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Gestão Sarto é investigada por "papéis da casa" falsos entregues em ano eleitoral
Reportagem Especial

Gestão Sarto é investigada por "papéis da casa" falsos entregues em ano eleitoral

Entrega de mais de 3,6 mil documentos sem valor jurídico expôs famílias a frustrações e levantou suspeitas de favorecimento eleitoral. Caso reforça vulnerabilidade do direito à moradia em Fortaleza e possível uso da habitação popular como moeda política

Gestão Sarto é investigada por "papéis da casa" falsos entregues em ano eleitoral

Entrega de mais de 3,6 mil documentos sem valor jurídico expôs famílias a frustrações e levantou suspeitas de favorecimento eleitoral. Caso reforça vulnerabilidade do direito à moradia em Fortaleza e possível uso da habitação popular como moeda política
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Um dos maiores sonhos das famílias que vivem em comunidades periféricas de Fortaleza voltou ao centro do debate político: o direito à moradia garantido por meio do “papel da casa” — como é chamado o título da propriedade do imóvel.

Uma denúncia anônima feita no auge da campanha eleitoral de 2024 aponta que o então prefeito José Sarto Nogueira (PDT) e o ex-secretário da Secretaria Municipal do Desenvolvimento Habitacional (Habitafor), Carlos Kleber, teriam distribuído mais de 3,6 mil títulos de propriedade sem valor jurídico entre agosto e dezembro daquele ano, em plena corrida pela reeleição.

Ao todo, pelo menos nove comunidades teriam sido afetadas: Dom Lustosa, Planalto Vitória (Canindezinho), Novo Jardim Castelão (Passaré), Jardim América, Francisco Ivo (Luciano Cavalcante), Conjunto Palmeiras II (Palmeiras), Aracapé, Santa Edwirgens (Bonsucesso) e Cidade de Deus (Parque Santa Maria).

Ex-prefeito José Sarto ao lado do ex-titular da Habitafor, Carlos Kleber, na entrega do residencial Lagoa do Papicu 2(Foto: Reprodução/Instagram/Carlos Kleber)
Foto: Reprodução/Instagram/Carlos Kleber Ex-prefeito José Sarto ao lado do ex-titular da Habitafor, Carlos Kleber, na entrega do residencial Lagoa do Papicu 2

O caso foi confirmado pelo Ministério Público do Estado do Ceará (MPCE), que apura as circunstâncias da entrega dos documentos e avalia se houve improbidade administrativa e ato eleitoral irregular.

O episódio deixou milhares de famílias entre a esperança e a frustração, além de acirrar a disputa de narrativas entre a atual gestão e a anterior.

Procurados pela reportagem, o ex-secretário e o ex-prefeito se contradizem: Carlos Kleber fala em títulos parciais (administrativos) entregues, enquanto Sarto menciona certidões finais (cartoriais). Isso gera dúvida sobre o que, de fato, foi entregue às famílias.

Ambos defendem a legalidade dos atos e negam uso político, mas a coincidência temporal com a campanha abre margem para suspeitas — e esse é outro ponto investigado. É possível ler a nota de ambos, na íntegra, no fim da reportagem.

Na época, a vereadora Adriana Gerônimo (Psol) tomou conhecimento da denúncia e levou o caso ao Ministério Público. O assunto voltou à tona em 2025, durante reuniões da revisão do Plano Diretor e na 6ª Conferência Estadual das Cidades. Em vídeo publicado nas redes sociais, ela afirmou:

A vereadora Adriana Gerônimo (Psol) denunciou o caso ao Ministério Público ainda no fim de 2024(Foto: Reprodução/Instagram/Adriana Gerônimo)
Foto: Reprodução/Instagram/Adriana Gerônimo A vereadora Adriana Gerônimo (Psol) denunciou o caso ao Ministério Público ainda no fim de 2024

“Provamos que a gestão do ex-prefeito Sarto entregou o papel da casa falso. Um dos maiores sonhos da nossa população é receber o papel da casa. Imagine aí, você conquistar esse direito e depois descobrir que foi enganado?”

Segundo a parlamentar, a antiga gestão teria entregue os títulos sem qualquer registro cartorial e fora das etapas legais de regularização fundiária. “No desespero eleitoral, a antiga gestão entregou 3.500 papéis da casa falsos. Na época nós denunciamos ao Ministério Público e eu fui acusada de propagar fake news. Vocês acreditam?”, questionou.

Para Adriana, trata-se de um episódio que ultrapassa a irregularidade administrativa. “Quem enganou o povo precisa ser responsabilizado. Quem lutou e sonhou precisa ter sua moradia garantida. Afinal, moradia digna não é promessa de campanha, é direito constitucional.”

Procurado, o Ministério Público informou que o caso é apurado na esfera eleitoral e pelas Promotorias de Justiça de Conflitos Fundiários e Defesa da Habitação de Fortaleza.

A situação chegou via denúncia anônima à 6ª Promotoria de Justiça, que instaurou procedimento administrativo para apurar, inicialmente, irregularidades nos documentos entregues na comunidade Dom Lustosa.

Irregulares porque a legislação federal (Lei nº 13.465/2017, art. 23) estabelece que a validade da legitimação fundiária está condicionada à conclusão do procedimento de Regularização Fundiária Urbana (Reurb), com a emissão da Certidão de Regularização Fundiária (CRF) e posterior registro no cartório de registro de imóveis.

Já a legislação municipal (Lei Complementar Nº 334/2022, arts. 47 e 109) estabelece a aprovação do projeto urbanístico e ambiental pela Secretaria de Urbanismo e Meio Ambiente (Seuma).

É somente depois da conclusão desse processo, conforme portaria à qual O POVO+ teve acesso, que o proprietário tem direito real à propriedade.

 

Etapas da regularização fundiária

 

O foco da apuração estendeu-se para as outras localidades depois que a própria Habitafor, em resposta ao MP, encaminhou uma planilha que revela supostas irregularidades: nenhuma das nove comunidades analisadas possuía CRF emitida e registrada, e somente duas delas tinham aprovação da Seuma.

Com a multiplicidade de denúncias, o procedimento foi desmembrado em diferentes promotorias de conflitos fundiários.

Na esfera eleitoral, a Promotoria da 113ª Zona Eleitoral instaurou procedimento específico e requisitou informações à Prefeitura. O MPCE afirma que todas as apurações estão em andamento e são públicas.

 

Saiba onde fica cada comunidade

 

Em nota à reportagem, a Secretaria do Desenvolvimento Habitacional (Habitafor), já sob nova gestão, confirmou que a administração anterior distribuiu 3.646 “títulos de legitimação fundiária” sem validade jurídica.

A pasta destacou que o material foi entregue entre agosto e dezembro de 2024, “na véspera e durante o período de campanha eleitoral”, atingindo as nove comunidades citadas.

Segundo o atual titular da Habitafor, secretário Jonas Dezidoro, todos os processos foram retomados e tramitam com prioridade, respeitando os ritos legais.

As supostas irregularidades no processo de regularização fundiária nos últimos meses da gestão Sarto têm a ver com a entrega de títulos de legitimação fundiária individual. O documento é validado após a emissão da Certidão de Regularização Fundiária (CRF) e o registro em cartório, etapa final para que a moradia tenha uma matrícula definitiva, com validade jurídica(Foto: Reprodução/Instagram/Carlos Kleber)
Foto: Reprodução/Instagram/Carlos Kleber As supostas irregularidades no processo de regularização fundiária nos últimos meses da gestão Sarto têm a ver com a entrega de títulos de legitimação fundiária individual. O documento é validado após a emissão da Certidão de Regularização Fundiária (CRF) e o registro em cartório, etapa final para que a moradia tenha uma matrícula definitiva, com validade jurídica

O título de legitimação fundiária é apenas a primeira etapa do processo de regularização. Ele não é a matrícula, que é o verdadeiro papel da casa. O que aconteceu foi que esses títulos foram entregues em eventos, com todo o aparato de solenidade, como se fossem matrículas. E não eram”, esclareceu.

“Quando descobrimos, ficamos assustados. Isso gera descrédito para a Habitafor, que agora está fazendo um esforço enorme para retomar a confiança das pessoas. A nossa prioridade é acelerar os processos e garantir que essas famílias recebam a matrícula, que dá a verdadeira segurança jurídica”, disse Dezidoro.

De acordo com o secretário, o título de legitimação fundiária apenas comprova que a família está cadastrada em um processo de regularização, mas não confere propriedade.

Jonas Dezidoro, secretário titular da Habitafor(Foto: AURÉLIO ALVES)
Foto: AURÉLIO ALVES Jonas Dezidoro, secretário titular da Habitafor

Já a matrícula registrada em cartório garante plenos direitos: vender, transferir, registrar herança ou usar o imóvel como garantia em empréstimos.

“O papel da casa garante que aquele bem é daquela pessoa. Sem a matrícula, o imóvel continua irregular. Muitas famílias descobriram isso quando tentaram usar o documento em bancos e cartórios e ouviram: ‘Isso não vale’”, relatou.

Em casos como o do conjunto Francisco Ivo, a atual gestão conseguiu entregar as matrículas oficiais em junho de 2025, em evento realizado em parceria com o Tribunal de Justiça do Estado do Ceará (TJCE).

A diarista Irisneide Cândido, 52 anos, foi uma das moradoras que teve o imóvel regularizado. Ao relembrar o dia em que finalmente recebeu o papel da casa, dona Iris se emociona.

“Foi um dia de muita alegria. Teve muita gente presente. Eu até brinquei que aquele era meu presente do Dia dos Namorados, porque saiu no meu nome. Para mim, foi uma vitória, uma segurança para minha família. Guardo o documento como um tesouro, porque sei o quanto lutei para ter minha casa”, conta.

Sua casa começou a ser erguida ainda com muito sacrifício, no terreno que era da sogra, construída tijolo por tijolo, muitas vezes com materiais comprados em cheques pré-datados.

“Eu queria ter a minha casa, criar minhas filhas no meu canto. Hoje, quando alguém fala que minha cozinha é pequena, eu digo: é minha, eu não pago aluguel, fui eu que fiz”, resume.

Mas o caminho até essa conquista foi marcado por frustrações: reuniões com promessas não cumpridas, tentativas frustradas de conseguir a escritura e até a sensação de ter sido enganada em processos anteriores — um sentimento que, para ela, é comum na comunidade.

“Era promessa atrás de promessa, a gente já não acreditava mais. Dessa vez deu certo, eu recebi o meu papel das mãos do prefeito (Evandro Leitão). Acho que ele não ia se sujar com uma coisa dessas, brincar com uma coisa tão séria na frente de tanta gente.”

Atualmente, a Habitafor estima que cerca de 45 mil famílias em 130 comunidades de Fortaleza aguardam a regularização fundiária de suas casas.

O levantamento está em atualização, mas já aponta a dimensão do desafio.

Registro compartilhado nas redes sociais do ex-secretário Carlos Kleber mostra a entrega de mais de mil "papéis da casa" para moradores do bairro Conjunto Palmeiras(Foto: Reprodução/Instagram/Carlos Kleber)
Foto: Reprodução/Instagram/Carlos Kleber Registro compartilhado nas redes sociais do ex-secretário Carlos Kleber mostra a entrega de mais de mil "papéis da casa" para moradores do bairro Conjunto Palmeiras

Questionado sobre o fato de os documentos sem valor jurídico terem sido entregues durante o período eleitoral, o atual secretário da Habitafor, Jonas Dezidoro, preferiu não se aprofundar:

“Isso cabe à Justiça e ao Ministério Público avaliar. O que posso dizer é que lamento muito que isso tenha acontecido, especialmente em um período tão sensível. Nossa missão agora é garantir que todas as famílias recebam o verdadeiro papel da casa.”

A Procuradoria Geral do Município (PGM) analisa o caso para definir eventuais medidas jurídicas contra os ex-gestores.

Contatado, o ex-secretário Carlos Kleber rebateu as acusações e afirmou que não houve fraude. Ele sustenta que os títulos entregues faziam parte do processo legal de regularização fundiária e não podem ser classificados como falsos.

Em um documento de cinco páginas, o ex-secretário detalhou seu trabalho à frente da Habitafor e a atuação da pasta na execução de projetos e programas habitacionais na Capital. Leia a nota na íntegra no fim da reportagem.

“Isto posto, afasta qualquer narrativa de que os títulos são falsos, o que efetivamente não são. Trata-se de documentos dotados de legalidade e legitimidade dentro de um procedimento de Reurb”, declara.

Para Kleber, os documentos entregues tinham caráter de reconhecimento administrativo e serviam para garantir que as famílias permanecessem cadastradas, evitando disputas de posse.

Ele comparou o processo à compra de um imóvel: primeiro ocorre o contrato de compra e venda, depois a escritura e, por fim, o registro em cartório. “Ou seja, não há fraude. Não há ilegalidade.”

O ex-secretário Carlos Kleber fez várias publicações em seu perfil nas redes sociais durante o período de entrega dos chamados "papéis da casa"(Foto: Reprodução/Instagram/Carlos Kleber)
Foto: Reprodução/Instagram/Carlos Kleber O ex-secretário Carlos Kleber fez várias publicações em seu perfil nas redes sociais durante o período de entrega dos chamados "papéis da casa"

Questionado sobre o período eleitoral, o ex-secretário argumentou que as entregas ocorreram em 2023 e 2024 como parte de um programa iniciado em 2022, sem conotação político-partidária.

Já o ex-prefeito de Fortaleza, José Sarto, classificou como “irresponsáveis e inverídicas” as declarações de que teria havido fraude. “Além disso, demonstram total despreparo e falta de conhecimento sobre as políticas de regularização fundiária”, diz, em nota.

Ele afirma que sua gestão cumpriu rigorosamente a legislação e avançou na política de habitação ao instaurar a Regularização Fundiária Urbana de Interesse Social (Reurb-S).

Sarto ressalta que a emissão das Certidões de Regularização Fundiária (CRF) representou o último ato da Prefeitura no processo, antes do registro em cartório. 

“Todas as ações realizadas pela gestão cumpriram estritamente o que diz a Constituição e visaram à garantia jurídica da população mais carente, assim como avanços sociais e o combate às desigualdades”, declarou.

Para comunidades que aguardam há décadas a regularização de suas casas, o “papel da casa” é a materialização de um sonho e a garantia de permanecer no território onde construíram sua vida.

A confirmação de que parte desses documentos não tem valor jurídico acende um alerta sobre o possível uso político de políticas públicas, especialmente em setores sensíveis como habitação. O desfecho dependerá do andamento das investigações do Ministério Público e da Justiça.

 

 

Leia, na íntegra, as notas de José Sarto e Carlos Kleber

 

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