As cidades pulsam como um organismo vivo em permanente metamorfose. No noroeste de Fortaleza, um bairro espelha esse movimento. Do antigo Monte Picuí ao atual Presidente Kennedy, sua história é escrita pelas marcas da transformação.
Nas entranhas da movimentada avenida Sargento Hermínio Sampaio, entre os quase cinco quilômetros percorridos, as paisagens ao redor escancaram uma desigualdade urbana acentuada pelo processo de alteração demográfica da região.
Onde fica o Presidente Kennedy?
Ao todo, 22.685 habitantes dividem 1,71 quilômetros quadrados de território, conforme dados do Instituto de Pesquisa e Planejamento de Fortaleza (Ipplan). Uma densidade populacional que revela, em cada esquina, as contradições do espaço em evolução.
De polo industrial a reduto de lojas, shoppings, supermercados, academias e uma gama variada de serviços e residenciais, o bairro vem chamando a atenção de imobiliárias, investidores e pesquisadores.
O setor empresarial – seja grande ou pequeno – defende que as mudanças vêm sendo positivas. Moradores das alas mais precarizadas do bairro, no entanto, denunciam desamparo e expulsões sistemáticas indiretas.
A formação do bairro Presidente Kennedy está intrinsecamente ligada ao desenvolvimento industrial e à política habitacional voltada para a classe operária durante o período da Ditadura Militar. É o que explica a arquiteta e colunista do O POVO+, Laura Rios.
O espaço que hoje corresponde ao bairro começou a ser ocupado em meados de 1950 por migrantes do Interior que buscavam trabalho nas grandes fábricas instaladas na região e na atual avenida Francisco Sá.
Para abrigar os operários retirantes que se instalavam nas proximidades industriais, o Plano Nacional de Habitação do Ministério do Interior, com fundos do Banco Nacional de Habitação (BNH), construiu o primeiro Conjunto Habitacional de Fortaleza.
Nomeado de Presidente Castelo Branco, a obra das 380 unidades foi entregue durante o governo de Plácido Aderaldo Castelo (1966-1971). Construído em fileiras de ruas largas de barro, a região era composta majoritariamente de áreas verdes e alagadiços.
Quando foi transformado em bairro, passou a chamar-se Monte Picuí, onde funcionaram o primeiro telefone público e o primeiro posto de correio. Em 1963, com o assassinato de John F. Kennedy, então presidente dos Estados Unidos, o bairro foi renomeado em sua homenagem, reforçando simbolicamente a união entre o regime militar brasileiro e o país norte-americano.
Até 1961, no entanto, não constavam em mapas da Cidade quaisquer referências aos nomes Monte Picuí ou Presidente Kennedy. No espaço em que hoje corresponde ao bairro, encontrava-se uma área chamada alagadiço, conforme publicado no site Fortaleza em Fotos, assinado pela socióloga Fátima Garcia.
Residente do bairro desde 1978, Aguinaldo José Aguiar, membro do Movimento Pro-Parque Rachel de Queiroz, trabalhou em uma das fábricas que antes ocupavam o que hoje podemos chamar de área central.
Sempre morando em casas alugadas, ele viveu em pelo menos dez residências do Presidente Kennedy, por isso, acompanhou de perto os capítulos de uma história cheia de incertezas e expulsões.
Ele relata que, antes, os maiores terrenos da região pertenciam a três empresas. A fábrica de fios e algodão chamada Fiação Nordeste do Brasil (Finobrasa) – pertencente ao Grupo Vicunha – tinha a maior proporção, com 162.362,3 metros quadrados, aproximadamente 22 campos de futebol.
E a segunda maior parte, hoje ocupada por um shopping RioMar e residenciais de alto padrão, pertencia a outras duas empresas: a Esplanord (fábrica e galpões) e uma vila de operária dos funcionários da fábrica Tomaz Pompeu. Ambas somando 140.526,34 metros quadrados, aproximadamente 19 campos de futebol.
As fábricas que chegaram como uma tentativa do regime de descentralizar a industrialização do Brasil foram embora devido a um processo de desindustrialização que o País experimentou a partir da década de 1990, no governo de Fernando Henrique Cardoso. Começava assim um dos muitos processo de mudança da região.
A Esplanada Confecções do Nordeste (Esplanord), do Grupo Deib Otoch, fechou as portas após uma cisão do grupo que atualmente atua em outras áreas, como imobiliária e financeira. Já a Tomaz Pompeu, como explica o morador Aguinaldo José, decretou falência e desocupou os empregados da vila.
Também residente do bairro Presidente Kennedy durante 35 anos, a coordenadora pedagógica Rita de Cássia Costa atualmente trabalha em um colégio particular da região. Ela relata que, por volta dos anos 2004, a fábrica do Grupo Vicunha fechou as portas, e nada funcionou no terreno durante quase 20 anos.
Após esse período o terreno foi vendido e hoje está sendo ocupado por diferentes empreendimentos. Já os terrenos do Grupo Deib Otoch e Tomaz Pompeu ficaram desocupados até 2014, quando foram adquiridos pelo Grupo JCPM, donos dos shoppings RioMar.
Em uma visita ao bairro com a equipe do O POVO+, Rita conta que poucas casas do antigo conjunto Presidente Castelo Branco permaneceram. Com o tempo o bairro foi sendo expandido pelos próprios moradores por meio da autoconstrução.
Investimentos em revitalização, como a do Parque Liner Raquel de Queiroz, elevaram a qualidade de vida na região. “Antes esse pedaço pertencia a um caseiro, depois ele foi embora e o terreno ficou abandonado, cheio de mato. Era tenebroso, parecia cenário de filme de terror. Não tinha segurança nenhuma”, comenta a pedagoga.
Para Rita, a transformação do parque em um espaço de convivência trouxe vida para a população, mas também uma preocupação com a valorização excessiva dos espaços.
Ela teme que, como observado em outros bairros de Fortaleza, a população mais vulnerável do Presidente Kennedy acabe sendo “empurrada” para as margens.
Patriolino Dias de Sousa, presidente do Sindicato da Indústria da Construção Civil do Ceará (Sinduscon-CE), diz que expulsões são uma preocupação legítima, mas o que vem sendo observado é “uma dinâmica mais de integração do que de expulsão”.
“Muitos moradores locais têm aproveitado a valorização para investir ou melhorar seu padrão habitacional. O setor da construção civil defende que o crescimento seja inclusivo, com projetos que atendam diferentes faixas de renda, de modo a preservar a diversidade social do bairro”, comenta.
Ele avalia que o Presidente Kennedy está se tornando um novo polo de crescimento e verticalização na Cidade e os investimentos e o aumento expressivo no volume de empreendimentos lançados, especialmente voltados à habitação, tornam o bairro uma das regiões mais promissoras de Fortaleza.
A localização estratégica, a proximidade com áreas centrais e bem conectadas pela malha viária, são atrativos importantes, explica Patriolino. “Somam-se a isso os avanços na infraestrutura urbana, a valorização imobiliária crescente e a alta demanda por moradia de qualidade, sobretudo da classe média”, completa.
Fernando Amorim, diretor regional da incorporação da construtora Moura Dubeux, uma das principais investidoras na região, comenta ao O POVO+ que a escolha do bairro está diretamente ligada à capacidade de transformação.
Ele analisa que, com a chegada de novos empreendimentos e investimentos em infraestrutura, o bairro passou a ser considerado um dos principais vetores de desenvolvimento.
“A proximidade de polos comerciais importantes, como o RioMar Kennedy e o North Shopping, somada às obras de urbanização e à implantação do Parque Rachel de Queiroz, fortaleceu ainda mais a atratividade da área, elevando o padrão de vida e estimulando a valorização imobiliária”, comenta.
Ao pensarmos em um bairro, é natural imaginarmos uma realidade homogênea. Tendemos a ver bairros ricos como espaços de riqueza e bairros pobres como espaços de pobreza. Na prática, no entanto, um mesmo bairro pode abrigar diferentes realidades socioeconômicas.
É o que demonstra Ingrid Gomes da Silva, doutoranda em Geografia pela Universidade Estadual do Ceará (Uece), em seu estudo As múltiplas faces da diferença: difusão das desigualdades socioespaciais no bairro Presidente Kennedy.
“É possível perceber que coexistem áreas com alta concentração de renda e infraestrutura moderna, ao lado de porções marcadas por vulnerabilidade social e carência de serviços básicos”, comenta.
Ela explica que as mudanças na região trouxeram avanços, mas também abriram espaço para novas desigualdades. O bairro se tornou um retrato vivo de como o crescimento das cidades, guiado pelo capital, reforça diferenças, cria barreiras e deixa muita gente de fora.
Para entender esse processo, Ingrid debruçou-se, ao longo de oito anos (entre 2010 e 2017), sobre dados de renda e desenvolvimento da região, acompanhando de perto as transformações que espalharam desigualdades socioespaciais pelo território.
Na pesquisa, ela mapeia os principais sinais dessas distorções: desde a renda mensal das famílias até a má distribuição da infraestrutura, passando pelas diferenças no zoneamento urbano e até pela quantidade de moradores por domicílio.
Os dados coletados por Ingrid permitiram que ela identificasse subdivisões internas do bairro que não são percebidas pelo zoneamento oficial do Plano Diretor Participativo de Fortaleza (2009), atualmente em revisão.
Ingrid propõe que o bairro seja estudado pelo Poder publico por uma ótica que o divide em três subregiões:
A doutoranda explica que a divisão oficial do Plano Diretor estabelece apenas duas grandes zonas —
A ZOP 1 é caracterizada por ser a porção mais consolidada e de maior valorização no bairro, especialmente na porção leste.
Já a ZRU 1, em contraste com a ZOP 1, apresenta um perfil de infraestrutura menos favorável, com poucos serviços e comércios."
“Na prática, ela homogeneíza áreas que apresentam realidades socioeconômicas e urbanísticas bastante distintas. Essa limitação pode dificultar a formulação de políticas públicas, já que intervenções planejadas de modo uniforme acabam não respondendo às necessidades específicas de cada porção do território”, completa.
Ingrid defende que compreender as desigualdades internas é fundamental para que ações de infraestrutura, habitação e serviços sejam mais eficazes e cheguem, de fato, às áreas que mais precisam.
Para a arquiteta Laura Rios, colunista do O POVO+, é importante notar que a guinada na qualidade de vida no bairro veio, não devido aos empreendimentos privados, mas aos investimentos em requalificação.
“Quando falamos em habitação, não se trata apenas do direito de ter uma casa. É também o direito de ter transporte público, saneamento, escola e hospital por perto. Morar em um local valorizado significa, inevitavelmente, cuidar também do entorno.”
Por isso, quando um bairro recebe um parque para convivência e atividades físicas, quando as avenidas ganham sinalização e ciclofaixas, e quando escolas, hospitais e serviços de qualidade são inaugurados, a região tende a se desenvolver com rapidez.
No cenário observado no Presidente Kennedy, em que uma área recebe mais investimentos e se desenvolve mais rápido, é responsabilidade do Poder Público proteger a população de baixa renda. O desafio é garantir que esses moradores permaneçam e também usufruam da qualificação que chega ao território.
Laura explica que a principal ferramenta para conter a especulação e evitar expulsões é a criação das Zonas Especiais de Interesse Social (Zeis).
Essas medidas, previstas nos planos diretores (como o de Fortaleza), devem refletir um equilíbrio constante entre os interesses do mercado — que busca a máxima valorização — e do poder público — que deve priorizar a proteção social.
O urbanismo, em sua forma ideal, deve levar qualidade de vida a toda a cidade, garantindo parques, serviços e escolas sem expulsar a população original. No entanto, a lógica de mercado atua apenas onde há valorização ou potencial de elitização, reforçando padrões de segregação que ainda marcam o espaço urbano.