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Games deixam os jogadores violentos? Especialistas respondem
Reportagem Especial

Games deixam os jogadores violentos? Especialistas respondem

Os jogos eletrônicos entraram no centro do debate após o presidente Lula relacioná-los à violência, apesar de nenhuma comprovação científica de tal vínculo. Profissionais da área indicam outras possíveis reflexões sobre os games, os quais podem ser agentes de mudança de vida pessoal e profissional

Games deixam os jogadores violentos? Especialistas respondem

Os jogos eletrônicos entraram no centro do debate após o presidente Lula relacioná-los à violência, apesar de nenhuma comprovação científica de tal vínculo. Profissionais da área indicam outras possíveis reflexões sobre os games, os quais podem ser agentes de mudança de vida pessoal e profissional
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Os jogos eletrônicos têm sido responsáveis por transformar a realidade de muitos brasileiros nos últimos anos, oferecendo oportunidades de emprego e de uma vida melhor. Apesar disso, o segmento se viu em meio a uma polêmica gerada pelo presidente Lula (PT), que relacionou a temática à violência registrada em escolas brasileiras em abril de 2023. Suas falas causaram incômodo e logo foram reprovadas por profissionais dos games, os quais indicam possíveis novos olhares sobre essa área, como a inclusão social.

Em reunião para discutir ações integradas de proteção de escolas e creches, que se tornaram alvos de ataques criminosos em diversas cidades do Brasil, Luiz Inácio Lula da Silva afirmou que os videogames seriam “porcarias” e que estariam incitando à violência. “Não tem jogo, não tem game falando de amor. Não tem game falando de educação. É game ensinando a molecada a matar. E cada vez, muito mais mortos do que na Segunda Guerra Mundial”, defendeu.

Mas será que realmente existe alguma ligação entre os jogos e uma eventual agressividade promovida por alguns jogadores? O POVO conversou com especialistas deste segmento para encontrar possíveis respostas para esta e outras questões.

A declaração de Lula não foi a primeira que buscou traçar algum vínculo entre jogos e violência. Muito pelo contrário. Ao longo das últimas décadas, diversos games estiveram na mira de críticos que apontavam para uma suposta má-influência sobre seu público consumidor. No início dos anos 2000, por exemplo, diferentes títulos chegaram a ser proibidos no Brasil sob o pretexto de que estariam favorecendo o acesso a conteúdos sexuais e de violência aos mais jovens. Counter-Strike, Grand Theft Auto (GTA), Mortal Kombat e outros foram alguns a serem banidos. Confira abaixo:

Se no início do século o mercado de jogos eletrônicos era quase incompreendido e ainda restrito a pequenos grupos, atualmente este se tornou um dos mais fortes braços da economia global. Conforme dados da agência internacional TechNet Immersive, o segmento de games passou a arrecadar US$ 163,1 bilhões em 2020, valor superior ao das indústrias da música e do cinema juntas. No Brasil, a projeção é de que o setor chegue a gerar US$ 2,8 bilhões até 2026.

Quem acompanha de perto esse crescimento é a Associação Brasileira das Desenvolvedoras de Jogos Eletrônicos (Abragames), que representa mais de 130 estúdios de desenvolvimento de jogos. Há quase 20 anos atuando no setor, a entidade rebateu as falas de Lula, informando que, além de serem um ator econômico importante para o País, os games têm proporcionado com que profissionais brasileiros se destaquem e criem “projetos incríveis, sensíveis e criativos” e que “contam histórias únicas que transformam vidas”.

“Como os filmes, as novelas, a música, os livros, as notícias, os esportes, os formadores de opinião e tantas outras referências, os games fazem parte de uma sociedade diversa e muito rica, onde os exemplos não podem ser retirados de contextos nem servir como desculpa para falhas estruturais e políticas públicas ineficazes”, comunicou a Abragames por meio de nota.

Daniel Gularte

“Afirmar que jogos são veículos que tornam pessoas violentas é terceirizar nossas mazelas humanas” – Professor universitário e pesquisador Daniel Gularte.

Para o especialista em história dos games e pesquisador Daniel Gularte, existe um longo caminho composto por um “conjunto de omissões, irresponsabilidades e olhares desviados” até chegar ao hipotético cenário em que os jogos tornariam as pessoas violentas. Segundo ele, essa afirmativa seria uma forma de “terceirizar as mazelas humanas” para o setor.

“Portanto, em definição, os jogos não tornam as pessoas violentas. Suas experiências interativas (dos jogos) conseguem levar as pessoas a um estado de protagonismo e imersão em um ambiente de regras definidas e seguras, onde podemos avaliar, refletir e construir, por nossas ações, quem queremos ser e o que queremos nos tornar”, completou.

Advogada de e-sports, Luana Mendes também comenta que a discussão sobre a violência conferida no Brasil tem “raízes muito mais profundas”. “A violência nasce na desigualdade, se alimenta da impunidade e se reproduz na falta de cuidado emocional e psicológico e no abandono. Culpar os jogos não é apenas leviano, representa um verdadeiro retrocesso”.

 

 

“O que as famílias precisam saber sobre games?”

Mesmo sem existir estudos que comprovem uma real vinculação dos games com a violência, um pensamento é unânime entre os mais diversos profissionais: nem todos os jogos são para todo mundo. Assim como ocorre com qualquer outro produto cultural, cada jogo é direcionado para um público específico, geralmente determinado a partir da idade. Essas são as chamadas “classificações indicativas”.

No Brasil, essa é a informação sobre a faixa etária para a qual obras audiovisuais são recomendadas a partir de critérios de nível de maturidade. Seu principal propósito é ser uma ferramenta de auxílio aos pais no momento da escolha do conteúdo que seus filhos devem ou não ter acesso. Esse sistema foi criado em 1990, sendo atribuição da Coordenação de Classificação Indicativa (Cocind), ligada ao Ministério da Justiça e Segurança Pública.

Psicólogo de e-sports da equipe iNCO Gaming, Bruno Sanches conta que a importância da classificação indicativa acontece justamente para evitar que crianças e adolescentes não sofram certas influências. “Justamente por ainda não terem a capacidade de analisar friamente ou racionalmente aquelas situações apresentadas nos jogos”, indica, informando que mesmo aos 18 anos ainda é possível que aconteçam alterações na formação do jovem.

Mãe Pixel é o projeto criado por Thereza Rodrigues para conscientizar pais de filhos gamers(Foto: Mãe Pixel / Divulgação)
Foto: Mãe Pixel / Divulgação Mãe Pixel é o projeto criado por Thereza Rodrigues para conscientizar pais de filhos gamers

Autora do livro “Manual de sobrevivência para pais da geração gamer", Thereza Rodrigues é uma mãe que precisou aprender com o tempo quais as melhores formas de lidar com um pequeno apaixonado por jogos eletrônicos em casa. Seu filho é hoje o jogador profissional da Vivo Keyd, Micael “Mica0”, quatro vezes campeão do Campeonato Brasileiro de League of Legends (CBLOL). Mas antes do game se tornar profissão, Thereza revela que teve de enfrentar muitos impasses internos até a aceitação completa.

Pro-player Micael "micaO" Rodrigues e sua mãe Thereza Rodrigues, criadora do Mãe Pixel(Foto: Mãe Pixel / Divulgação)
Foto: Mãe Pixel / Divulgação Pro-player Micael "micaO" Rodrigues e sua mãe Thereza Rodrigues, criadora do Mãe Pixel

“Vivenciar tudo isto é um dilema. Tenho um filho nerd ou um filho bitolado em games? A minha cabeça fervilhava pensando: meu filho vai ficar um obeso, um sem atenção, um maníaco agressivo. E de repente, ia ao quarto ao lado e via o garoto morrendo de rir como nunca, falando até em inglês, cheio de beijos para me oferecer só para deixá-lo jogar mais um pouquinho. Estava tão centrado, tranquilo e de boa na lagoa que me deixava desarmada”, resume ela sobre seu livro.

Com essa experiência adquirida, Thereza resolveu lançar o “Mãe Pixel”, projeto que oferece orientações aos pais sobre o cenário dos games, buscando informá-los e conscientizá-los sobre as melhores decisões a serem tomadas quando os filhos optam por entrar neste mercado ainda tão incipiente. “De repente a gente se descobre uma mãe gamer. Hoje essa é uma questão que se apresenta para a maioria dos pais. Como entender essas carreiras e como entender um filho que trabalha no digital? Isso porque o digital para muitos de nós é uma irrealidade”, narra.

Ela também é coautora do ebook "O que as famílias precisam saber sobre games: um guia para pais e cuidadores de crianças e adolescentes". Disponível gratuitamente, a obra ajuda a orientar famílias sobre o uso de games por crianças e adolescentes, com o objetivo de apresentar a complexidade deste universo, combatendo a desinformação sobre ele. Nele, são abordadas questões de interação online, respeito entre os jogadores, segurança e muito mais.

O material é uma iniciativa da Homo Ludens Research & Consulting e foi elaborado por autores de diferentes as Universidades Federal da Bahia (UFBA), Católica de Pernambuco, Pontifícia Universidade Católica (PUC-SP), além de instituições como Safernet Brasil, Nethics, Midiativa/comkids e Orienta Profissão.

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Clique aqui para baixar o ebook "O que as famílias precisam saber sobre games: um guia para pais e cuidadores de crianças e adolescentes".

 

 

Os jogos liberam emoções

 

Assim como uma série, um filme ou uma novela, os games têm o poder de gerar emoções das mais diversas em seus jogadores. Sentimentos de alegria, tristeza ou mesmo raiva estão entre as reações mais comuns e que surgem inevitavelmente ao longo das jogatinas virtuais. O que não é algo ruim, pois assim como acontece em esportes tradicionais, os jogos eletrônicos podem ser usados como válvulas de escape de rotinas estressantes e cansativas.

Cearense e designer de jogos da Astrum Games, Daniel “Guarah” Feitosa comenta que as experiências proporcionadas pelos jogos buscam justamente apresentar aos jogadores um momento de máximo envolvimento. Também participante do Capítulo Fortaleza da Associação Internacional de Desenvolvedores de Jogos (IGDA), ele diz que os jogos “influenciam em muita coisa”, afinal foram criados para trazer uma imersão. Desta forma, determinadas reações são inevitavelmente reveladas, como o estresse, já que os jogadores se veem dentro das tensões de uma disputa.

“Sim, os jogos influenciam as pessoas. Mas essa conexão de dizer que um jogo vai fazer com que alguém se torne agressivo, não. Geralmente é uma válvula de escape, um momento em que a pessoa está buscando uma forma de relaxar. Esta é uma forma imersiva de você se divertir e se colocar lá dentro daquela tela, daquela imagem, daquele personagem. Mas se uma pessoa se mostra agressiva durante estes momentos é porque de fato tem algum problema que vem bem antes dela pegar o videogame”, aponta.

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"Não existem dados científicos que comprovem que jogos influenciam violência nas pessoas" – Daniel "Guarah".

Se determinados comportamentos já acontecem em momentos de diversão, quando levados para um ambiente competitivo, então, a intensidade se eleva ainda mais. Com atuação no cenário profissional tanto do esporte tradicional como do esporte eletrônico, o psicólogo Bruno Sanches traça um paralelo entre os dois contextos. Ele exemplifica que, quando um jogador de futebol se frustra, determinadas ações passam a ser observadas: chute na grama, jogar copo de água, xingamentos. Neste momento, o atleta está se expressando e colocando suas sensações para fora.

“Quando a gente traz para o universo game, é a mesma coisa quando o player se frustra e bate na mesa, desconta no teclado ou no mouse. Ali ele está se comunicando emocionalmente, demonstrando sua emoção. A psicologia nos dá base para compreender que, quando a gente fala das nossas emoções, consegue geri-las melhor. E quando a gente menciona ‘falar sobre emoções’ não necessariamente se refere à linguagem oral, mas também às linguagens de comunicação não-verbal e comportamental”, completa.

Atuando hoje na iNCO Gaming e no Bangu Atlético Clube, Bruno declara ainda que os games podem propiciar um crescimento humano com reflexos na vida pessoal e profissional dos jogadores. “A gamificação proporciona à criança, ao adolescente e até ao adulto desenvolver-se na parte cognitiva, socialmente e comportamentalmente, porque ali no game você consegue, por exemplo, tirar uma pessoa que está em depressão e que não quer sair de casa para se relacionar com alguém. O universo game pode ser usado como essa ferramenta”, finaliza.

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“O game proporciona raciocínio lógico, tomada de decisão, resolução de problemas. Esse deveria ser o nosso olhar para esse universo” – Bruno Sanches.

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