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Ceará convive com quase 7 mil crianças e adolescentes órfãos de pelo menos um genitor
Reportagem Especial

Ceará convive com quase 7 mil crianças e adolescentes órfãos de pelo menos um genitor

Levantamento mostra cenário da orfandade desde 2021. Atualmente, o Estado não possui política pública efetiva de auxílio e proteção para grupos afetados

Ceará convive com quase 7 mil crianças e adolescentes órfãos de pelo menos um genitor

Levantamento mostra cenário da orfandade desde 2021. Atualmente, o Estado não possui política pública efetiva de auxílio e proteção para grupos afetados
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O Ceará convive atualmente com quase sete mil crianças e adolescentes órfãos de pelo menos um genitor, conforme levantamento inédito realizado pelos Cartórios de Registro Civil com dados consolidados pela Associação Nacional dos Registradores de Pessoas Naturais (Arpen-Brasil), Operador Nacional do Registro Civil (ON-RCPN) e a Associação dos Notários e Registradores do Brasil (Anoreg).

Os dados foram contabilizados nos anos de 2021 a 2024, totalizando 6.940 órfãos de 0 a 17 anos de idade no Estado, divulgados em dezembro passado. O levantamento teve como base o cruzamento dos dados dos CPFs dos pais existentes nos registros de óbitos com o registro de nascimento de seus filhos. O cruzamento só foi possível a partir de 2021, quando todos os nascimentos realizados no Brasil passaram a ter os registros com a emissão do CPF do registrando.

Ceará convive atualmente com quase sete mil crianças e adolescentes órfãos de pelo menos um genitor(Foto: Aurelio Alves)
Foto: Aurelio Alves Ceará convive atualmente com quase sete mil crianças e adolescentes órfãos de pelo menos um genitor

“Quando a pessoa vem a óbito, um adulto, um pai ou uma mãe, é possível identificar quais são os CPFs vinculados à aquele CPF do pai ou da mãe, de crianças e adolescentes”, explica o diretor da Associação dos Notários e Registradores do Estado do Ceará (Anoreg-CE), Jacks Filho.

Ainda segundo ele, os números não incluem os órfãos da Covid-19, onde a pesquisa aponta, fora o registro geral, para 380 crianças e adolescentes sem um dos pais e 1 para a ausência de ambos no Ceará.

Conforme a pesquisa, os órfãos de um genitor somam 6.809 crianças e adolescentes, enquanto dos dois genitores o total é de 131. Em 2021, o número de órfãos contabilizado na pesquisa era de 1.484, no ano seguinte, o número de crianças e adolescentes nessa situação passou para 1.617.

Em 2023, era de 1.970 e no ano passado, o levantamento apontou para uma queda da orfandade, com 1.869 crianças e adolescentes órfãos.

Em relação ao número de um genitor, entre 2021 e 2022, foi registrado alta de 8%, seguido de outro aumento de 22% em 2023. No ano seguinte, o cenário apresentou redução de 4%.

No que se refere ao caso da orfandade de dois genitores, no ano de 2022, o Estado teve alta de 64%, no ano seguinte o cenário apresentou estabilidade. Em 2024, o quadro teve uma redução de 41% da orfandade.

Em 2024, o quadro teve uma redução de 41% da orfandade considerando os dois genitores(Foto: DEIVYSON TEIXEIRA)
Foto: DEIVYSON TEIXEIRA Em 2024, o quadro teve uma redução de 41% da orfandade considerando os dois genitores

A pesquisa se concentra em órfãos devido ao óbito de pelo menos um dos pais, excluindo casos de abandono. A comparação entre órfãos com um e com dois pais falecidos revela uma disparidade significativa, com muito mais crianças perdendo apenas um genitor no Estado.

Além do Ceará, a pesquisa destacou também o cenário da orfandade em todos os 27 estados brasileiros. No ranking, São Paulo lidera o número de crianças e adolescentes órfãos, com 34.730, seguido da Bahia, com 16.491, e Rio de Janeiro, com 13.656 órfãos.

O Ceará ocupa a 9ª posição no ranking entre as unidades federativas e o estado de Roraima aparece na última posição da lista, com 722 órfãos.

 

Cenário da orfandade no País; veja ranking por Estado

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Conforme o diretor da Anoreg/CE, Jacks Filho, o levantamento impacta diretamente no entendimento das políticas públicas voltadas à orfandade, principalmente das gestões governamentais.

“A gente vai poder tentar identificar os motivos porque que tem tantos pais e mães falecendo, seja um apenas ou os dois, e quais são as medidas que o Estado vai tomar para poder proteger essa criança ou adolescente que agora se vê sem um dos pais ou sem ambos”, analisa Jacks.

Ainda segundo Jacks, a região está em uma posição intermediária, nem entre os maiores nem os menores. No entanto, é necessário avaliar as circunstâncias que podem influenciar a posição do Estado entre os demais. Entre elas, o diretor da Anoreg destaca a condição de o Estado registrar o CPF de todos os recém-nascidos, crianças e adolescentes desde 2021, o que possibilita o maior número de registros.

“Acaba que a gente formaliza mais os nascimentos, a nossa estatística de óbitos que vão bater na vinculação ao CPF de pai e mãe vai ser um pouco maior mesmo porque tem outros estados que a informalidade, ou seja, a ausência de registro de nascimento é maior. Isso acaba reduzindo essa estatística específica”, aponta.

Outra medida apontada pelo diretor da Anoreg/CE está relacionada ao trabalho de entidades dos cartórios junto com os órgãos governamentais de busca diminuir o subregistro, garantindo que crianças e adolescentes sejam registrados com CPF dos pais vinculados ao seu registro. Além disso, buscar suprir a necessidade do problema da orfandade por meio de políticas públicas de enfrentamento do problema.

 

 

Os desafios legais da orfandade

Crescer sem a presença de um pai ou uma mãe ou, em um cenário ainda pior, sem ambos, é um desafio. São inúmeros os cenários em que a orfandade se apresenta.

A defensora pública e supervisora do Núcleo de Atendimento da Defensoria Pública da Infância e Juventude (Nadij/DPCE), Noemi Landim, explica que o público que se encontra nessa situação precisa de um representante legal para garantir os seus direitos, como acesso atendimento psicológico, saúde e educação.

Para que esses direitos sejam garantidos, um dos órgãos que atuam nesse cenário é a Defensoria Pública. A supervisora do Nadij afirma que o núcleo orienta e auxilia na regularização da guarda, seja por meio de processos judiciais ou encaminhamento para acolhimento em casos de vulnerabilidade. Entre os fatores, há um que fica apenas com um genitor. Ela afirma que o outro genitor fica como representante legal dessa criança ou adolescente.

O Ceará ocupa a 9ª posição no ranking entre as unidades federativas no ranking de orfandade(Foto: DEIVYSON TEIXEIRA)
Foto: DEIVYSON TEIXEIRA O Ceará ocupa a 9ª posição no ranking entre as unidades federativas no ranking de orfandade

Quando há a perda de ambos, além do vácuo familiar, existe a preocupação por quem vai representar ela. “O responsável pela criança, seja a avó, tio ou irmão mais velho, ele vai ter que entrar na justiça para poder pedir a guarda dessa criança para poder representá-la legalmente. Vai fazer uma viagem, uma matrícula no curso, tratamento médico, requerer um benefício governamental, há a necessidade dessa representação legal”, afirma a defensora.

O desafio é, de fato, garantir que todos esses direitos essenciais sejam atendidos pelo público. A Defensoria entra para acompanhar as diversas situações que a orfandade pode trazer.

Há casos em que a criança ou adolescente fica residindo com parentes ou amigos dos pais, o que não é regulamentado, dando conta da necessidade da regulação quando há uma necessidade legal.

O caso mais extremo é quando a criança ou adolescente perde os pais e ficam sem nenhum representante e são encaminhadas para unidades de acolhimento em instituições conhecidas popularmente por “abrigos”, que são, na maioria dos casos, coordenados pelo Município ou Estado.

A supervisora do Nadij explica que, nesses casos, o Conselho Tutelar é acionado para verificar a situação de vulnerabilidade e intermediar o acolhimento deles.

Abandono parental e jurídico, municípios do interior do estado  enviam crianças para abrigos na capital. Abrigo Tia Júlia. (Foto: Júlio Caesar/O Povo) (Foto: JÚLIO CAESAR)
Foto: JÚLIO CAESAR Abandono parental e jurídico, municípios do interior do estado enviam crianças para abrigos na capital. Abrigo Tia Júlia. (Foto: Júlio Caesar/O Povo)

Em Fortaleza, sete casas de acolhimento para crianças e adolescentes são gerenciadas pela Prefeitura. A Secretaria de Direitos Humanos e Desenvolvimento Social de Fortaleza (SDHDS) informou que cada uma conta com capacidade para 20 pessoas.

“As crianças e adolescentes abrigadas estão temporariamente afastados de sua família de origem devido ao abandono, negligência ou violação de direitos. São encaminhadas pelo Conselho Tutelar ou pela Justiça enquanto é definida a guarda definitiva”, disse a pasta.

Ainda segundo o órgão, atualmente, 135 crianças e adolescentes estão acolhidos e recebem cuidados da equipe multidisciplinar formada por psicólogos, assistentes sociais, pedagogos, cuidadores, técnicos administrativos, cozinheiros, entre outros profissionais. O tempo máximo de permanência é de 18 meses, conforme o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA).

No Estado, a Secretaria da Proteção Social (SPS) coordena dez abrigos em Fortaleza e outros cinco regionalizados nos municípios de Itaitinga, Jaguaruana, Baturité, Caririaçu e Ararendá. “Cada unidade acolhe, no máximo, 20 pessoas. Nenhuma das unidades administradas pelo Estado ultrapassa esse número”, disse a pasta, que acrescentou que mais dois abrigos estão previstos para este ano, nos municípios de Morrinhos e São Luís do Curu.

 

 

A relação da orfandade e os impactos psicológicos e sociais no cenário infantojuvenil

Uma das principais preocupações quando o assunto é orfandade é como a criança ou o adolescente vai crescer sem a presença de responsável por ele. A falta do convívio familiar pode causar consequências psicológicas e sociais. A psicóloga Lorena Farias que trabalha Terapia Comportamental com o público infantojuvenil destrincha alguns obstáculos relacionados aos impactos da orfandade neste cenário. Confira:

 

 

Previsto para janeiro, benefício para órfãos da Covid ainda não começou a ser disponibilizado

Um projeto para beneficiar crianças e adolescentes que ficaram órfãos devido à Covid-19 foi lançado pelo governador do Ceará, Elmano de Freitas (PT), em outubro passado. O programa “Ceará Acolhe” busca assegurar proteção social ao público em situação de orfandade, ou seja, diante da perda de ambos os pais ou quando a família é formada somente por um dos genitores que faleceu por conta da doença. Após dois meses, o projeto de apoio ainda não foi regulamentado no Estado.

Para assegurar essa proteção, o chefe do Executivo sancionou uma lei que prevê um auxílio financeiro mensal no valor de R$500 até que a criança ou adolescente complete 18 anos. A previsão para que o benefício começasse a ser disponibilizado era a partir de 1º de janeiro de deste ano, entretanto, até a primeira quinzena deste mês, o auxílio ainda não foi disponibilizado ao público.

O projeto também prevê a realização de atividades para diminuir os impactos da orfandade causada pela pandemia por meio de ações para fortalecer vínculos familiares, sociais e comunitários.

Entre elas, estão o atendimento prioritário em serviços de cuidado com a saúde mental, acompanhamento por equipes dos centros de Referência e Assistência Social (Cras) e de Referência Especializado em Assistência Social (Creas) e a prioridade na inserção na rede pública de ensino. Também está prevista a inserção do adolescente no ambiente de trabalho por meio de programas de aprendizagem profissional, também ainda sem data prevista para começar.

A falta de assistência ao público impacta no aumento de crianças e adolescentes em situação de rua e em trabalho infantil no Estado(Foto: DEIVYSON TEIXEIRA)
Foto: DEIVYSON TEIXEIRA A falta de assistência ao público impacta no aumento de crianças e adolescentes em situação de rua e em trabalho infantil no Estado

Segundo a psicóloga Ângela Pinheiro, professora da Universidade Federal do Ceará (UFC), integrante do Núcleo Cearense de Estudos e Pesquisas sobre a Criança (Nucepec) e da Articulação em Apoio à Orfandade de Crianças e Adolescentes por Covid-19 (Aoca), a ausência de políticas públicas efetivas para atender a essa população, apesar da existência de uma lei, ainda é um desafio que se prolonga por três anos.

“A gente vem tentando ver se o decreto saía, como não saiu, então é hora da gente tentar forçar para ver como é que vai ser a execução desta lei respaldada pelo decreto,” comenta Ângela.

A falta de assistência ao público impacta, segundo a psicóloga, no aumento de crianças e adolescentes em situação de rua e em trabalho infantil no Estado, além do aumento no acolhimento institucional por falta de outras políticas públicas de atenção ao grupo de órfãos.

Conforme a psicóloga, a falta de regulamentação de guarda ou tutela ou adoção significa impedimento ou dificuldade de acesso a serviços, ou seja, a todas as políticas relacionadas à criança. “A institucionalização em si, ela não é favorável para a criança e para o adolescente. Ela é tanto que ela não deveria ultrapassar dois anos, deveria ser excepcional e sempre nome medida do temporário”, destaca a integrante da Aoca.

Em nota, a SPS, que deverá coordenar a política, informou que, atualmente, o Programa Ceará Acolhe está em fase de regulamentação através de decreto. A pasta informou que a previsão é que até março todos os trâmites burocráticos acerca do programa estejam concluídos.

Ainda segundo o órgão de Proteção Social, é realizado uma orientação e acompanhamento aos municípios na execução de políticas para crianças e adolescentes, a fim de garantir seus direitos previstos em lei.

O Programa Ceará Acolhe está em fase de regulamentação através de decreto(Foto: DEIVYSON TEIXEIRA)
Foto: DEIVYSON TEIXEIRA O Programa Ceará Acolhe está em fase de regulamentação através de decreto

“Todas as crianças acolhidas têm os direitos assegurados pela legislação federal, como o Estatuto da Criança e do Adolescente. As crianças abrigadas em unidades do Governo do Estado estão matriculadas, têm acesso a cuidados com a saúde e atividades de lazer, como é direito de toda criança e adolescente e também o restabelecimento dos vínculos familiares quando permitido pelo Poder Judiciário”, afirma.

A Secretaria Municipal dos Direitos Humanos e Desenvolvimento Social (SDHDS) disse que, atualmente, das 135 crianças e adolescentes em acolhimento institucional do município, nenhum tem perfil de orfandade. O público que se encontra nas unidades estão em situação de risco pessoal e social por abandono, negligência e em que os responsáveis estejam temporariamente impossibilitados de cumprir sua função protetiva.

A pasta afirmou que o “Serviço de Acolhimento Institucional é uma política pública prevista pelo Sistema Único de Assistência Social (Suas) para qualquer criança e adolescente em situação de risco pessoal e social por abandono, negligência e em que os responsáveis estejam temporariamente impossibilitados de cumprir sua função protetiva”.

 

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