Fortaleza é um apinhado de gente. A maior cidade do Nordeste. Quase sete vezes mais populosa que o segundo maior município do Ceará, Caucaia, impõe-se também rica de berço. Esbanja belezas naturais como um manancial de fauna aquática, terrestre e aérea; de diferentes biomas, de mangue, dunas à caatinga. Tudo sob o sol brilhante cearense.
Imensa e, ainda assim, pequena. É somente o 134º maior município do Ceará em território. Um pedaço de terra que abriga em torno de 2,5 milhões de pessoas. Apinhada e espremida, Fortaleza é a capital com maior densidade demográfica do Brasil. Significa mais pessoas brigando por espaço. Para ser exata, 7,7 mil habitantes disputam cada quilômetro quadrado.
As mil faces de Fortaleza
Os efeitos são inúmeros. Os costumes culturais, econômicos, a relação das pessoas - vindas de todas as partes - umas com as outras e com a natureza (ou os restos dela), as ruas, o patrimônio, variam rapidamente de um lugar para o outro. Cada bairro, por exemplo, vira quase um ecossistema único, totalmente diferente do vizinho.
Como há gente demais para espaço de menos, cada metro quadrado é bastante visado. Os superprédios brigam com comunidades pela vista e o vento da orla. Há movimentos por preservação de dunas, mangues e restingas e gente defendendo construções nelas.
Fortaleza é escura e clara. Lotada e vazia. É tudo ao mesmo tempo
Pedidos por limpeza das ruas, mudanças no fluxo de veículos. Há escuridão em uns pontos e luzes publicitárias cegantes em outros. Abandono extremo ou interferências equivocadas. As demandas variam e, por todo lado, Fortaleza move-se e modifica-se. É efervescente.
É difícil imaginar uma “partilha” disso, mas há, prevista em lei. O Plano Diretor Participativo (PDPFor) determina o básico da política urbana da Capital. Indica zonas de proteção social e ambiental, redistribui espaços vazios, serve de base para projetos de moradia, parques urbanos e promove bem-estar na urbe.
Para quê serve o Plano Diretor. Clique e entenda
Ele visa distribuir o espaço de uma forma justa e agir como um instrumento de redução de desigualdades. Na prática, há conflitos entre os grupos envolvidos, que reivindicam interesses diversos, mas precisam trabalhar em conjunto. É uma ebulição e o caso de Fortaleza revela as tensões que permeiam a elaboração de um instrumento robusto como um Plano Diretor.
Ocorre em meio a divergências e reclamações quanto à escuta popular, além de uma corrida contra o tempo: a elaboração de estudos técnicos enquanto alterações constantes são aprovadas no legislativo. A montagem do Plano tornou-se quase um reflexo da disputa de interesses na partilha de Fortaleza.
A cada dez anos os Planos Diretores precisam ser atualizados, conforme lei federal. Dentre outros motivos, a revisão visa a “verificar o que foi e o que não foi implementado, e definir que ajustes e propostas são necessárias”. No caso de Fortaleza, o PDPFor foi aprovado em 2009. Ou seja, a Capital é regida por uma lei de 16 anos atrás, atrasada desde 2019.
A revisão envolve participação popular, parecer técnico e aprovação do legislativo. Em suma, funciona assim: é montado um Núcleo Gestor, com 30 membros do poder público e 30 da sociedade civil.
Em seguida, a Prefeitura de Fortaleza utiliza o quadro de funcionários ou contrata uma empresa, sob licitação, para conduzir reuniões em territórios, ouvir as demandas, e montar um panorama das propostas apresentadas tanto pela população, quanto pelos técnicos.
O processo de aprovação do Plano Diretor
O resultado vira uma minuta, que deve ser discutida, na Conferência da Cidade do Plano Diretor. Somente depois de aprovada, o texto é encaminhado à Câmara Municipal. Dá-se início ao processo legislativo, que modifica e aprova a versão final da revisão.
Há seis anos este processo está em andamento na Capital: desde o governo de Roberto Cláudio (2013-2020), em 2019. A revisão foi interrompida pela pandemia de Covid-19 e recomeçou do zero em 2023, durante a gestão de José Sarto (PDT). Acabou nunca saindo e, hoje, o PDPFor está nas mãos de um terceiro prefeito: Evandro Leitão (PT).
Linha do tempo da (não) entrega do PDPFor
Em Fortaleza, a gestão Sarto montou o Núcleo Gestor e contratou um consórcio para a montagem do Plano. A empresa realizou reuniões nos territórios e emitiu 11 produtos. Nesses anos, milhões foram investidos, mas nunca sequer chegamos no estágio da minuta para ser discutida.
O que a gestão Evandro recebeu do Plano Diretor. Azul indica o que está em andamento
De modo geral, além da demora, há uma percepção de “sumiço”. Mesmo assim, a Prefeitura reforça a meta de entregar o documento completo até o fim de 2025, conforme prometeu o prefeito Evandro Leitão (PT), pouco depois assumir a gestão.
São diversos pontos de atuação que impactam na revisão e no prazo. A seguir, vamos percorrer as tensões na montagem do novo documento. Para facilitar, dividiremos em três núcleos que, no entanto, se encontram: os moradores e a sociedade, os técnicos do executivo e, por fim, o legislativo.
Um caso explicita bem a relação complexa entre interesses de moradores, apontamentos técnicos e a participação da Câmara na montagem do Plano Diretor de Fortaleza: o imbróglio da Refinaria Lubrificantes e Derivados do Nordeste (Lubnor), no Cais do Porto.
A empresa foi alvo de tentativa de privatização durante o Governo de Jair Bolsonaro (PL). O processo acabou não concluído, uma vez que 30% do terreno pertencia à Prefeitura, que barrou o negócio. Foi uma “luta vencida”.
Três anos depois, em junho de 2025, representantes da Lubnor foram à Comissão Especial — Matérias que Alterem o Plano Diretor (CE-PDDU), da Câmara Municipal, pedir mudança no zoneamento da empresa para que ela não saia do Cais do Porto. A retirada ocorreria em 2027, devido ao selo de “nocivo ao meio ambiente” que o negócio possui.
Técnicos do Instituto de Pesquisa e Planejamento de Fortaleza (Ipplan), como a vice-presidente Lia Parente, indicaram na reunião da Câmara que o empreendimento dificulta a ocupação da Praia do Futuro.
Segundo ela, interrompe “conectores, do transporte, das vias, do caminhar das pessoas, exatamente obstaculizado por essa área que ainda é de uso industrial”. Também foi citada preocupação com a segurança dos moradores e a estranheza de uma refinaria dessas proporções no meio da cidade.
A Câmara teria outra percepção. Questionado, o presidente da CE-PDDU, Benigno Júnior (Republicanos), citou a questão legal.
Refinarias podem sim atuar em Fortaleza, o que não pode são empresas de combustível, diz ele, se referindo à lei estadual de tancagem. O vereador, no entanto, não indicou com todas as letras que a Comissão irá acatar os argumentos da empresa e deixá-la lá.
Isso porque a Petrobrás, dona da Lubnor, alegou que o conjunto dos produtos da empresa a enquadra como “incômoda” ao meio ambiente e não “nociva”. Ainda citaram um programa de descarbonização para substituir o gás natural, fonte da geração de energia, pelo biometano. O projeto só seria possível caso houvesse a permanência no território de Fortaleza.
Nesta ebulição, moradores da região sequer tinham ciência do imbróglio. Quando questionada se sabia da situação da Lubnor, a membro da Comissão Associação Titan, Jamile Souza, perguntou assustada: “É remoção da gente?”.
A pergunta dela expõe duas grandes reclamações de moradores locais: a exclusão das decisões que modificam a região e a luta constante por permanência, do local de trabalho e de moradia. Assim como Jamile, membros do comitê da Petrobrás, moradores que trabalham na empresa e quatro outros líderes da região também não sabiam de nada.
A saída ou não da Lubnor diz respeito diretamente ao Plano Diretor, motivo pelo qual a empresa foi logo à Comissão pedir vista. Em um processo participativo, a população esteve, em princípio, excluída das discussões da empresa de refinaria no âmbito da atualização do documento.
Somente uma semana após contatado, Anailton Fernandes, líder comunitário e membro do comitê de líderes sociais da Petrobras disse que seria realizada uma reunião sobre o zoneamento da empresa.
É importante ressaltar que saídas ou permanências de empresas no Cais do Porto, especialmente nas comunidades locais, envolvem questões muito maiores. A região ao mesmo tempo teme e apoia as empresas.
O medo surge pela falta de regularização fundiária de diversas casas da região, o que intensifica uma disputa por território. Já a esperança vem dos empregos gerados. A relação da comunidade Cais do Porto/Serviluz/Titanzinho é muito próxima dos empreendimentos. São tantos instalados ali que moldaram a configuração social e cultural, para além da economia da região.
O próprio nome da comunidade Serviluz vem da antiga “Serviço de Luz e Força de Fortaleza”, localizada na região. Ela forneceu energia elétrica à Capital até meados dos anos 1960. Mesmo extinta, o nome permaneceu e, ironicamente, até hoje algumas casas da comunidade com problemas de luz e saneamento. Até o Farol, há décadas abandonado e agora em reforma, não acende.
Pelo menos 1.200 empresas estão
Anailton Fernandes, citado mais acima, falou da Lubnor como geradora de “empregos e ajudando a economia local com impostos”. Segundo ele, a “comunidade vê como uma boa empregadora, e não há conversa por aqui sobre desastres ambientais ou impactos graves. Pelo contrário, a galera valoriza os benefícios”.
Outro líder comunitário ouvido, Antônio José - o Dudé, trabalha na Lubnor. Ele é vice-presidente do Conselho Gestor da Zeis Cais do Porto e presidente da Associação Titan.
O representante e Jamile, esposa dele, defenderam a empresa. Disseram ter uma flexibilidade grande com eles e exaltaram os empregos gerados. “Entrei com 21 anos e hoje estou com 50. As coisas que eu conquistei foram com o salário de lá”, disse Dudé.
E completou: “Então, no dia que a Lubnor sair daqui de Fortaleza, do Serviluz, vai ser uma catástrofe para nós, porque, dos que trabalham lá, 90% são moradores”, disse, em meio a um processo de discussão em andamento, do qual não sabiam.
A falta de incentivo pela participação” das comunidades na montagem do PDPFor, na verdade, foi fortemente criticada. No Cais do Porto e Serviluz, por exemplo, seis líderes comunitários falaram com a reportagem.
Citaram as reuniões como bagunçadas: as demandas locais seriam recebidas com projetos já prontos, que ignoravam o solicitado. O mesmo foi confirmado por diversos outros membros de conselhos de
“Parecia uma creche de tanto barulho”, disse Jamile Souza. “A impressão que dava é que você chegou num lugar em que você não entende o que está acontecendo. É como se fosse obrigado a assinar que você teve presente e acabou, para que eles validem o que aconteceu”, comentou Kátia Lima, vice-presidente da Associação Titan.
Os encontros eram marcados em horário próximo ao dos expediente, em locais distantes - não condiziam com a rotina de trabalho dos moradores. Nem todos que queriam, conseguiam comparecer, segundo os relatos. Por fim, ainda que os produtos das reuniões estejam disponíveis no portal do Plano, os moradores disseram não ter acesso a eles: não foram informados de como acessá-lo.
O processo participativo iniciado em 2023, teoricamente, foi encerrado após reuniões nos 39 territórios, ao longo de dois anos. Os encontros foram conduzidos por um consórcio contratado via licitação de R$ 5,8 milhões pela gestão Sarto: o Quanta/Gênesis.
A empresa era responsável pela realização de todas as etapas da revisão do Plano Diretor Participativo de Fortaleza. Guiando isso tudo, estavam as reuniões. A reportagem tentou contato com o Consórcio por meio dos e-mails de contato. Ainda não houve retorno.
A baixa escuta, conforme as pessoas ouvidos, é um problema sempre existente e em seguimento: existia na gestão do ex-prefeito José Sarto (PDT) e segue nas reuniões do atual prefeito de Fortaleza, Evandro Leitão (PT).
A gestão atual, vale ressaltar, ainda não realizou encontros com a população relacionados diretamente ao Plano Diretor. As reclamações dos moradores dizem respeito às ações de secretários nos bairros: nos Fóruns Territoriais.
No dia a dia, os chefes das pastas foram criticados, com relatos de “sumiços” e “saídas, após a foto oficial” ter sido tirada; projetos apresentados sem levar em consideração a opinião popular; baixa escuta. Assim, mesmo não sendo relacionados ao PDPFor, a recepção nos fóruns regulares provocou uma baixa expectativa na comunidade sobre a continuidade do Plano.
“A impressão que a gente tem é de abandono”, disse Kátia Lima, vice-presidente da Associação Titan. “Nós fomos humilhados pela gestão passada. A gente se uniu para mudar a gestão para botar essa que está agora, mas estão seguindo as mesmas regras. A gente esperava que eles sentassem junto conosco e debatessem a comunidade como a gente quer”, completou.
Quando questionados sobre quais os problemas prioritários, os líderes comunitários riram da extensão da lista. Falta de saneamento e rede de esgoto, falta de regularização fundiária, falta de espaços de lazer. Essas questões repetem-se em outras Zonas Prioritárias e serão retomadas e aprofundadas no próximo episódio desta série.
No meio disso tudo, o Plano Diretor flutua, meio inalcançável: onde está?
Segundo a Secretaria de Governo, o contrato com as consultorias estava vinculado a um financiamento do Banco Mundial, encerrado no final de março.
“A continuidade do trabalho técnico ficará a cargo da equipe do Ipplan, juntamente com parceiros oriundos de uma cooperação técnica que está sendo firmada com especialistas de universidades do Ceará. No Executivo”, informou a pasta. Ou seja, o documento está nas mãos do Executivo.
Os técnicos à frente do PDPFor enfrentam o desafio de herdar um projeto iniciado em outra gestão. Mais complexo ainda: gestão opositora à atual e com histórico de desencontro de informações. Na época da transição de governos, por exemplo, a passagem de dados sobre a cidade era reclamação constante nas reuniões.
Pouco após assumir o cargo, o prefeito Evandro Leitão (PT) afirmou ao O POVO+ que partiria “do zero” na atualização do Plano Diretor. A etapa inicial, explicou, seria “conhecer o escopo que foi feito, o compilação de dados”.
A declaração foi ratificada pela Secretaria de Governo ao O POVO+, em junho de 2025. “A atual gestão municipal não recomeça o Plano Diretor do zero”, reforçou a pasta, que está respondendo sobre o PDPFor.
Mais de vinte técnicos, segundo a Segov, compõem um grupo multidisciplinar (GTEC). Os profissionais debruçam-se sobre o material coletado desde 2023, durante a gestão de José Sarto (PDT), opositor de Evandro.
Os profissionais são de diversos órgãos da Prefeitura, como secretarias de Governo e Infraestrutura, além da Defesa Civil e das secretarias de Relações Comunitárias e Regionais. Todas as decisões destes agentes são, também segundo o Governo, previamente aprovadas pelo Núcleo Gestor do Plano Diretor, outro conjunto, responsável por monitorar e coordenar a revisão do documento.
Quem está revisando o Plano Diretor
Esse grupo atua em uma continuidade do processo, segundo a Segov, em respeito aos envolvidos até então, e às “vitórias importantes alcançadas”. Exemplo citado foi a recepção das Unidades de Conservação Estaduais e Municipais, no zoneamento ambiental do Plano.
Apesar disso, a pasta elencou as informações recebidas como “mais dissensos que consensos”. Segundo eles, pontos essenciais não foram atualizados, mesmo após todo o período de atuação do Consórcio Quanta/Gênesis.
Dentre os tópicos, há carências no mapeamento de áreas de riscos ambientais, climáticos e tecnológicos. “É preciso realizar a identificação das novas áreas de riscos e atualização das existentes, com metodologias mais robustas”, elencou a Segov. O processo estaria sendo conduzido pela Defesa Civil.
Faltam ainda ajustes nas poligonais quanto às áreas de Proteção Permanente (APPs) e outras áreas remanescentes; restam definições acerca de demarcações de Zeis tipo 1, 2, 3 e 4; e são necessários ajustes no mapeamento de Zonas de Preservação do Patrimônio Cultural, “para que as edificações e os espaços que a população julgue importante preservar como patrimônio cultural possam receber a devida proteção legal”.
Esses ajustes, especialmente o das áreas de risco, são capazes de modificar por completo o zoneamento feito até então pelo Consórcio. Cenário impossibilita mensurar a porcentagem já finalizada do Plano Diretor. Portanto, o prazo final de entrega do documento também é incerto.
Outros membros do Ipplan, incluindo o titular da pasta, Artur Bruno, foram procurados. A reportagem foi informada que todas as informações serão passadas por meio da Segov.
A Secretaria foi questionada sobre as reclamações, dos moradores, de baixa escuta nos fóruns territoriais. Em resposta, afirmou que “Prefeitura de Fortaleza reitera o seu compromisso com uma gestão participativa e de escuta ativa da população”. A pasta citou justamente os fóruns territoriais e futuras audiências públicas a serem realizadas, estas sim, no âmbito do Plano Diretor.
Também reforçaram que “os doze secretários regionais mantêm uma agenda constante de escuta ativa dos fortalezenses, seja recebendo lideranças e grupos de cidadãos na sede das regionais, seja nas ruas, visitando os bairros e acolhendo as demandas dos territórios”.
Apesar das orientações, a reportagem teve acesso ao prefeito Evandro Leitão. Quando questionado da "baixa escuta", ele comentou ao O POVO do processo realizado pela gestão até então, citando inclusive a Comissão da Câmara, da qual citaremos mais à frente.
Segundo o gestor, em "seis anos já foram feitas diversas escutas espalhadas por toda Fortaleza, inclusive pelas gestões anteriores foram feitas contratações de consultorias justamente para fazer esse trabalho com os territórios de Fortaleza".
E completou: "Porém, nós iremos novamente fazer, a partir de agosto, o trabalho de escuta, para contemplar essas pessoas que ainda não se sentiram contempladas", se referindo às reuniões e audiências públicas, a serem realizados após o parecer técnico inicial. A partir delas, virá a minuta, a ser discutida na Conferência da Cidade.
Ainda sobre o processo participativo, a Segov afirmou que todas as atividades do GTEC, como metodologias, datas de reuniões, dinâmicas de participação social e prazos para envio do material a ser apreciado são previamente aprovadas pelo Núcleo Gestor do Plano Diretor.
Entrevista na íntegra da Prefeitura ao O POVO+
E, nesse ponto, cabe atenção. Todo o processo citado aqui, ainda que criticado, possui uma mínima participação popular e análise técnica. Se concluído em 2025, o PDPFor somará seis anos de discussões intensas, três gestões, duas equipes de profissionais e dezenas de reuniões.
A questão é que a Conferência da Cidade não é a última instância. A Câmara é. E, no Legislativo, tudo pode mudar.
É difícil prever o que pode acontecer quando o Plano Diretor finalmente chegar na Câmara. Tudo pode permanecer igual ou mudar por completo.
O Legislativo tem uma maioria de vereadores aliados ao Governo Municipal. No entanto, historicamente, muitos deles já apresentaram visões divergentes à que defende atual gestão. A chegada do projeto poderá, portanto, provocar tensões e modificações.
Essas expectativas se devem especialmente em relação às áreas ambientais. Enquanto a atual gestão defende priorizar o verde, a Câmara é confusa: mantém histórico de retirada de proteção ambiental, mas já apresentou votações em que seguiu o que sinalizam ambientalistas.
A atenção é tão grande no que a Casa Legislativa representa ao meio ambiente que, via nota, a Segov citou “leis aprovadas sem o processo participativo”, ao comentar sobre as perspectivas ambientais na revisão do Plano. Segundo a Secretaria, se for preciso, essas normas serão “desconsideradas”.
- Trecho de nota da Segov
Fato é que a cada ano em que o Plano Diretor não foi atualizado, os vereadores modificam mais e mais o projeto inicial. Levantamento da Central de Dados do O POVO+ indicou pelo menos 45 sessões nas quais o Plano Diretor é mencionado.
Números se referem somente de 2021 para cá - nas duas últimas gestões. Dessas modificações, um total de 23 Projetos de Lei Complementar (PLCs) visava a reduzir o zoneamento ambiental de áreas de Fortaleza. Do total, nove foram aprovados e outros 11 ainda tramitavam em 2024, ano de apuração do estudo da organização Quintau Coletivo, fonte destes dados.
Somente em 17 de dezembro de 2024, em uma única sessão, a Câmara aprovou a retirada ambiental de 16 áreas verdes de Fortaleza. As zonas foram mapeadas com exclusividade pelo O POVO+.
Mas isso foi no governo passado. A mudança de gestão, de 2024 a 2025, trouxe uma posição pró-meio ambiente da Prefeitura, frisada diversas vezes pelo próprio prefeito Evandro Leitão.
O prefeito chegou a retornar à Câmara projetos considerados “danosos” aprovados pela própria Casa Legislativa. Um deles, referente a uma área verde no bairro Manuel Dias Branco, foi aprovado da Câmara, em uma votação surpreendente: muitos dos vereadores que haviam votado pelo projeto, também foram favoráveis à derrubada dele. Bastou mudar a gestão.
Criou-se, então, uma perspectiva de mudança de posição do Legislativo quanto ao tópico ambiental. No entanto, meses depois, a esperança já estava, de novo, estremecida.
Evandro mandou, em maio, outros vetos da mesma natureza: pedia revogação de leis que derrubavam proteções ambientais. As matérias sumiram. A reportagem percorreu os corredores da Câmara em 17 de junho, um mês após o envio, e ninguém sabia onde estavam.
A vereadora Adriana Gerômino (Psol), membro da Comissão Especial — Matérias que Alterem o Plano Diretor (CE-PDDU) e em comum acordo com o que defendem ambientalistas, descobriu no susto que as matérias se encontravam na comissão em que faz parte. De fato, estão na CE-PDDU. Foram enviadas pelo presidente da CMFor, Leo Couto (PSB), e por lá permaneceram.
Questionado, Benigno Júnior (Republicanos), presidente da Comissão, disse “não ter prazo” para levar as matérias ao Plenário. Ele alegou: “estamos abrindo algumas discussões em relação a ela. Têm ponderações de alguns colegas vereadores, na realidade”.
O vereador também sinalizou a vontade de “realizar visitas nos locais (alvos das leis), para dar um parecer maior desta casa em relação à revogação ou à manutenção (da retirada de proteção)”. Apesar da fala, cabe lembrar que veto de Evandro já é baseado em parecer técnico ambiental.
As modificações seguem em curso. Em meio à escrita desta série, em 25 de junho de 2025, outro projeto de zoneamento ambiental foi enviado à Comissão: uma proposta que diminui proteção ambiental no Parque da Sabiaguaba.
A reportagem procurou o presidente Leo Couto para questionar se matérias que modificam o Plano seguirão pautadas na Câmara, mesmo que o processo de atualização já esteja ocorrendo no Executivo.
Em resposta, o vereador - aliado do prefeito - alegou que “uma das metas de Evandro e da nossa gestão é concluir a revisão de forma responsável, ouvindo a sociedade”.
A Comissão, segundo ele, foi criada “para acompanhar os estudos, identificar pendências e promover debates com a população”. “Quando o planejamento chegar à Câmara, seguiremos a todos os trâmites, inclusive de audiências pública”, alegou o presidente.
Porém, completou que “enquanto isso, os vereadores cumprem seu papel, analisando mudanças pontuais para acompanhar o crescimento da Cidade e proteger suas áreas”.
Assim, retomamos, por exemplo, o caso da Lubnor, citado no início. Se a Câmara quiser, a empresa fica, mesmo que isso divirja pareceres do Ipplan. A Câmara pode decidir seguir com o que a população quer em uma pauta e, na outra, divergir. A perspectiva é de que, até o fim, o plano deverá ser alterado de um lado e de outro, como um cabo de guerra.
O PDPFor dificilmente sairá em 2025. É matemática básica. Assim que o Ipplan finalizar os pareceres técnicos serão realizados oito encontros e audiências públicas para discussão do resultado.
Os encontros começam neste mês de julho e devem conter um espaçamento de quinze dias entre um e outro, conforme orientação do Ministério Público. Totalizariam quatro meses de discussão, ou seja, com o fim em outubro. No entanto, um outro calendário divulgado em meados de junho indica a entrega à Câmara em 2 de dezembro.
Mesmo se fosse em outubro, Benigno Júnior sinalizou a intenção de passar “de dois a três meses” com o projeto na Câmara. Dezembro é mês de recesso, não totaliza os 30 dias. Assim, a não ser que seja atropelado, a versão final do Plano só deve sair em 2026.
Calendário divulgado do Plano
Enquanto isso, o tempo passa. A cidade se expande e transborda para a Região Metropolitana, ao mesmo tempo em que o espaço interno encolhe. As lutas se intensificam, o verde some.
Todos, de uma forma ou de outra, mesmo sem saber, sentem o peso de uma Fortaleza de 2009 imposta à de 2025. Os vereadores mudam e mudam. Atendem a um lado e outro, ouvem cobranças populares e interesses do mercado. Aprovam leis em meio às brechas do atraso.
Os técnicos correm contra o tempo na montagem de mapas que lhe escapam às mãos, tamanha as velocidades de modificação. Milhões sobre a mesa, cobranças de cima.
No entanto, um elo sofre mais: as periferias, sob pressão e temor. Segundo os líderes ouvidos, a expectativa com o documento é apenas uma: ter segurança do teto sobre as cabeças, de um emprego não tão distante e de uma mínima escuta.
“A comunidade não tem bicho. Não tem nenhum monstro não. São pessoas que precisam ser ouvidas e olhadas. É só isso”, afirmou o líder Dudé, em meio ao belo e escanteado Cais do Porto.
O que já foi entregue, pela gestão passada, em termos do Plano Diretor Participativo está disponível em uma plataforma. Basta clicar neste link e conferir os documentos e projetos já discutidos. Também estão disponíveis as atas das reuniões.
Os impactos da quarta maior cidade do Brasil ser regida por uma lei ultrapassada. As demandas que não podem faltar e o que Fortaleza merece em termos de urbanismo e moradia
""Olá! Aqui é Ludmyla Barros, repórter do O POVO+. O que achou da matéria? Te convido a comentar abaixo!""