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Guerra Fria digital: a influência da China sobre os EUA e o Brasil
Reportagem Especial

Guerra Fria digital: a influência da China sobre os EUA e o Brasil

As frequentes disputas comerciais em torno das novas tecnologias têm colocado as grandes potências econômicas mundiais em confronto direto, em uma espécie de nova "Guerra Fria". Estados Unidos e China competem por mercados globais, com inovações em áreas como redes sociais, inteligência artificial e carros elétricos. A China, porém, tem se destacado com uma abordagem diplomática estratégica, ao buscar expandir sua influência sobre parceiros ao redor do mundo, incluindo o Brasil

Guerra Fria digital: a influência da China sobre os EUA e o Brasil

As frequentes disputas comerciais em torno das novas tecnologias têm colocado as grandes potências econômicas mundiais em confronto direto, em uma espécie de nova "Guerra Fria". Estados Unidos e China competem por mercados globais, com inovações em áreas como redes sociais, inteligência artificial e carros elétricos. A China, porém, tem se destacado com uma abordagem diplomática estratégica, ao buscar expandir sua influência sobre parceiros ao redor do mundo, incluindo o Brasil
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As tensões sobre o controle de tecnologias estratégicas têm gerado diversos debates e comparações sobre a relação entre os Estados Unidos e a China. Com o TikTok como um dos principais pontos de atrito, discussões sobre segurança de dados e uma possível espionagem têm colocado os dois países em polos cada vez mais opostos, criando semelhanças com uma nova "Guerra Fria".

Essa disputa, porém, não se limita às redes sociais. O país asiático tem avançado rapidamente em áreas como inteligência artificial e tecnologia de ponta, causando apreensão em grandes empresas do Vale do Silício.

Deepseek, IA da China, já sofreu seus primeiros banimentos em países(Foto: Reprodução/ JOEL SAGET / AFP)
Foto: Reprodução/ JOEL SAGET / AFP Deepseek, IA da China, já sofreu seus primeiros banimentos em países

A ascensão de plataformas como o DeepSeek exemplifica como as aplicações chinesas têm desafiado as americanas, remodelando o mercado de IA e colocando em xeque o atual modelo adotado pelo setor.

Com a crescente presença chinesa em segmentos sensíveis da tecnologia mundial, portanto, uma pergunta surge de maneira inevitável: estamos diante de uma nova corrida tecnológica marcada pela disputa entre China e EUA? E, no contexto local, como o Brasil tem sido impactado pela crescente influência do país asiático?

Antes de aprofundar a busca por respostas a esses questionamentos, vale destacar que, mesmo em um momento de extrema polarização política, um serviço chinês conseguiu, em certa medida, unir democratas e republicanos nos Estados Unidos: o TikTok.

Presente nas mãos de 170 milhões de americanos, a rede social tem sido alvo de desconfiança por causa de um eventual compartilhamento de dados com o governo da China.

Pelo menos desde 2020, o TikTok tem alimentado debates sobre a segurança dos dados de seus usuários. Durante o primeiro mandato de Donald Trump, surgiram preocupações sobre a possibilidade de o aplicativo estar sendo usado como ferramenta de espionagem pelo regime comunista da China.

Por outro lado, a empresa responsável pela plataforma, a ByteDance, nega qualquer vínculo com o partido comunista chinês.

TikTok tem sido o centro de discussões nos EUA por desconfiança na segurança de dados de usuários americanos e possível espionagem chinesa(Foto: Freepik)
Foto: Freepik TikTok tem sido o centro de discussões nos EUA por desconfiança na segurança de dados de usuários americanos e possível espionagem chinesa

Com a não reeleição de Trump e a ausência de uma política clara de Joe Biden sobre o tema, as discussões esfriaram, mas voltaram a ganhar força em 2024.

No início daquele ano, legisladores e a Justiça americana intensificaram as pressões, sugerindo que a ByteDance vendesse a rede social para uma empresa americana. Caso contrário, o aplicativo seria proibido de operar no país.

Como vender o TikTok não estava nos planos da empresa, a rede chegou a ficar fora do ar nos Estados Unidos em 18 de janeiro de 2025. A suspensão, porém, durou apenas algumas horas e logo o serviço foi restabelecido.

A história ganhou mais um capítulo quando Trump reassumiu a presidência para seu segundo mandato, concedendo novo prazo para que os chineses encontrassem um comprador americano. Players como Microsoft, Roblox e até o influenciador MrBeast surgem como interessados no negócio.

Disputas comerciais com produtos de alta tecnologia entre China e Estados Unidos geram espécie de nova "Guerra Fria"(Foto: Agência Brasil)
Foto: Agência Brasil Disputas comerciais com produtos de alta tecnologia entre China e Estados Unidos geram espécie de nova "Guerra Fria"

Outra discussão que envolve uma plataforma chinesa diz respeito à inteligência artificial DeepSeek. Com modelo de código aberto e baixo custo, a ferramenta provocou uma queda significativa nas ações de gigantes americanas, como a Nvidia, devido à eficiência similar a de modelos como ChatGPT e Gemini – só que com bem menos recursos.

Para viabilizar sua criação, os desenvolvedores asiáticos precisaram superar barreiras impostas pelo governo dos Estados Unidos, que restringe a venda de chips de alta tecnologia para a China.

Com equipamentos mais limitados, os chineses desenvolveram a IA utilizando menos dados para entregar respostas igualmente eficazes aos seus usuários.

Além disso, por se tratar de uma tecnologia de código aberto, toda a estrutura do DeepSeek pode ser baixada e explorada pelos usuários, o que torna a plataforma uma alternativa viável e de baixo custo no mercado global.

Esse modelo disruptivo, que oferece um desempenho comparável ao de chatbots ocidentais a uma fração do preço, impactou negativamente o andamento de empresas americanas.

Aplicativo chinês, o DeepSeek foi responsável por sacudir o mercado de IAs global em janeiro de 2025(Foto: Justin Sullivan / AFP)
Foto: Justin Sullivan / AFP Aplicativo chinês, o DeepSeek foi responsável por sacudir o mercado de IAs global em janeiro de 2025

A Nvidia foi a mais afetada, com uma queda de US$ 465 bilhões em valor de mercado (equivalente a 13%) devido ao chamado “efeito DeepSeek”. A empresa é a grande responsável por criar e fornecer chips de alta tecnologia para o desenvolvimento de IAs.

Com a chegada da plataforma chinesa, muitas dúvidas ficaram no ar sobre a sustentabilidade dos altos gastos e investimentos em inteligência artificial, forçando empresas de tecnologia a repensarem suas estratégias.

A preocupação dos americanos é que o modelo chinês transforme profundamente o atual modus operandi do setor de IA, que depende de muitos chips de alto desempenho, grande poder de computação e elevado consumo de energia.

Em termos de comparação, enquanto a DeepSeek precisou de US$ 6 milhões (cerca de R$ 35 milhões) para ser desenvolvida, a OpenAI teria gastado US$ 100 milhões para chegar à versão atual do ChatGPT.

Além do mais, engenheiros da DeepSeek dizem ter usado apenas dois mil chips para realizar a mesma tarefa que outras marcas ocidentais precisam de pelo menos 16 mil chips para treinar seus robôs com supercomputadores.

 

 

Tecnologias chinesas chegam aos brasileiros sob novas perspectivas

Muitas outras tecnologias chinesas já consolidaram sua presença no cotidiano ocidental, como é o caso dos carros elétricos.

Principal concorrente da americana Tesla, do bilionário Elon Musk, a BYD é a líder global em vendas desses veículos. Combinando a capacidade de produção em larga escala e o subsídio estatal, a marca consegue aplicar preços acessíveis para conquistar mercados diversos, incluindo o brasileiro.

Para chegar ao consumidor do Brasil, no entanto, foi necessário superar uma percepção cultural que, por décadas, associava produtos chineses a baixo custo, mas também a qualidade inferior.

Até os anos 2000, durante o processo de industrialização acelerada da China, era comum a imagem de que bens fabricados no país, embora baratos, eram de pouca durabilidade.

Essa visão começou a mudar a partir de 2001, quando a China ingressou na Organização Mundial do Comércio (OMC). O país implementou uma política de altos investimentos em tecnologia, infraestrutura e capacitação de sua força de trabalho, permitindo a ascensão de empresas focadas em inovação e qualidade. Gradualmente, portanto, o estigma foi se dissipando, impulsionado por marcas que desafiaram e reformularam o imaginário global.

Entre elas está a BYD, que encontrou no Brasil um mercado estratégico. Em 2024, a marca registrou a venda de mais de 76 mil veículos, evidenciando sua popularidade crescente. De modo geral, entre janeiro e novembro de 2024, a China exportou mais de 228 mil veículos para o Brasil, consolidando cada vez mais espaço no mercado automotivo local.

Entre as pessoas que contribuíram para endossar os números significativos da BYD no Brasil está o advogado e empresário Fábio Miranda de Melo. Aos 47 anos, ele buscava um veículo econômico e eficiente para suas filhas até que, após muita pesquisa, optou por adquirir dois carros elétricos da gigante chinesa. "Eu comprei dois BYD para as minhas filhas, e o que me levou a decidir foi, a princípio, a questão de ser um carro elétrico", explica Fábio, contando que encontrou muito mais do que autonomia nos veículos.

Entre os aspectos que mais o agradaram estão a qualidade da central multimídia, a possibilidade de ligar o ar-condicionado à distância, a precisão no medidor de consumo e a rapidez no carregamento.

O advogado Fábio conta que comprou um carro elétrico para a filha Carolina por conta de sua autonomia e tecnologias(Foto: Fernanda Barros / O POVO)
Foto: Fernanda Barros / O POVO O advogado Fábio conta que comprou um carro elétrico para a filha Carolina por conta de sua autonomia e tecnologias

Outro fator determinante para a escolha foi o benefício oferecido pela própria fabricante. "Quando eu comprei, me deram uma manutenção de até 100 mil quilômetros, então o custo para mim é zero", destaca.

Apesar das vantagens, Fábio admite ter enfrentado um momento de hesitação antes da compra. "Tive um pouco de medo. Tenho um certo receio com produtos chineses", confessa. Porém, após mais de um ano com suas filhas utilizando os carros, ele afirma que a experiência tem sido extremamente positiva.

Quem ajuda Fábio a chegar nessas conclusões é a filha, Carolina Xavier, de 23 anos. Dona de um dos Dolphin Mini comprados pelo pai, ela destaca como a tecnologia chinesa transformou suas percepções sobre um automóvel de maneira geral.

Além de acelerar e freiar muito rapidamente, Carolina diz que o carro entrega uma experiência “muito suave” em termos de desempenho, sem contar nas tecnologias embutidas que se tornaram essenciais no cotidiano.

A advogada Carol Xavier conta que superou preconceitos com o carro chinês e hoje tem suas tecnologias como grandes aliadas no dia a dia(Foto: Fernanda Barros / O POVO)
Foto: Fernanda Barros / O POVO A advogada Carol Xavier conta que superou preconceitos com o carro chinês e hoje tem suas tecnologias como grandes aliadas no dia a dia

"Até para manobrar é muito diferente, porque ele não só tem câmera de ré, como também tem uma câmera especial em que você consegue mudar o ângulo, ver como estacionar por todos os lados e até ver o carro de cima”, relata, pontuando ainda que outro fator contribui muito para seu conforto: o espaço interno.

Atenta aos preços crescentes do combustível, Carolina menciona que o fato do seu BYD ser elétrico o torna tanto prático, quanto econômico. Ela estima que o carro percorre cerca de 300 quilômetros por carga, bem como oferece benefícios como autonomia e facilidades para planejar seu carregamento. “Eu não preciso ficar olhando qual o preço da gasolina. Geralmente as cargas são rápidas e, quando preciso viajar, levo o carregador portátil.”

De modo geral, ela destaca que a tecnologia chinesa tem se mostrado confiável e de alta qualidade, superando seus preconceitos iniciais e agora incentivando outras pessoas a experimentarem essas inovações. "Recomendo de olhos fechados”, completa.


 

 

Como a China saiu do "copia e cola" para a liderança tecnológica global

Entre as possíveis explicações para a expansão da influência chinesa estaria a combinação de uma mentalidade que alia economia e diplomacia a uma filosofia de ganhos mútuos.

Conforme aponta Gustavo Guerreiro, pesquisador do Observatório das Nacionalidades da Universidade Estadual do Ceará (Uece), os reflexos da ascensão da China ganham força principalmente por se opor a modelos estabelecidos por potências europeias e pelos Estados Unidos.

“Um dos pilares dessa expansão é a estratégia que combina economia e diplomacia, baseada na filosofia ‘ganha-ganha’”, afirma. Também doutor em Políticas Públicas pela Uece, ele destaca que diferentemente da abordagem tradicional americana e europeia, que historicamente empregam medidas "autoritárias" e "imperialistas", o modelo chinês busca estabelecer relações de benefício para ambos os lados de uma negociação.

A exportação de bens manufaturados de alta tecnologia também se coloca como outro fator impulsionador da influência chinesa. Isto é, carros elétricos, smartphones e aplicativos como TikTok e DeepSeek tornaram-se mais presentes no cotidiano das pessoas, trazendo consigo novas formas de consumo e comportamento.

Gustavo Guerreiro é pesquisador do Observatório das Nacionalidades, da Universidade Estadual do Ceará (Uece)(Foto: Arquivo pessoal)
Foto: Arquivo pessoal Gustavo Guerreiro é pesquisador do Observatório das Nacionalidades, da Universidade Estadual do Ceará (Uece)

Para a China consolidar sua presença no mercado global, o professor de Geografia da Universidade Federal do Ceará (UFC), Eduardo von Dentz, explica que foi realizado um investimento em planejamento de longo prazo.

Se antes o país exportava produtos de baixa qualidade, foi criada uma estrutura para que essas produções passassem por um processo de refinamento tecnológico ao longo do tempo.

Mas para chegar a esse nível, foram necessárias algumas transformações internas pelo menos desde 1949, no pós-Revolução Chinesa. A aceleração da industrialização somada à erradicação da pobreza de mais de um bilhão de pessoas; melhores salários e condições de vida e trabalho para sua população, são algumas das ações que estiveram incluídas nos planos liderados pelo Partido Comunista.

Doutor em Geografia pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), Von Dentz aponta que desde a Revolução de 1949 até sua proeminência no cenário mundial atual, a China tem como característica planejar seu crescimento através de planos quinquenais que abrangem não apenas a economia, mas também aspectos sociais, culturais e ambientais.

A visão muito clara de onde quer chegar teria ajudado o país a delimitar uma programação consistente e direcionada sobre seu próprio futuro.

Eduardo von Dentz é professor de Geografia da Universidade Federal do Ceará (UFC)(Foto: Arquivo pessoal)
Foto: Arquivo pessoal Eduardo von Dentz é professor de Geografia da Universidade Federal do Ceará (UFC)

Essas estratégias a longo prazo, a propósito, devem continuar dando resultado. Prova disso é que a China tem largado na frente em investimento em setores estratégicos como o 5G, inteligência artificial, internet das coisas e big data.

Mas os planos não param por aí, já que atualmente o país já tem investido maciçamente em pesquisa e desenvolvimento de chips e semicondutores de 5 e 4 nanômetros, além de estudos para a construção de chips de 3 nanômetros, demonstrando um avanço tecnológico significativo.

“Essa busca pela excelência tecnológica permitiu que a China deixasse de ser vista como um país de ‘cópia e cola’ para se tornar um líder em inovação, desafiando potências consolidadas como Japão, Coreia do Sul e Alemanha”, menciona Eduardo Von Dentz

Além do desenvolvimento tecnológico e econômico, o professor destaca que os planos chineses visam um crescimento que traga benefícios à sua população. Ele comenta como a China conseguiu aumentar a população urbana de 18%, em 1970, para 57%, em 2017, sem causar grandes desequilíbrios sociais.

“Isso é resultado de um planejamento econômico que prioriza a construção de infraestruturas antes da migração das pessoas do campo para a cidade, garantindo que os novos habitantes tenham acesso a moradia, saúde, educação e transporte”, afirma, explicando que essa visão estaria contribuindo para a construção de um país rico e com estado de bem-estar social consolidado. O prazo para alcançar plenamente essa meta é 2049.

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