O ano era 2014. Representantes locais na Série B do Campeonato Brasileiro, Ceará e Icasa terminaram a campanha de forma melancólica — com o time do Cariri sendo rebaixado. Uma divisão abaixo, o Fortaleza deixou escapar mais um acesso de forma traumática. Na Série D, o campeão nacional Guarany de Sobral não conseguiu ir adiante.
Sete temporadas depois, o futebol cearense vive realidade oposta. No atípico 2021, com calendário de competições iniciado em fevereiro, as duas maiores forças do Estado estarão novamente na elite nacional, respaldados pelo protagonismo regional, e outras cinco equipes se dividirão entre as Séries C e D — número recorde de times no Campeonato Brasileiro.
A metamorfose de Vovô e Leão não foi simples. Exigiu postura disruptiva, pés no chão, jogo de cintura, planejamento e ousadia para se desvencilhar das décadas de gestões amadoras — na acepção da palavra, de fazer por amor —, com doações e benesses de caciques políticos, para alçar administrações profissionais, com organogramas internos bem definidos, dirigentes remunerados e perfil técnico como balizador dos cargos.
"Eu vejo como consequência de uma gestão mais responsável e profissional. Se a gente for observar, é uma característica que vem determinando o crescimento de alguns clubes no Brasil. Em um aspecto mais amplo, a partir já dos anos 1990, o Athletico-PR é o clube que talvez mais tenha evoluído: sempre disputando competição internacional, raramente com risco de rebaixamento, com estrutura muito qualificada em centro de treinamento e estádio. E isso a gente vê também no Bahia e em Ceará e Fortaleza, que têm gestões profissionais, profissionais capacitados nos seus quadros técnicos", opina Pedro Henriques, ex-vice-presidente e ex-diretor executivo do Bahia.
Para ele, a estabilidade política é ponto de centralidade no crescimento. "Esses clubes vêm sendo geridos em uma mesma linha de trabalho já há algum tempo. O Fortaleza teve também o benefício de manter um treinador por muito tempo (Rogério Ceni), o Ceará não teve isso, mas, para mim, é um dos clubes que cresce de forma mais consistente na Região", complementa.
O Alvinegro deu os primeiros passos a partir de 2008, sob a presidência de Evandro Leitão. O clube de Porangabuçu passou a renegociar e quitar dívidas de todas as naturezas para reduzir o passivo — e ganhar fôlego para investimentos. Emendou um tetracampeonato estadual de 2011 a 2014 e conquistou a Copa do Nordeste em 2015. Já com Robinson de Castro, após escapar da queda para a Terceira Divisão de maneira histórica, conseguiu retornar à Série A, repetiu o título invicto do Nordestão e garantiu presença na Copa Sul-Americana de 2021.
O Tricolor de Aço demorou a seguir os passos do arquirrival para entrar nos trilhos devido aos anos na Série C, com parcas receitas, mas achou o rumo a partir de 2015. Foi bicampeão estadual, subiu para a Segunda Divisão em 2017, conseguiu o primeiro título nacional no ano seguinte (Série B), ganhou a Copa do Nordeste e fez a melhor campanha no Brasileirão em 2019, chegando a uma inédita competição continental no ano passado. A temporada que se encerrou neste mês não foi tão gloriosa, mas assegurou permanência na elite outra vez.
O poderio financeiro e o novo status no mercado da bola proporcionados pela presença na Primeira Divisão contribuem, mas não são os únicos fatores para o sucesso esportivo de Ceará e Fortaleza. O critério mais apurado para contratação de jogadores, o trabalho a médio e longo prazo de técnicos e a ambição por voos maiores galgaram as equipes ao novo patamar. Além disso, o sucesso do vizinho também gera a pressão natural por evolução.
"Ceará e Fortaleza me parecem ser o mais próximo do que a gente tem na região com Grêmio e Internacional. Se fala de 'gangorra Gre-Nal' em Porto Alegre e aqui tem essa gangorra de Ceará e Fortaleza, com um puxando o outro para cima: um ganha a Copa do Nordeste, o outro ganha também; um sobe para a Primeira Divisão, o outro sobe também; um fica entre os dez na Primeira Divisão, o outro está lutando para ficar também... Tem uma hora que deixar de ser coincidência, é justamente um puxando o outro", avalia o jornalista Cassio Zirpoli, do Podcast 45 e autor do Blog do Cassio Zirpoli.
O Leão do Pici contou com a colaboração de Rogério Ceni, que passou quase três temporadas consecutivas no clube — interrompidas pelas saídas para Cruzeiro-MG e Flamengo-RJ. Além de títulos e campanhas históricas, participou de forma ativa da reforma do Alcides Santos, que passou de estádio para Centro de Excelência, e levou a marca do clube a exposição nacional e internacional. Os primeiros passos após as traumáticas despedidas foram cambaleantes, mas o Tricolor quer provar que consegue caminhar com as próprias pernas.
O Vovô, por sua vez, parece ter feito o caminho inverso. Conviveu com troca de técnicos e contratações aos montes nos dois primeiros anos na elite, em que escapou do rebaixamento nos momentos finais — primeiro com Lisca, depois com Argel. Em 2020, resolveu investir em contratações, mesclou jovens de potencial com atletas tarimbados e viu o trabalho de Guto Ferreira fluir com sucesso - mais uma taça para a galeria e retorno a um torneio internacional após dez anos.
Os holofotes do protagonismo estão voltados para os arquirrivais da Capital, mas as conquistas foram compartilhadas por outros clubes também — um título e um vice-campeonato nacionais, além do renascimento de forças tradicionais. O desempenho, inclusive, renderá nova posição à Federação Cearense de Futebol (FCF) no ranking nacional, que se tornará a mais bem classificada entre as nordestinas. Não à toa, Ferroviário, Floresta, Atlético Cearense, Caucaia e Guarany de Sobral representarão o Estado nas Terceira e Quarta Divisões na nova temporada.
O Tubarão conseguiu voltar a ser destaque em 2017, quando chegou à final do Campeonato Cearense. No ano seguinte, conquistou a Série D do Campeonato Brasileiro e se manteve na divisão acima nos anos seguintes. O time coral ainda conseguiu o bicampeonato da Taça Fares Lopes no período. O clube da Barra do Ceará também adotou novo estilo de gestão e passou a quitar dívidas.
Com modelo de clube-empresa, em razão do aporte financeiro do patrocinador, o Floresta despontou no cenário local e passou a ter presença constante no cenário nacional a partir de 2019. Na temporada passada, o Lobo da Vila Manoel Sátiro foi rebaixado para a Segunda Divisão do Estadual, mas conseguiu reagir e foi vice-campeão da Série D, alcançando o inédito acesso.
O Caucaia fez boas campanhas nas divisões inferiores e na Taça Fares Lopes e chegou à elite do futebol do Ceará — apesar da ameaça de desistência, disputará as competições de 2021. O Atlético-CE tenta se manter firme entre as principais equipes do Estadual, enquanto o Guarany de Sobral quer voltar aos tempos de glória da última década.
Outro clube tradicional, o Icasa renasceu da crise — financeira e esportiva — e dá sinais de uma retomada consistente. O Verdão do Cariri venceu a Série B do Campeonato Cearense e foi vice-campeão da Taça Fares Lopes. Sem a almejada vaga na Copa do Brasil deste ano, o desafio será fazer boa campanha no retorno à elite do Estadual para tentar garantir presença na Quarta Divisão nacional.
Série de reportagens põe em campo a trajetória dos dois principais clubes cearenses, Ceará e Fortaleza, rumo à elite do campeonato brasileiro