Observada pela imagem de Tia Simoa, libertadora dos escravizados no Ceará, a pescadora quilombola Cleomar Ribeiro de Rocha, 49, esfregou os olhos. "Parece que para nós é tão repetitivo isso. Porque tá constante essa narração, mas igual a luta é constante. É nossa luta diária.”
Não é a primeira vez da presidente da Associação do Quilombo do Cumbe, de Aracati (CE), frente a uma repórter para falar sobre os impactos do parque eólico na comunidade. Não é nem mesmo a primeira vez no dia que aborda o assunto: tinha acabado de falar em um evento promovido pela ONG Aquasis sobre educação ambiental.
Estamos no pátio da associação, sob o olhar de Tia Simoa e do Dragão do Mar; o sol do começo da tarde é forte e o vento corre consistente, marcas de um Nordeste de puro potencial energético.
Conosco, a pescadora Luciana dos Santos, 44, e o pescador Ronaldo Gonzaga da Silva, 43, ambos membros da Associação do Quilombo do Cumbe. Antes de ligar o rec do gravador no celular, carros identificados com a marca da Petrobras passam levantando poeira e viram o assunto dos cochichos. Eles suspeitam que a empresa está pesquisando a possibilidade de abrir fossos para explorar petróleo na região, parte da Margem Equatorial. “Toda vez que eu vejo um carro da Petrobras eu me arrupio”, confessa Cleomar.
A Petrobras informou ao O POVO+ que “não há no momento nenhuma atividade em execução no município de Aracati (CE) relacionada com a atividade de pesquisa exploratória da Petrobras na Margem Equatorial”. Apesar disso, o medo da comunidade demonstra o histórico de relações tensas e de desconfiança com grandes empreendimentos que prometem desenvolvimento, mas que em geral resultam em impactos socioambientais, por vezes, irreversíveis. “Cada empreendimento vem para mostrar um grande crime”, resume Luciana.
Muito antes da chegada das eólicas, a comunidade enfrentou os baques da privatização da água pela Companhia de Água e Esgoto do Ceará (Cagece) e dos viveiros de criação de camarão, as carciniculturas.
O primeiro grande empreendimento a chegar ao quilombo foi a estação da Cagece. As dunas funcionam como um grande aquífero, provendo água para a formação de lagoas naturais e para o uso das famílias. “Metade da minha vivência foi na Lagoa do Murici”, relembra Cleomar, apontando para uma rasa lagoa no horizonte, enquanto passeamos pelas dunas ocupadas por aerogeradores. “A minha família e eu vivia de pescaria, de lazer… Era uma coisa dos deuses, a lagoa limpa, grandona. Uma natureza perfeita.”
A abundância era tamanha que a comunidade por vezes enfrentava inundações na época das chuvas. Quando a Cagece chegou, o cenário mudou, e a água antes distribuída entre lagoas fundas desviou-se para a usina de tratamento. “Ali perto da Cagece, eu achava assim tipo um Pantanal. Tinha até vitória régia. Era muito alagada, com uma vegetação muito alagada. A gente pescava muito, o papai levava a gente pra viver o território, o que a gente chamava de comer no mato.”
"Aí privatizou a água, ela virou mercadoria”, diz a pescadora. “A água hoje é muito cara."
E então veio a carcinicultura nos anos 1990, ocupando as áreas de manguezal, ecossistema sensível e também parte essencial do Quilombo do Cumbe de maioria pescador e marisqueira. Os viveiros de camarão dependem de enormes tanques artificiais, cheios com a água salobra dos mangues, e do uso do metabissulfito de sódio.
“Na carcinicultura, o metabissulfito de sódio é usado para evitar a ocorrência de manchas pretas no camarão logo após a despesca, onde os animais são sacrificados por choque térmico em solução de água, gelo e metabissulfito de sódio, sendo esta normalmente descartada no corpo receptor”, explica artigo do Instituto de Ciências do Mar (Labomar) da Universidade Federal do Ceará (UFC).
Pelos padrões de segurança ambiental, a água contaminada com o composto químico deveria ser despejada em uma bacia de decantação. Quando o composto estivesse separado, a água poderia ser reutilizada. Segundo Ronaldo, não era isso que acontecia: a água era despejada no mangue, ocasionando alta mortandade de caranguejos por dois anos consecutivos.
“Como não tinha mais caranguejo, eu fui trabalhar na carcinicultura”, afirma Ronaldo, atestando que testemunhou a cena irregular diversas vezes. A devastação assoreou as camboas, transformando-as em lamaçais. “Tirou alimento, acesso, prática de camboa… Povoados acabaram, como o Ubaeira, no pé da Duna do Cemitério”, lamenta Luciana. “Eles usaram logo as áreas que a gente tinha mais relação. E nem donos nós somos, nós somos cuidadores.”
Os pescadores dizem que as casas tremiam quando os caminhões carregando as pás das eólicas passavam pela rua. Cada pá pode alcançar os 80 metros: é surpreendente mesmo para os acostumados à visão delas, figuras brancas intermináveis passando pelas janelas. Dizem que a capela da comunidade rachou e caiu pela procissão de equipamentos, e depois foi consertada pela CPFL Renováveis em acordo com a comunidade.
O ano era 2008. O Cumbe foi uma das primeiras comunidades cearenses a receber os parques eólicos, em uma época em que o termo transição energética era sinônimo de diversificação de matriz para evitar apagões, não de combate à crise climática. “Nós fomos uma das primeiras comunidades a questionar a transição limpa”, explicam os pescadores.
“Em 2010, 2011, finalizaram a construção. Foi o inferno na nossa vida”, diz Cleomar. Por se posicionarem contra a instalação das eólicas, eles relatam terem sofrido ameaças por telefone e denunciam a elaboração de plano de sequestro do líder quilombola e ambientalista João do Cumbe, que em 2010 é inserido no Programa Nacional de Proteção aos Defensores de Direitos Humanos (PPDDH) da Secretaria de Proteção Social, Justiça, Cidadania, Mulheres e Direitos Humanos (SPS) do Ceará. “Chamaram a comunidade de terroristas, baderneiros. Foi um adoecimento mental muito grande”, afirma Luciana.
João do Cumbe já recebia ameaças desde os anos 1990 pela luta contra as carciniculturas. De acordo com Cleomar, o grupo denunciou ao Ministério Público do Ceará (MPCE) os crimes socioambientais cometidos pelos empreendimentos, mas não necessariamente as ameaças recebidas individualmente por eles. Mesmo assim, a relevância do nome de João do Cumbe e os ataques sofridos por ele foram suficientes para alertar e acionar o PPDDH.
“A gente foi vaiado na audiência pública (em maio de 2008)”, relembra Cleomar. “O empreendimento ia chegando e a gente não foi chamado para uma reunião sequer. E aí quando a gente questionou, de uma hora para outra montaram uma audiência pública dentro da comunidade, mas fizeram toda uma mobilização ao redor, junto com a prefeitura, dizendo o quanto esse parque era bom, porque ia trazer emprego”, narram os três.
Desde então, criou-se uma rixa entre a comunidade. “Então as pessoas que estavam lá para questionar sobre tudo isso eles não deixavam nem falar. Começavam a vaiar”, diz Ronaldo. Outro problema com a eólica veio da ausência do Estudo de Impacto Ambiental e do Relatório de Impacto Ambiental (EIA/RIMA) para o licenciamento dela, pois a empresa teria dividido o território em três terrenos menores para conseguir uma autorização ambiental simplificada.
De acordo com o advogado Rárisson Sampaio, pesquisador sobre salvaguardas socioambientais na transição energética, essa é uma tática comum entre empresas de energia solar e eólica para contornar o licenciamento ambiental. “A princípio, essa simplificação legal era para incentivar a expansão da energia renovável”, comenta. “Mas os impactos não conseguem ser absorvidos de maneira simplificada. No Ceará, a duna tem que ter EIA/RIMA, e deveriam ser considerados os impactos cumulativos. O Ceará já se atentou a isso”, informa o especialista.
“Outro problema quando envolve comunidades tradicionais é a aplicação da Convenção 169, que define consulta livre, prévia e informada dessas pessoas. Isso não está sendo aplicado”, continua o advogado.
Em nota enviada ao O POVO+, a CPFL Renováveis informa que os estudos do local foram submetidos à análise do órgão ambiental competente, “o qual emitiu a licença de implantação e operação com as condicionantes de monitoramento de impacto, as quais a empresa segue rigorosamente”.
“É importante destacar que diversas ações e projetos sociais implementados pela CPFL Renováveis na comunidade do Cumbe em Aracati/CE ao longo dos últimos anos”, diz a empresa. “Entre eles, a construção do Museu Arqueológico e Comunitário, para permitir o repatriamento de vestígios arqueológicos da região” — a empresa refere-se a cerca de 41 mil peças indígenas de 12 mil anos, que chegaram a ser enviadas ao Rio Grande do Norte e depois devolvidas para o acervo do museu, quando criado. O museu está temporariamente fechado.
“Também parcerias com importantes instituições como o Serviço Nacional de Aprendizagem Comercial (Senac), destacando os projetos recentes como a capacitação profissional, com o objetivo de fortalecer a mão de obra local e, consequentemente, aumentar a participação local no mercado de trabalho, onde foram ofertados diversos cursos para a população local como culinária e corte/costura”, continua a nota.
Para a Associação do Quilombo do Cumbe, nenhuma das medidas é reparadora e estão aquém dos impactos socioambientais, entre eles: mortandade de aves, alteração dos fluxo geoecológicos das dunas, impacto nas lagoas naturais e a restrição de acesso às praias e à Duna do Cemitério.
Licenciamento ambiental (Estadual)
São os órgãos ambientais estaduais que licenciam as empresas. No CE, é a Superintendência Estadual do Meio Ambiente (Semace). A depender do tamanho dos empreendimentos ou do enquadramento de poluição (impacto) deles, os licenciamentos podem ser simplificados, quando dispensa-se o Estudo de Impacto Ambiental (EIA) e elabora-se um Relatório Ambiental Simplificado (RAS).
Licenciamento ambiental (Federal)
Já para empreendimentos que pretendem ocupar espaços federais, como é o caso das eólicas offshore, ou atingem mais de um estado, a responsabilidade recai sobre o Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama).
Outorga
A outorga é um ato de autorização, processo técnico conduzido pela Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel), que irá receber e analisar os requerimentos para geração de energia elétrica a partir de diferentes fontes e providenciar o registro e a instrução processual para a concessão ou autorização dos empreendimentos, conforme o tipo e a potência instalada.
A CPFL Renováveis assegura que “o acesso aos moradores do Cumbe é permitido livremente na região”. “Hoje o que existe é uma portaria na estrada principal de acesso, que fornece orientações sobre segurança aos turistas que frequentam o local. Por questões de segurança da própria comunidade, as únicas áreas cercadas compreendem a subestação de energia e o escritório operacional”, explica em nota.
Os moradores, por outro lado, afirmam que são vigiados e precisam comprovar a identidade para transitar nas dunas, além de solicitar autorização antecipada para a visitação do cemitério da comunidade. Cleomar, Luciana e Ronaldo admitem ter medo de caminhar sozinhos pelo território.
“Transição energética justa acontece pensando em nós, humanos, e no meio ambiente. Nós somos natureza também”, define Cleomar. “Era para ter as compensações…. A eólica queria dar aula de educação ambiental para a gente”, ironiza. “Nós queremos participação em tudo, e que o impacto seja claro. Eles podiam aprender com os erros deles e amenizar, não de forma violenta e criminosa.”
O medo próximo é o das eólicas offshore, modalidade na qual o aerogerador fica em alto-mar, com potencial de produção de energia muito maior pela intensidade dos ventos. No Ceará, as offshore ainda são um sonho, liderando no Nordeste com 25 projetos no litoral, ao lado do Rio Grande do Norte, com 27.
Elas já existem, localizadas principalmente na Europa e na China,
Enquanto na Europa o solo marítimo tem relativamente pouca vida, por aqui há diversos ecossistemas com ampla biodiversidade, em especial aqueles que atuam como berçários marinhos — por exemplo, os recifes de corais e de rodolitos —, mas que ainda carecem de mais dados. “Isso é um fator de preocupação e de risco muito grande. Pode ter uma coisa nova que a gente simplesmente não conhece. E os investidores vão precisar financiar pesquisa para averiguar isso”, comenta.
Por isso, tudo o que sabemos sobre impactos de eólicas offshore não traduzem adequadamente a dimensão desses empreendimentos no Ceará. Se a instalação de grandes torres fixas de aerogeradores na Europa é menos drástica, no Brasil ela é um distúrbio físico e sonoro para todas as formas de vida que habitam o mar brasileiro.
Além disso, o Brasil possui pescadores artesanais, uma categoria praticamente inexistente na Europa, cuja pesca é industrial. “Isso é um ponto muito importante. Os pescadores artesanais são embarcações à vela para o trajeto. E no Brasil existe um apagão de dados sobre pesca e as rotas desses pescadores”, diz Marcelo.
A única maneira de reduzir estes impactos é financiar a pesquisa científica marinha para garantir a construção de um Planejamento Espacial Marinho (PEM) que ordene o mar e indique quais regiões podem receber eólicas offshore sem grandes impactos socioambientais. Nesse sentido, o Ceará é beneficiado pela ampla base de instituições com algum laboratório voltado para estes estudos, seja na UFC, no Instituto Federal do Ceará (IFCE) e na Universidade Estadual do Ceará (Uece).
Com os dados, será possível dimensionar o quão drástica é uma offshore no Ceará; no Mar do Norte da Europa, sabe-se que as eólicas em alto-mar impactam diretamente pássaros e mamíferos marinhos, peixes e invertebrados. “São distúrbios biológicos, como morte, afastamento e migração. Vale lembrar que, na água, o som se propaga quatro vezes mais rápido que no ar”, reforça Marcelo.
A escolha da localização dos aerogeradores fixos pode ser benéfica para a criação de ecossistemas artificiais, mas também pode ser desastrosa. “Se eu coloco a torre em um lugar de areia, pode até ser bom, porque gera um recife artificial”, hipotetiza o biólogo. “Tem gente pensando em consorciar essas eólicas offshore com outras atividades econômicas, como o cultivo de alimentos e a criação de ecossistemas para capturar carbono.”
“Mas se eu coloco perto de um ambiente natural, ele vai atrair os peixes para as torres. Será que os pescadores vão poder pescar nessas áreas? São perguntas que precisamos fazer, porque a gente pode acabar cometendo os mesmos erros que tivemos com as eólicas terrestres”, finaliza.
Do ponto de vista do professor, o Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama) tem feito um bom trabalho na análise ambiental dos projetos, aguardado mais dados para aprovar ou não os empreendimentos.
Enquanto os empreendedores e os cientistas tentam encontrar respostas e soluções, às comunidades costeiras resta o medo e a preocupação cultivados por extensas relações de conflito com os empreendimentos. “As praias do Nordeste precisam ser invadidas por energia eólica?”, questiona a pescadora Cleomar. Em pendente, a resposta.
Nesta série de reportagens especiais, O POVO+ explora a transição energética no Brasil, Nordeste e Ceará a partir dos potenciais climáticos e econômicos e, principalmente, a partir das tensões socioambientais na implementação de matrizes energéticas renováveis