Já passava das 11 horas da manhã quando Giovanna Falconeri, 24, uma das personagens entrevistadas nesta reportagem, se despedia da equipe do O POVO quando encontrou Jucélia, sua vizinha, na entrada da casa ao lado. O rápido encontro só foi possível graças a uma estrutura cada vez mais escassa nas grandes cidades: as casas de muro baixo.
Esse tipo de residência se tornou comum nas cidades brasileiras durante a segunda metade do século XX, a partir de ideais europeus de arquitetura. Inspiradas nas “Cidades Jardim”, do urbanista inglês
“Havia um ideal de Cidade Jardim que chegou ao País entre o final do século XIX e o início do século XX, com o objetivo de promover essa vida mais próxima da natureza e dos recursos generosos. O clima tropical incentivava a ventilação cruzada, criação de áreas sombreadas… esse muro mais baixo não era apenas um elemento estético, mas uma solução que integrava a casa à rua, ao jardim e à vizinhança”, explica Diego Zaranza, mestre em Arquitetura e Urbanismo e membro do Conselho de Arquitetura e Urbanismo do Ceará (CAU-CE).
Um terceiro objetivo de quem construía essas casas era a aproximação entre os vizinhos. Com o concreto abaixo do olhar, era possível ver quem passava e, para os mais interessados na vida cotidiana, o que ocorre no desenrolar do logradouro.
É o que acontece rotineiramente com Giovanna, moradora do bairro José Bonifácio, em Fortaleza. Entre encontros rápidos com vizinhos, como aquele presenciado pelo O POVO, e o desfrute de xícaras de café junto à irmã e o namorado sob a brisa do fim de tarde, a jornalista conta se sentir mais próxima da vizinhança graças ao muro baixo.
Essa integração pode ser sentida especialmente quando há festas na rua, em especial as do boteco na esquina, quase vizinho à moradia de Giovanna, que dão trilha sonora a encontros com amigos e familiares na entrada da casa.
“Aqui do lado na esquina tem um boteco e no fim de semana tem o samba. Eu fico muito sentada aqui escutando o samba, o brega dia de quarta. Às vezes vem família, amigos e a gente fica lá fora tomando um café e escutando um samba. Sou amiga do pessoal do bar e às vezes vou buscar uma cerveja lá, um petisquinho e trago pra comer aqui ouvindo a música de lá”, conta.
Erguidas no século passado, muitas dessas residências de muro baixo levam popularmente o nome de “casas de vó”. Outras tantas realmente são, já que foram erguidas por antepassados de quem mora atualmente nelas e ficaram como herança da família.
Esse é o caso de um grupo de imóveis no bairro Joaquim Távora, situados um ao lado do outro, e construídos há décadas por proprietários que, em maioria, já não estão mais vivos. A cena chama a atenção de quem passa pela rua, já que entre os muros altos e fachadas de cerâmicas que resguardam o interior até dos olhares de transeuntes, cinco casas se destacam pelo design vintage.
Uma delas pertence à família de Eraldo Júnior, 42, moradores do imóvel há mais de 60 anos. A casa foi comprada ainda pelos bisavós de Eraldo e hoje tem sua fachada mantida, assim como era seis décadas atrás, em homenagem os entes queridos.
“A gente se sente inseguro com tudo o que a gente está vivendo no País, mas a gente procurou colocar grade na porta, que não tinha, tudo gradeado para aumentar a segurança, mas subir o muro a gente nunca pensou não”, conta o compositor.
A sensação de insegurança mencionada por Eraldo é um fator em comum nas conversas com parte dos entrevistados, que mesmo em um cenário de redução dos roubos a residências no Ceará nos últimos anos, ainda não se sentem totalmente resguardados pelos muros baixos.
Outro conceito característico da época dos muros baixos é a menor sensação de insegurança entre os moradores. Anterior à intensificação das disputas entre facções criminosas pelo controle do tráfico de drogas e crescimento de outros índices de violência, a segunda metade do século XX é apontada por especialistas como uma época mais propícia à existência desses modelos de construção.
Para o arquiteto Romeu Duarte Júnior, colunista do O POVO+, a subida dos muros nas grandes cidades brasileiras, como Fortaleza, está diretamente relacionada com a escalada da violência. Por medo de balas perdidas, invasões e até observação do movimento da casa por estranhos, os moradores passaram a crescer as estruturas na entrada da residência para se proteger do perigo que vem de fora.
“Com o passar do tempo as casas transformaram seu programa por causa da insegurança. O muro alto vai ser uma realidade. Parecem muros de penitenciária. Uma situação que a gente costuma chamar de ‘arquitetura do medo’. Uma arquitetura onde as pessoas têm medo do que a rua pode trazer para dentro de casa”, explica o doutor em Arquitetura e Urbanismo e docente da Universidade Federal do Ceará (UFC).
Roubos a residências no Ceará, por ano, entre 2017 e 2023
Com a chegada dos casos de violência a diferentes pontos da cidade, incluindo bairros da área nobre, como Aldeota e Meireles, os muros altos se tornaram comuns à maioria das casas, criando assim, corredores de infinitos paredões, que afastam o privado da vida pública.
Junto à segurança, um maior desejo de privacidade dos proprietários das casas foi outro fator que impulsionou a subida dos muros. Isabela Sousa, 35, mora com a avó em uma casa, anteriormente de muro baixo, no bairro Alto da Balança, e conta ter substituído o muro baixo por uma fachada mais privativa para evitar que tanto a rotina da casa, como quem está presente e em qual horário, pudesse ser acompanhada do lado de fora.
Ela hoje se diz feliz com a escolha que fez para garantir a privacidade e segurança da família. Entretanto, a empresária assume sentir-se mais distante dos vizinhos, que também subiram a frente de suas casas, já que muitos não se veem mais enquanto andam na rua ou se encontram para um café da tarde à sombra do muro baixo.
“Antigamente você dizia ‘oi, tudo bem?’ no muro baixo, conversava… Hoje em dia esse acesso fechado as pessoas têm até receio de bater para saber se tem alguém em casa. Saber se não está incomodando, porque se eu passo e vejo que a pessoa está aqui ‘de bobeira’, facilmente tem esse diálogo. Se o portão está fechado você fica ‘será que está ocupado?’ ‘Será que vou incomodar?’. Nesses ‘serás’ aí você deixa de fazer”, relata.
Naturalmente, se você se isola de algo, este algo também é isolado de você. Em termos práticos, quando uma casa tem sua fachada totalmente coberta por um muro, quem está dentro dela também não vê nada do que acontece lá fora.
Segundo especialistas, isso gera um novo tipo de insegurança, desta vez para quem está na rua, já que se encontra “sozinho” naquele local e sem ninguém à vista para pedir socorro em eventuais situações de perigo.
“Se você cria uma segurança para si com o muro alto, você cria uma insegurança para o cidadão da cidade. Você chega na sua casa pedindo a Deus que o porteiro abra logo o portão porque você pode ser assaltado. A contradição que existe é essa. A segurança existe apenas internamente. Externamente a cidade fica muito perigosa”, pontua o doutor em Arquitetura do Medo, Caetano Aragão.
Em Fortaleza, os muros mais altos (acima de três metros), necessitam de uma licença emitida pela Secretaria Municipal do Urbanismo e Meio Ambiente (Seuma). O documento, entretanto, quase não é solicitado na Capital, já que de acordo com a pasta, apenas um pedido de licenciamento foi feito desde 2022.
Como já citado, as casas de muro baixo se popularizaram no Brasil entre os anos 1970 e 1980. A execução no Brasil foi, assim como muitas outras coisas no País, uma mistura de conhecimentos herdados de diferentes culturas, como a Cidade Jardim britânica, e o modelo de casas suburbanas ajardinadas francês.
Segundo Diego Zaranza, os moradores dessas casas eram em sua maioria membros das classes média e alta da sociedade brasileira na época. Sob a influência desses ideais do Velho Continente, o público buscava uma qualidade de vida melhor, mais integrada à natureza e ao convívio, ao invés dos grandes casarões que os antecederam e eram menos convidativos.
“No momento dessa expansão da área residencial de Fortaleza, que saiu do Centro para ir para o Jacarecanga, aquelas casas maiores, da elite econômica, ela passou a se centrar no Jacarecanga, e depois disso, pela construção de indústrias, ela começou a se expandir para o lado leste da cidade, com Aldeota, Meireles e o próprio Centro”, afirma o arquiteto.
Reflexos do comportamento e das camadas sociais de uma época, muitos desses imóveis são tombados pela Secretaria Municipal da Cultura de Fortaleza (Secultfor), como a Casa do Barão de Camocim, na rua General Sampaio.
O próprio palácio João Brígido, onde hoje funciona a sede da Prefeitura de Fortaleza, tem parte de seu entorno coberto por muros baixos, continuados por gradis, que permitem a visualização do interior do terreno.
O local entretanto, não foi construído nos anos 70, mas sim existe desde o século XIX, tendo sido propriedade de comerciantes, do Império Brasileiro e da Arquidiocese de Fortaleza, até ser comprado pela Prefeitura em 1973.
Para ilustrar essa subida de muros, O POVO utilizou a ferramenta Google Maps para comparar a fachada de imóveis pela cidade ao longo dos anos. Ao todo, foram observadas nove residências, em três ruas da cidade, com imagens entre os anos de 2011 e 2024.