uma revista de palavras-cruzadas, rezar e usar o celular.
De acordo com a filha, a idosa costumava se descontrolar na alimentação e se recusava a ir a uma unidade de saúde. “De repente, a gente viu a perna (dela) inchada. Eu disse: ‘Mãe, vamos ao médico’ e ela respondia: ‘Não, tô me sentindo bem. Não tô sentindo nada’”.
A adesão ao tratamento é outro ponto em que se destaca a importância do atendimento humanizado. Quando ele, o usuário, se sente acolhido e compreendido pelos profissionais do hospital, é mais provável que siga as orientações médicas e colabore com o processo até o fim.
Elisfabio explica que as unidades de atendimento surgiram em cenários de guerra e, nessas situações, “qualquer assistência prestada em uma situação dessa, era emergencial”. Diante desse contexto, as unidades de saúde tendem a ser locais onde as pessoas se sentem aflitas e até mesmo amedrontadas. “O hospital é um local em que ocorre um certo tensionamento porque, originalmente, não é o lugar que a gente prefere estar, é o lugar que as pessoas se dirigem quando precisam”, adiciona.
O atendimento humanizado é uma abordagem que visa tratar o paciente não apenas como um conjunto de sintomas e doenças, mas sim como um ser humano integral, com necessidades físicas, emocionais e psicológicas.
Como Dona Maria se recusava a ir para o hospital, Suely decidiu levar sua mãe para uma farmácia — sem lhe avisar antes — para medir a glicemia. “A moça mediu a diabetes e deu mais de 500 (o normal é até 100 mg/dl). Ela escutou a mulher (da farmácia) dizendo que ela precisava ir para a emergência e foi nesse dia que ela concordou em ir”. Apesar da resistência inicial, Maria não se arrepende e diz que “aqui o tratamento é VIP, porque eu nunca estive em um hospital como esse. Sou bem tratada por todos, desde o pequeno até o grande. Eles sabem tratar muito bem o paciente”.
Elizabete Almeida, ouvidora do Helv, ressalta que a experiência humanizada não consiste apenas em realizar festas de aniversários, de casamentos, de datas comemorativas e coisas do tipo. A abordagem também se relaciona com a questão da transparência. A partir do momento em que o paciente se sente aberto para tirar dúvidas sobre sua condição de saúde ou sobre os medicamentos que está tomando, por exemplo, ele passa a se sentir mais confiante em relação à equipe médica.
Um
O paciente está em situação de rua desde os 13 anos, por conta de problemas com drogas. “Eu, assim, entrei mais nas drogas quando perdi os meus pais. Para mim, acabou tudo”. Quando perguntado sobre quais tipos de entorpecentes já usou, ele responde: “Todas (as drogas) que você imaginar”, com um tímido sorriso no rosto.
Antes de ser internado, o paciente vivia em um barraco no bairro do Montese, em Fortaleza. Enquanto morava no local, ele perdeu todos os documentos após um incêndio que destruiu as habitações da comunidade. Depois de sair do hospital, ele deve voltar para a região.
Hoje, o paciente já está de alta médica, mas permanece no hospital porque precisa dos documentos que se perderam no incêndio. A equipe do Helv está auxiliando em todo o processo para retirar a papelada.
Essa situação é um outro exemplo do atendimento humanizado que, como já dito, não foca apenas na doença em si, mas também nas necessidades do paciente além do tratamento. No caso citado, a retirada dos documentos. Elisfabio, que atua em outra unidade de saúde, acredita que “por ser um cidadão de direitos, pagador de impostos, que financia com a sua condição de cidadania o próprio hospital. O hospital existe para (ele), o cliente, o usuário.”
De acordo com a Pesquisa Nacional de Saúde 2019, publicada em 2020 pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatísticas (IBGE), cerca de 71,5% da população brasileira depende unicamente do Sistema Único de Saúde (SUS) para a realização de tratamentos e atendimentos hospitalares.
Todos os hospitais citados pelo O POVO são estaduais e, apesar de a rede pública ter imperfeições, seu Antônio — aquele que renovou os votos no HGWA —, relata uma ótima experiência e acredita que “o pessoal fala muito de hospital público, mas quem fala não tem conhecimento das coisas. Quem precisa tem que dar valor às pessoas que estão cuidando da gente."
"Nunca faltou nada para mim e nem para ela (dona Tânia); sempre fomos muito bem acolhidos por todos, começando da portaria, zelador e tudo. Nunca fiz nenhuma reclamação, sempre fomos muito bem acolhidos”, continua.
Já Elisfabio acredita que “a nossa obrigação (do hospital, do serviço público e do Estado), não é apenas atender, mas como atender. Não é apenas receber o paciente para fazer um procedimento, mas produzir valor na entrega do serviço. Como que a gente faz isso? Com a humanização.”