A herança nativa de uma terra ancestral é sentida na praça verde do Centro Dragão do Mar de Arte e Cultura, em Fortaleza, quando uma grande roda se forma em torno de uma guardiã de encantarias. No centro dela, uma fogueira ilumina o olhar da Mestra Cacique Pequena, que conduz o ritual
Ela canta e dança enquanto o público que lhe escutava atentamente em uma roda de conversa segue o rito, respira o incenso e se conecta com a história dos povos originários que primeiro habitaram este território. No rosto de Maria de Lourdes da Conceição Alves há cultura, história e a expressão de quem enfrentou preconceitos, grandes empresários e agressões à Mãe Terra, como ela chama.
A cena aconteceu em 8 março de 2025, no Dia Internacional da Mulher. Aos 79 anos, a primeira mulher cacique reconhecida no Brasil não falava de si, mas da luta de seu povo. Cinco meses depois, em Brasília, o pedido foi atendido. Em 6 de agosto, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) homologou três Terras Indígenas (TIs) no Ceará: Pitaguary, Tremembé de Queimadas e Lagoa Encantada — aldeia liderada por Pequena desde 1995.
No local sagrado onde o povo Jenipapo-Kanindé tradicionalmente hasteia um tronco de imburana para demarcar seu território, uma estrutura com a identificação da Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai) agora abre caminho para oficializar essa área — cujo processo se arrastava desde 1997.
“É uma luta de mais de 40 anos, porque vem antes de me tornar cacique. Hoje estou muito feliz, porque um sonho está sendo realizado. É o povo que tem a honra de receber o seu território delimitado e reconhecido. Me sinto muito feliz por esses três territórios, mas confio em Deus que não serão só esses, serão todos que vão ter essa benção de receber a terra homologada para viver em paz e sair de tanto sofrimento”, disse a Mestra em entrevista ao O POVO+ enquanto voltava para casa após o Encontro Sesc Povos do Mar.
A agenda cheia (ela acabava de voltar da IV Marcha das Mulheres Indígenas na capital federal) só não é maior que a emoção. “Para mim, é uma alegria muito grande. É uma conquista da luta da minha mãe, que lutou por 30 anos pela causa da nossa mãe terra. E hoje está sendo assinada. Para mim, só alegria e satisfação por nosso rio, no nosso mar, nossa duna, nossa floresta. Só alegria”, comemorou.
A lentidão do processo de demarcação se explica em parte por conta do conflito judicial envolvendo o Grupo Ypióca, que explorava recursos hídricos da Lagoa Encantada para irrigação de plantio de cana de açúcar.
Uma filial ligada ao grupo recorreu judicialmente para anular o processo de demarcação. Em 2017, o Supremo Tribunal de Federal (STF) rejeitou recurso apresentado pela empresa e afirmou a validade do processo de demarcação.
Já no caso da Terra Indígena Tremembé de Queimadas, localizada em Acaraú (CE), a espera para a conclusão do processo de demarcação chegou a 20 anos. Agora, o povo Tremembé espera a regulação de outras duas TIs com processo em andamento: Tremembé de Almofala e Tremembé do Engenho.
Distribuição geográfica das comunidades indígenas no Ceará
Depois de homologadas, a próxima etapa é o registro imobiliário dessas três comunidades. Mas a conquista, embora histórica, ainda não está completa. O
Outros dois povos ainda aguardam a conclusão do processo de identificação de seus territórios: Anacé (Caucaia e São Gonçalo do Amarante) e Mundo Novo/Viração (Monsenhor Tabosa e Tamboril).
Nessa fase são feitos estudos antropológicos, históricos, fundiários, cartográficos e ambientais que fundamentam a identificação de delimitação da área indígena.
Como acontece o processo de demarcação de uma terra indígena?
“O nosso estudo de demarcação iniciou há dois anos. Teve uma parada e agora está retornando. E, se está em estudo, é porque todos sabem que nós existimos, estamos resistindo e precisamos ser ouvidos. Isso precisa ser feito”, afirma Marcelo Anacé, liderança local.
Os moradores convivem há décadas com a pressão do Complexo Industrial e Portuário do Pecém (Cipp) e com remoções em massa. “Já perdi a conta de quantas remoções aconteceram desde a criação do complexo”, relata.
Entre lutas e burocracias, a comunidade agora se depara com um novo problema: o projeto de instalação de um data center do TikTok na região.
Os 10 municípios cearenses com maior proporção de indígenas
Além dos impactos socioambientais que empreendimentos desse porte implicam, a preocupação do povo Anacé é quanto ao uso intensivo de água e energia.
Desde o anúncio, a comunidade tem se mobilizado para denunciar o não cumprimento de seu protocolo de consulta prévia, livre e informada, direito assegurado pela Convenção n° 169 da Organização Internacional do Trabalho, da qual o Brasil é signatário.
O artigo 6° assegura que os povos indígenas devem ser consultados em relação a medidas que possam afetar suas terras, recursos ou modos de vida. A ausência de diálogo transparente e significativo com a comunidade Anacé configura violação direta de suas prerrogativas constitucionais.
Ao assinar as portarias, Lula elogiou a resistência dos povos indígenas diante da lentidão dos processos de demarcação.
"Vocês, com paciência, sofrem, passam necessidade, passam frio, sofrem calor, passam fome e não desistem. É uma coisa que me dá muito orgulho: a capacidade que vocês têm de resistir neste país”, declarou.
A ministra Sônia Guajajara classificou as homologações como “mais um momento histórico e importante da gestão do presidente Lula".
A presidenta da Funai, Joenia Wapichana, defendeu que as políticas indigenistas tenham continuidade. “No seu governo, presidente, avançamos na demarcação e no reconhecimento do papel da Funai.”
Para os povos indígenas do Ceará, essa é mais do que uma vitória burocrática. É o reconhecimento de um direito ancestral, um passo concreto na reparação de séculos de negação e invisibilização. O ato no Palácio do Planalto foi, como definiu a cacica-irê Juliana Alves, “uma conquista dos povos, uma reparação histórica e um marco para o Ceará.”
Ao O POVO, Clécia Pitaguary comemorou o momento. Parte da liderança, ela ressaltou que a assinatura ocorreu não apenas durante a 1ª Conferência Nacional das Mulheres Indígenas, mas próxima a 9 de agosto, Dia Internacional dos Povos Indígenas.
“Para nós é motivo de muita alegria receber esse documento. Não é um presente: é um direito nosso que estava sendo negado há tanto tempo… É dar o que nos pertence, que é o nosso território”, reflete Clécia. “Apesar de todo o sofrimento, da violência que nós sofremos, de tantas vidas que foram perdidas, é motivo de festa, de comemoração — estamos recebendo de volta aquilo que nos foi tirado”.
O sentimento também é compartilhado por Elaine Tremembé, que considera a homologação um dia histórico. “É uma luta ancestral, iniciada por nossos encantados, que já se foram, por nossas lideranças, pelos nossos livros vivos que estão hoje… É uma luta árdua pela demarcação da nossa terra”.
A cerimônia carregada de simbolismo e emoção no Palácio do Planalto marca um novo capítulo na história dos povos indígenas do Nordeste. Com o ato presidencial, são 16 territórios homologados pelo governo federal em todo o Brasil.
Em 2023, com a retomada dos procedimentos demarcatórios, oito territórios foram homologados no País: Arara do Rio Amônia (AC), Acapuri de Cima (AM), Rio Gregório (AC), Kariri-Xocó (AL), Uneiuxi (AM), Rio dos Índios (RS), Tremembé da Barra do Mundaí (CE) e Avá-Canoeiro (GO).
No ano seguinte, em 2024, as TIs Aldeia Velha (BA), Cacique Fontoura (MT), Potiguara de Monte-Mor (PB), Morro dos Cavalos (SC) e Toldo Imbu (SC) foram incluídas.
O presidente Lula reforçou o compromisso com os direitos dos povos indígenas e lembrou que é preciso também a gestão territorial pelos povos indígenas.
“Não é pelo fato de a gente ter reconhecido a terra que está resolvido o problema de vocês [indígenas]. Agora é criar condições para que vocês possam fazer o uso que vocês acham melhor daquela terra e poder continuar criando a família de vocês”, disse.
Depois de quase duas décadas sem grandes avanços, a demarcação de terras indígenas no Ceará deu um salto histórico nos últimos dois anos e meio. Até o começo de agosto de 2025, o Estado contava com apenas duas áreas oficialmente reconhecidas: Córrego João Pereira, em Acaraú, e Tremembé da Barra do Mundaú, em Itapipoca.
Agora, com a homologação de três novos territórios e a previsão de conclusão do processo da Terra Indígena Tapeba ainda neste ano, o número deve chegar a seis.
“É um impacto de permanência, para todo o sempre”, afirma ao O POVO+ João Alfredo, superintendente do Instituto de Desenvolvimento Agrário do Ceará (Idace).
“Essa segurança jurídica é para as gerações atuais e futuras, porque terra indígena é terra da União, terra ancestral.”
Ele lembra que o atraso histórico na regularização foi profundo.
“Até essas três demarcações, nós só tínhamos duas terras. Nós temos 15 etnias reconhecidas pela Fepoince (Federação dos Povos e Organizações Indígenas do Ceará) e só duas áreas demarcadas. Agora passaremos para seis. Isso é um impacto muito grande.”
Durante um evento na comunidade Jenipapo-Kanindé, o superintendente recorda uma fala do governador do Ceará, Elmano de Freitas (PT), que, segundo ele, sintetizou a importância do momento: “Eu posso até perder uma eleição, mas essa terra de vocês, demarcada e homologada, vai ser para sempre”.
O avanço foi possível graças a uma estratégia articulada.
“O processo de demarcação é feito pela Funai, mas nós celebramos um acordo de cooperação técnica com o Idace e a Sepince (Secretaria dos Povos Indígenas do Ceará).”
“Todo o trabalho de campo, de georreferenciamento, de produção de plantas e memorial descritivo foi feito pelo Idace, com recursos do tesouro estadual. A Sepince ajudou na organização e mobilização das comunidades. Se não fosse essa parceria, nós não teríamos essa demarcação”, ressalta.
Ainda assim, a situação não está resolvida para todos. “A briga agora é por mais cinco povos. Algumas terras ainda não têm portaria declaratória e dependem de relatórios antropológicos. No caso dos Tremembé de Almofala, o que está empatando são ações judiciais movidas por grandes empresas”, aponta.
As etnias indígenas no Ceará
O superintendente João Alfredo reforça que o Estado assumiu um compromisso explícito com os povos indígenas e quilombolas.
“Quando o governador nos chamou para o Idace, determinou que, além da regularização fundiária da agricultura familiar, nós trabalhássemos com a questão indígena e quilombola. Criamos um grupo de trabalho interno para acompanhar as questões dos povos e comunidades tradicionais.”
A política também se estende a outros territórios tradicionais. “A questão quilombola nós estamos trabalhando junto com o Incra e a Secretaria da Igualdade Racial. Avançamos muito porque temos um instrumental jurídico forte, como a Lei Wilson Brandão e o decreto que a regulamenta. No caso das comunidades de terreiro, nosso objetivo é preservar também os costumes e tradições”, explica.
Em junho, João Alfredo apresentou essa experiência em São Paulo, a convite da Secretaria de Territórios e Sistemas Produtivos Quilombolas e Tradicionais.
“O que mostramos é que, quando há vontade política, orçamento e articulação entre governos federal e estadual, é possível mudar uma realidade que se arrastava há décadas. Aqui no Ceará, esse trabalho foi feito a seis mãos — governo federal, governo estadual e as próprias comunidades. É essa parceria potente que nos garante o avanço.”
"Oie :) Aqui é Karyne Lane, repórter do OP+. Te convido a deixar sua opinião sobre esse conteúdo lá embaixo, nos comentários. Se preferir, me escreva um e-mail (karyne.lane@opovo.com.br), ficarei feliz de te ler. Até mais!"