No Ceará do início do século XX, as recorrentes secas não eram apenas fenômenos naturais devastadores, eram catalisadores de profundas transformações sociais e urbanas.
Esse processo acabou criando uma realidade histórica pouco conhecida: a criação de campos de concentração para os "flagelados da seca".
Oficialmente, esses espaços foram apresentados como centros de amparo humanitário, mas, na prática, serviram a um propósito complexo e controverso: controlar e disciplinar as massas de migrantes que buscavam refúgio na Capital.
Obrigados a se desconectar de seu território, da sua família e dos últimos resquícios de dignidade, os retirantes se amontoavam em assentamentos precários enquanto forneciam mão de obra barata para o projeto de modernização de Fortaleza.
Para muitos sertanejos, o prometido auxílio se traduziu em um aprisionamento, um "curral do governo", como era pejorativamente chamado pelos próprios confinados.
A necessidade de gerenciar o fluxo migratório em tempos de estiagem não era nova. A seca de 1877 já havia provocado um êxodo massivo de aproximadamente 110 mil pessoas do Interior para Fortaleza, levando à formação de "abarracamentos" improvisados na periferia.
Esses locais logo se tornaram palcos de miséria e epidemias, como a varíola. Rodolfo Teófilo chegou a registrar que "a peste e a fome matam mais de 400 por dia".
A elite fortalezense, então imersa em uma idealizada belle époque, via a chegada desses famintos com desconfiança e medo indisfarçados, clamando por medidas que protegessem a cidade de saques, violência, caos, sujeira e doenças.
Diante da ameaça de repetição da catástrofe de 1877, a seca de 1915 levou o governo cearense, sob o coronel Benjamin Liberato Barroso, a instituir o primeiro campo de concentração do Ceará.
Localizado no Alagadiço (atual bairro Otávio Bonfim), esse campo tinha o objetivo de conter a multidão de retirantes que chegava, especialmente pela via férrea, evitando que "vagassem pela capital, ampliando cenários de pobreza", como dizia uma matéria do periódico O Nordeste, de 1932.
Na literatura a situação foi eternizada no romance O Quinze (1930), de Rachel de Queiroz, que retratou vividamente essa realidade, onde mais de 8 mil retirantes foram confinados.
Apesar das promessas, as condições eram insalubres, com alimentação insuficiente e surtos de doenças, resultando em muitas mortes. A mão de obra desses flagelados foi então utilizada em obras públicas e melhorias urbanas.
A seca de 1932 marcou a retomada e ampliação dessa controversa política. Em meio à instabilidade política do governo de Getúlio Vargas, o influxo de migrantes para Fortaleza intensificou o pânico entre as elites.
O jornal O Nordeste (17/2/1932) anunciava: "Os famintos estão chegando até Fortaleza. Trens são assaltados e agora os chefes de comboios já não impedem a vinda dos flagelados para a capital".
Já o Correio do Ceará (6/4/1932) usava "terminologia bélica", descrevendo "o exército sinistro dos esfomeados marchando pelas estradas em demanda de Fortaleza", evidenciando como a mídia "alimentava sentimentos de medo".
Sete campos de concentração foram construídos estrategicamente: cinco no Interior (Crato/Buriti, Quixeramobim, Senador Pompeu/Patu, Cariús e Ipu) e dois na própria capital, Fortaleza: Matadouro e Urubu.
A localização próxima às estações ferroviárias era crucial, transformando o trem, um facilitador da migração, em um instrumento de controle.
A escritora Rachel de Queiroz (1910–2003), no romance O Quinze, descreve o espaço como um curral com uma infinidade de gente
"A estação ferroviária funciona como uma antessala do Campo de Concentração, facilitando o acesso, sem circulação pelas ruas das cidades", aponta o historiador e professor aposentado da Universidade Federal do Ceará, Frederico de Castro Neves.
As estatísticas oficiais indicam que esses campos abrigaram um total de 73.918 refugiados climáticos.
No entanto, a realidade por vezes superava as previsões: campos projetados para 2 mil pessoas chegavam a conter 18 mil, e o campo do Buriti (Crato) chegou a abrigar até 65 mil pessoas. No Campo do Urubu, foram alojadas cerca de 6 mil.
Onde ficavam os campos de concentração em Fortaleza?
O discurso oficial do governo era de "socorro eficiente" e proteção da "saúde e tranquilidade públicas". Contudo, por trás disso, havia um projeto de disciplinar os retirantes, levando-lhes, em certa medida, a ordem e a moral que também a cidade dos ricos queria para si.
A utilização da mão de obra flagelada, "quase gratuita", impulsionou o desenvolvimento urbano de Fortaleza, com obras justificadas como "combate à seca", mas alinhadas ao desejo de progresso da cidade.
Equipamentos públicos como a Santa Casa de Misericórdia, no Centro; o Hospital Psiquiátrico São Vicente de Paulo, na Parangaba, e a Igreja de Nossa Senhora das Dores, no Otávio Bonfim, foram construídos pelas mãos dos retirantes da seca, como registram documentos no Arquivo Público do Ceará.
Apesar do rigoroso controle, os flagelados não eram meros pacientes. Kênia Rios, pesquisadora e professora do Departamento de História da Universidade Federal do Ceará destaca que o dia a dia nesses lugares indica que os flagelados confrontavam-se frequentemente com o poder que pretendia ditar as normas de convivência nos Campos.
“As regras eram estritas, visando o disciplinamento e civilização. Havia divisão de pavilhões para controlar a moralidade. Regras de higiene, como o uso de sabão e o corte de cabelo masculino, causavam recorrente insubordinação”, aponta a historiadora.
Na edição de 26 de abril de 1932, O POVO registrou também o tratamento degradante a que os refugiados da seca eram submetidos.
“Tivemos impressão má da forma por que um guarda, na dispensa, distribuindo arroz às mães de família, para os seus filhinhos, tratava as mulheres. Um ar de má vontade, tom áspero, termos ríspidos e grosseiros. A uma dessas pobres a quem deveria dar uma xícara de arroz cru, declarou que ela vinha pela segunda vez. A pobre senhora, entre lágrimas, justificava-se. Deveria ser alguma outra parecida com ela. Era a primeira vez que vinha. Não conseguiu convencer, porém, o homem e lá saiu chorosa”, registrou o periódico.
Os conflitos entre uma elite condescendente e uma massa de migrantes acostumada a outro modo de viver se mostravam fortes em muitas situações.
O assistencialismo e preconceito misturavam-se e os migrantes passaram a ser uma coisa só: flagelados.
Uma massa, amorfa, decrépita e miserável que nada se assemelhava ao ideal de modernidade, progresso e civilidade que Fortaleza buscava importar do exterior. Assim, muitas das interações entre as autoridades e os refugiados se davam de forma autoritária.
Uma das maiores resistências era à medicina. O então ministro da Viação e Obras Públicas, José Américo de Almeida, declarou certa vez: "A vacinação contra o tifo e a disenteria era obrigatória, mas para vacinar era preciso até amarrar os flagelados".
Essa postura gerava medo e levava a atos de insubordinação, como esconder as crianças para que não fossem vacinadas, por vezes embrulhando-as em lençóis para que parecessem um amontoado de panos velhos, mesmo que estivessem com doenças como o sarampo.
Os médicos e sanitaristas descreviam frequentemente a resistência dos sertanejos com termos como "terrorismo plebeu" e consideravam os "flagelados" como "ignorantes sem solução", aponta a historiadora Kênia Rios.
E mesmo quando cediam à pressão, o pouco caso seguia. Na mesma edição do O POVO que foi relatada a agressão à mãe que buscava arroz, a reportagem mencionou o que aconteceu com dois refugiados.
“Já estávamos para sair do campo e nos deparamos em companhia dos doutores Pelon e Campos Júnior, quando se aproximou o dr João Mota com três flagelados. Aqueles três homens, com o organismo reagindo às vacinas, estavam febris desde a véspera. O sargento não havia consentido que eles armassem as redes, e dormiram no chão. Os homens continuavam com a fisionomia quebrada, proibidos de armar as redes. O Dr Pelon mandou, então, que o médico atestasse por escrito o estado dos pobres sertanejos, declarando que eles precisavam de repouso. O fato nos revoltou.”
A fome também levava a tensões. Para os camponeses, pegar alimentos da terra alheia, como frutas ou galinhas, não era crime, mas uma forma de sobrevivência.
Contudo, para as autoridades, era furto, e muitos foram presos por isso. A distribuição de comida era um momento crítico de controle, com "um feitor para cada 50 chefes de família" para impor disciplina.
Na edição de 28 de abril de 1932, uma matéria do O POVO criticava a "postura" de alguns "flagelados robustos" que “se recusaram a trabalhar", classificando-os como adeptos da malandragem e exigindo repressão adequada.
Confira registros do O POVO sobre a vida nos Campos de Concentração da Seca
Kênia Rios lembra que nesse contexto, de forma chocante, os campos de concentração de Fortaleza chegaram a integrar o roteiro turístico da "Noiva do Sol".
Visitantes de outros estados, como os que chegaram em junho de 1932 no Navio Almirante Jaceguai, eram levados a esses locais para um "mostruário dos efeitos da seca".
Diante dos "tipos exóticos devidamente enjaulados", os turistas deixavam doações, como os "cinco contos de réis" no Campo do Urubu, um gesto que tentava amenizavar a imagem trágica do sofrimento dos pobres em nome da caridade. A miséria se transformava em espetáculo para os excursionistas.
Com as primeiras chuvas de 1933, a justificativa para a manutenção dos campos desapareceu, e uma campanha nos jornais pela sua dissolução ganhou força.
Discutiu-se até o "reaproveitamento desses espaços", com a sugestão de transformar o Campo do Urubu em um "abrigo para os mendigos de toda sorte que andam pedinchando diariamente pelas ruas de Fortaleza".
Entretanto, muitos retirantes não retornaram ao Sertão. Em vez disso, fixaram-se na Capital, contribuindo para a expansão da periferia e o surgimento de grandes favelas, como o Pirambu, que se tornou a maior da cidade, com estudos assinalando os anos de 1932/33 como marcos de sua expansão.
Apesar de sua importância para a história da urbanização e das relações de poder na cidade, a existência desses campos de concentração cearenses tem sido "quase desconhecida e escassamente documentada", "relegada ao esquecimento" em Fortaleza.
Embora o Campo do Patu, em Senador Pompeu, tenha sido oficialmente tombado como patrimônio histórico-cultural em 2019 e recebido reconhecimento estadual em 2022, na Capital, a ausência de vestígios físicos contribui para esse silenciamento.
Recentemente, esforços têm sido feitos para resgatar essa memória, como a inauguração de um monumento no Otávio Bonfim, marcando um dos antigos campos.
A saga dos campos de concentração é um lembrete do custo social do "progresso" e da "modernização".
"O apagamento e não-reconhecimento destes espaços refletem também a perpetuação de uma narrativa hegemônica e o apagamento das vozes e experiências de populações em condições subalternas, apesar destes serem os protagonistas responsáveis pela construção do Brasil Moderno", ressalta a arquiteta e pesquisadora Laura Belik, que produziu um estudo sobre a relação das dinâmicas da seca com as cidades.
Hoje é possível perceber como a "indústria da seca" utilizou os recursos destinados ao socorro dos flagelados para obras de infraestrutura que beneficiavam as elites, refletindo como as necessidades climáticas e as ambições econômico-políticas sempre se entrelaçaram, moldando a paisagem e a sociedade de Fortaleza de maneira duradoura e, por vezes, cruel.
Para entender mais do tema