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Crescimento de Fortaleza "extravasa" para cidades vizinhas
Reportagem Seriada

Crescimento de Fortaleza "extravasa" para cidades vizinhas

Nas proximidades das eleições municipais, professora de Arquitetura e Urbanismo defende a garantia de infraestrutura básica para as populações periféricas e mais vulneráveis como interesse de toda a cidade, desde o aspecto ambiental até para a segurança pública

Crescimento de Fortaleza "extravasa" para cidades vizinhas

Nas proximidades das eleições municipais, professora de Arquitetura e Urbanismo defende a garantia de infraestrutura básica para as populações periféricas e mais vulneráveis como interesse de toda a cidade, desde o aspecto ambiental até para a segurança pública
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Fortaleza parou de crescer. Aliás, segundo o Censo 2022, a população até diminuiu um pouco, algo que não ocorria nas estatísticas desde o fim do século XIX. Porém, a professora Clarissa Freitas explica que essa estabilização só ocorreu nos marcos dos limites formais da cidade. Na prática, a dinâmica urbana da Capital "invade" municípios vizinhos, em diversas direções.

Clarissa conta que é como se Fortaleza empurrasse para municípios vizinhos uma parte de sua periferia, por exemplo para Caucaia e Maracanaú. E também uma parte de sua área mais rica, para Eusébio e Aquiraz, por exemplo. Esses territórios são parte da dinâmica urbana de Fortaleza, na economia, nos transportes, na demanda por equipamentos públicos e privados. Mas, a população não entra na conta.

Esse extravasamento não ocorre porque falta terra, explica Clarissa. Porém, essa terra ficou cara demais para as pessoas pagarem. Então, deslocam-se para municípios vizinhos.

Com a população e a dinâmica urbana, Fortaleza também exporta problemas. Porém, com os prefeitos com responsabilidade sobre os próprios territórios, o arranjo institucional dificulta a solução.

Clarissa Freitas atuou no Ministério das Cidades, no primeiro governo Lula(Foto: FCO FONTENELE)
Foto: FCO FONTENELE Clarissa Freitas atuou no Ministério das Cidades, no primeiro governo Lula

Clarissa Freitas é de Fortaleza. Formou-se em arquitetura e urbanismo na Universidade Federal do Ceará (UFC). Fez mestrado em Planejamento Urbano e Regional na University of Illinois at Urbana Champaign. Fez doutorado em Arquitetura e Urbanismo na Universidade de Brasília (UnB). No então recém-criado Ministério das Cidades, de 2003 a 2006, fez parte da equipe do Habitar Brasil BID.

Em 2009, retornou ao curso em que se formou para dar aula no mesmo lugar. Atualmente ministra as disciplinas de Planejamento da Paisagem. Planejamento Urbano 2 e Projeto Urbanístico.

Estudiosa da cidade, preocupa-se com conflitos invisíveis para a maioria. Ela aponta a necessidade de garantir infraestrutura para as populações em condições mais vulneráveis de moradia como um interesse de toda a cidade, do ponto de vista ambiental, da qualidade de vida e inclusive da segurança pública.

Em época de eleições para prefeitos, demonstra decepção com o debate urbano travado. Mas, celebra as pequenas vitórias na periferia pelo direito à moradia. E afirma a crença de que a cidade pode ser melhor como uma necessidade para quem tem a missão de formar, e inspirar, os futuros profissionais do urbanismo. "Dizem que a esperança é preta e é mulher", acredita. 

 

 

O POVO - O Censo de 2022 mostrou uma redução da população de Fortaleza, a primeira desde o século XX. O que significa esse momento de estabilização, após tanto tempo de uma expansão urbana tão intensa? E qual o desafio do poder público?

Clarissa Freitas - Fortaleza tem uma especificidade, é uma das poucas capitais que não tem zona rural. O município de Fortaleza não tem zona rural. Então, quando a gente diz que a população urbana se estabilizou, é do município de Fortaleza. Mas, da cidade, como a gente entende, a gente vai aqui para para Jurema, em Caucaia, para Maracanaú, para o Eusébio. Eusébio muitas vezes é vendido como um bairro de Fortaleza. Mas não está dentro dessa conta (da população de Fortaleza). E esses bairros que têm crescido, tanto para o lado oeste e leste, a meu ver, em termos de dinâmica urbana, ainda estariam na conta.

Então, eu não posso dizer que a cidade estabilizou. O que estabilizou populacionalmente foi esse município central, que, de fato, é uma poligonal relativamente pequena. E esse processo de estabilizar, eu não atribuo nem ao fato de que falta terra. Ainda tem muito lote vazio, muita terra vazia. Mas ao fato de essa terra ter ficado tão cara que as pessoas estão se movendo dessa área central mais valorizada para os municípios periféricos.

OP - Quando a senhora fala da dinâmica urbana, refere-se a esse processo, que se intensificou, de muita gente de Fortaleza que vive em Eusébio, Caucaia, Maracanaú e outros municípios também? Uma dinâmica urbana de Fortaleza que se ampliou?

Clarissa - Isso, a gente diz que é metropolitana, porque a extravasou o limite administrativo.

OP - Chega a ser processo de conurbação (união informal do espaço urbano de duas cidades)?

Clarissa - É as duas coisas. Tem a conurbação, porque o centro de Caucaia, por exemplo, ele existia, mas era separado de Fortaleza. E com o advento daqueles loteamentos na Jurema, Potira, conurbou que a gente diz que é uma coisa só, não tem mais o limite claro. E em outras regiões não conurbou, realmente extravasou. A vida urbana ultrapassou os limites do município.

OP - Isso tem consequências políticas.

Clarissa - Para as eleições, isso tem uma implicação. O prefeito de Fortaleza atua só dentro do limite. O prefeito de Maracanaú atua dentro desse limite, o prefeito de Caucaia. E fica aquela população, que trabalha e usa mais um município, desassistida porque tem uma identidade muito maior com um do que com o outro. Era importante que a gente tivesse uma política metropolitana integrada de planejamento e isso a gente ainda está muito aquém de conseguir.

OP - Mesmo com esse extravasamento, das décadas de 1940 a 1980, Fortaleza teve crescimento de mais de 50% da população em cada década. Na década de 1950 chegou a crescer 90%. Qual o impacto desse processo de expansão urbana? E qual o desafio agora que essa expansão não tem mais essa dimensão?

Clarissa - Fortaleza teve um rápido incremento populacional, advindo da migração da zona rural. Foi um pouco mais tardio. Nas cidades do Nordeste foi depois do que foi em Rio de Janeiro e São Paulo. Mas foi com a mesma intensidade. Não tenho os números na cabeça, mas acho que na década de 1970, 1980, percentualmente aqui estava crescendo mais, nesta região do país estava crescendo mais do que o Sul e Sudeste. Independentemente de ser tardio ou não, de fato não tinha estrutura para essas pessoas e a estrutura que se conseguiu colocar era inacessível financeiramente para quem vinha.

Essa grande população imigrante vinha em busca de oportunidade, ela não tinha poder aquisitivo nenhum. Na década de 1960 e 1970, a Prefeitura aprovou um monte de loteamentos, de construção de lotes e abertura de vias, mas sem que o loteador colocasse a infraestrutura. Esses lotes, muitos ainda estão vazios. Os outros foram ocupados por um perfil de renda maior.

A cidade foi preparada para quem podia pagar e quem chegava era majoritariamente quem não podia pagar. É um movimento meio clássico das cidades periféricas no mundo, um pouco diferente do que foi o processo de urbanização em Europa e Estados Unidos, que já é um processo onde se conseguiu minimamente ter um Estado de bem-estar social para colocar a população de baixa renda — que era menor, obviamente — em conjuntos habitacionais, uma política habitacional um pouco mais efetiva. Ainda num momento mais de bem-estar social, esse processo aconteceu no início do século e não no fim. Aqui a gente não teve isso.

A professora afirma sua crença em uma cidade melhor como uma necessidade para quem tem a missão de formar, e inspirar, os futuros profissionais do urbanismo(Foto: FCO FONTENELE)
Foto: FCO FONTENELE A professora afirma sua crença em uma cidade melhor como uma necessidade para quem tem a missão de formar, e inspirar, os futuros profissionais do urbanismo

OP - Isso ocasiona aqueles números que a gente contrastando o número do déficit habitacional com o de moradias ociosas?

Clarissa - É isso mesmo, e esses números são subdimensionados. O déficit talvez não, mas a ociosidade é muito difícil de a gente medir porque às vezes é um terreno ocioso, mas nesse terreno caberia uma quantidade enorme de unidades habitacionais. Parece um problema de difícil solução, mas justamente a estabilidade do processo migratório ajuda a entender que esse problema não é de tão difícil solução assim quando você coloca na ponta do lápis.

O déficit habitacional de Fortaleza está em torno de 100 mil moradias. Isso caberia tranquilamente, já tem estudos de vazios urbanos, caberia dentro mesmo dos limites do município central. Essa não é exatamente a questão. Como o processo migratório está estabilizando, teríamos condição, sim, de prevenir novas ocupações, novos assentamentos precários, prevenir essa guerra urbana que acontece na cidade, ocupação de terrenos.

Outro dia, uma pessoa faleceu no Pirambu por conta disso, uma desocupação sem ser mediada pelo Estado. Uma desocupação de um ente privado contratando empresa de segurança privada, sem ter autorização. Preveniria até problemas de trânsito, porque grande parte das áreas ocupadas são leitos de via, áreas que eram para ser eixos viários também são ocupadas. Não dá para a gente combater ocupação sem dar alternativa, e alternativa é difícil.

OP - O que a senhora considera ser o desafio de agora para Fortaleza, ou a gente ainda está lidando com os desafios remanescentes?

Clarissa - É, Fortaleza está lidando, certamente, com os desafios remanescentes. Agora, como eu te falei, a gente está exportando esses problemas para os municípios periféricos. Já teve até alguma fala de prefeito, de secretário, dizendo assim: "Ah, Fortaleza não tem mais periferia". Porque, de fato, tem tido um processo de elitização de bairros como a Maraponga, que, sei lá, 15 anos atrás era um bairro de baixa renda. Hoje o tipo de empreendimento que ocorre na Maraponga, em Messejana, bairros que eram tidos como periferia já são bairros de classe média. Será que essa população, ela de fato melhorou a renda ou ela foi substituída? Ela foi para a periferia e foi substituída por uma população de uma classe de renda média que se periferizou?

Tem toda essa questão nesse momento. Tem também a dinâmica do turismo, que é nova não tão nova, mas uma política que não existia na década de 1980 e agora é uma variável importante para a tomada de decisão de para onde os investimentos vão. E acaba também se concentrando muito esses investimentos para atender essa demanda do visitante e menos para a demanda dos moradores. Isso também é um novo componente que potencializa essa guerra urbana.

Vista aérea do Pirambu(Foto: FCO FONTENELE)
Foto: FCO FONTENELE Vista aérea do Pirambu

OP - Essa questão do extravasamento metropolitano, é como se Fortaleza tivesse exportado a sua periferia para os municípios vizinhos, mas também uma parte de área nobre, quando a gente olha para os condomínios de Eusébio, Aquiraz. É como se tivesse empurrado esses limites?

Clarissa - Isso. Todas as outras cidades maiores do Brasil fizeram isso, mas, pelo fato de a poligonal administrativa de Fortaleza ser muito pequena, isso aconteceu para todos os lados em Fortaleza. Foi uma coisa mais acentuada. Isso impõe um desafio de administrar mesmo, porque, pela Constituição, a competência do ordenamento territorial, dizer o que pode ser feito em cada pedaço de terra, de aprovar loteamento, aprovar edificações, aprovar investimentos urbanos é uma competência do Município. Existe uma política metropolitana, mas ainda muito incipiente, que poucas regiões metropolitanas estão conseguindo fazer.

OP - Essa questão tem impacto também para o transporte? Porque as pessoas acabam morando mais longe de onde trabalham e são mais deslocamentos.

Clarissa - Sem dúvida. E aí tem a ver com direito à cidade, direito às oportunidades que a cidade oferece. Para mim, isso ficou muito claro quando a gente fez um trabalho junto à comunidade do Saporé, na margem do riacho Maceió, no bairro do Mucuripe. A população estava sendo ameaçada pelo projeto de um parque urbano no riacho. Esse parque previa o deslocamento de cerca de 200 casas. Essas famílias, embora sofressem enchentes periódicas, elas tinham testemunho muito claro para a gente: "Se a gente sair daqui, a gente morre de fome. Porque a gente depende de estar perto da Beira Mar". Diziam assim: "Se eu não não tenho o que comer, eu peço emprestado R$ 10, faço um sanduíche, compro alguma coisa, vou vender ali na praia e chego com R$ 30. Devolvo os R$ 10 e desses R$ 20 eu faço a comida dos meus filhos".

A localização ali para eles é uma questão de sobrevivência, por essa proximidade com a área de geração de renda, os visitantes e tudo mais. Na época, onde se estava mais recebendo casas removidas era no conjunto Cidade Jardim, que fica depois do José Walter. Os moradores disseram: "Se a gente for para o José Walter, só de ônibus para chegar aqui eu vou gastar aquilo que seria o que eu conseguiria para me manter, manter minha família no dia".

 

 

OP - Foi naquela operação urbana consorciada do riacho Maceió?

Clarissa - Foi posterior, na verdade. Parte dessa comunidade foi removida pela operação consorciada.

OP - Construíram o prédio e fizeram intervenção no parque. Isso foi depois?

Clarissa - Está tendo, esse conflito está acontecendo. É porque é um conflito invisível. De fato, a operação consorciada removeu a parte que ficava entre a Avenida da Abolição e o mar. Mas a parte para trás da Abolição, que é essa que a gente assistiu recentemente e colaborou, tem um projeto de um parque urbano para requalificar as margens do rio, num discurso de sustentabilidade muito vazio. Porque não considera os beneficiários do investimento, que teriam de ser essa população que está lá.

Riacho Maceió(Foto: Barbara Moira, em 13/8/2020)
Foto: Barbara Moira, em 13/8/2020 Riacho Maceió

OP - Tem investimento imobiliário envolvido?

Clarissa - Olha, certamente tem. A gente tem alguns dados de quais são os interesses envolvidos, mas, oficialmente, o projeto que remove é um projeto de requalificação de um parque. Obviamente, quando você requalifica a margem do rio e faz um parque, valoriza os terrenos vazios que estão no entorno.

OP - Se tira os moradores da beira de um rio onde alaga, para mim até faz sentido se realoca na vizinhança, mas no José Walter...

Clarissa - Essa era a questão. Porque mesmo outra opção era lá no próprio Alto da Paz, que fica em cima do morro do Castelo Encantado. Mas mesmo no próprio Alto da Paz não cabia todo mundo. Não era uma opção para todos. E tinha muita questão do faccionamento. As famílias não se sentiam seguras de ir para lá por causa da divisão de facções. E tinham vários terrenos vazios próximos que a gente viu que não eram colocados como opção. Muito provavelmente porque esses eram os terrenos que seriam valorizados, para para receber investimentos imobiliários para outro perfil.

OP - Bom, mas a senhora falou da estabilidade migratória. Isso torna mais viável resolver alguns problemas que estão colocados?

Clarissa - Sem dúvida. Mesmo pensando só no contexto de eleição municipal para prefeito de Fortaleza. O prefeito tem uma liderança na política metropolitana, mas vai atuar diretamente dentro dos limites administrativos dele. Como a gente está nesse processo de exportar problema, não imagino que isso possa ser colocado como vantagem. porque, de fato, é uma grande desvantagem. Mas se torna pelo menos mais visível, digamos assim, a possibilidade de resolver de um de um jeito mais visível.

Independentemente de exportar ou não, de sair do limite metropolitano, a Região Metropolitana toda tem estabilizado esse processo migratório. Essa estabilidade, ela é sim uma grande oportunidade. Pensando na cidade como todo, a gente tem uma boa oportunidade para resolver. Quando eu comecei a estudar isso, na década de 1990, a gente achava que esse problema era infinito. Hoje a gente vê que não. Taxa de urbanização do Brasil é 80 e poucos por cento e não vai ser muito maior do que isso. Agora é ajeitar o que já existe, porque não vai vir muito mais gente. Agora, o que é esse ajeitar?

A gente já tem uma cidade toda ocupada de uma forma certamente equivocada. Ocupada em lugares onde não era para ter sido ocupado, margem de rio, beira de duna, leitos, áreas que eram previstas para ser praças, ocupadas. Essas ocupações já têm investimentos privados, já têm água, algumas já têm até esgoto. O custo da relocação às vezes é maior do que o custo de deixar e fazer um parque em outro canto. Uma das minhas disciplinas aqui, que eu leciono, é Desenho Urbano. Na maior parte das vezes, a gente não desenha em cima de um terreno vazio, a gente desenha em cima de um assentamento existente. O que dá para ser feito numa situação real, que existe. Essa ideia de desenhar a cidade do zero, no mercado de trabalho deles (estudantes de arquiteruta e urbanismo) vai ter muito pouco.

OP - Até que ponto o poder público foi capaz de planejar a expansão de Fortaleza nessas décadas? Como se chegou ao que há hoje?

Clarissa - O processo de planejamento é muito complexo. Não adianta vir um arquiteto, urbanista, engenheiro desenhar um mapa e dizer: "A cidade vai crescer aqui". Será que a prefeitura vai realmente colocar os investimentos aí, vai comprar os loteamentos aí, vai promover a habitação aí? Foram definidos eixos de expansão. Mas foi pensado esse processo de efetivação desses eixos que foram desenhados?

A cidade foi desenhada, não sei se necessariamente planejada. Os planejamentos ocorreram, mas para atender outros interesses, não aquele interesse que estava público, manifestado naquele desenho que se tornou público. Também tem essa desconexão entre o desenho, o projeto público que está manifesto numa intenção de interesse público, e as forças que estão por trás, que é aquilo que guia mesmo o planejamento. Em Fortaleza, foi muito forte o interesse dos proprietários de terra em aprovar esses loteamentos para ganhar dinheiro.

Clarissa Freitas,  professora de Arquitetura da UFC(Foto: FCO FONTENELE)
Foto: FCO FONTENELE Clarissa Freitas, professora de Arquitetura da UFC

OP - Há algumas questões que surgem agora, a partir da outorga onerosa, como o que se começou a chamar de superprédios. Qual a avaliação da senhora sobre esses empreendimentos?

Clarissa - Acho essa discussão meio míope. Primeiro, ela não é o principal problema da cidade. O principal problema da cidade está na periferia, não está na Beira Mar e os superprédios. Embora tenha uma dimensão simbólica importante, esses superprédios, de fato, esses superinvestimentos não deveriam ocorrer, em termos de concentração de investimentos. Mas, a gente tem de olhar muito mais para a periferia, onde mora mais gente. No debate público, discute-se muito pouco os bairros periféricos e se discute muito o Meireles, a Beira Mar, Praia de Iracema. O que está na pauta dos jornais, dos podcasts é isso. Tem de ter superprédio ou não tem. Não tem, com certeza. Mas tem outros problemas. Tem de ter esgoto. Porque o esgoto não chegou ainda ao Siqueira? Isso é um problema muito mais sério, porque o esgoto vai para Barra do Ceará e a gente não consegue tomar banho de mar. Tem uma questão de prioridade das problemáticas urbanas.

Dito isso, sobre a outorga onerosa, de fato, o que se cobra para essa construção adicional é muito pouco e não paga os impactos. Quais são os impactos? Eu nem digo que impacto seja o adensamento. Existe o adensamento construtivo, se constrói um prédio dentro do outro, muito próximo do outro. Mas, em termos de adensamento populacional, são apartamentos muito grandes. O adensamento da Beira Mar é igual ao adensamento do Pirambu, que nem é verticalizado. Não é adensamento populacional o problema, não é trânsito o problema. É uma permissão que não tem sentido, porque a gente tem terra vazia para ser construída aí. O impacto ambiental, essa coisa dos aterros, a gente está em tempo de mudança climática, para concentrar mais investimento, a gente não sabe como é que vai ser com o aumento do nível do mar.

Há quem diga que há impactos na ventilação, não sou especialista nessa área, não posso dizer. No caso dessa operação consorciada que a gente falou, que retirou as famílias tradicionais, acho que se perde muito, ali no Mucuripe, se perde muito a história da cidade. Aí é um custo muito alto. A igrejinha de São Pedro, as casas dos pescadores, aquilo que era um tecido urbano vernacular que poderia atrair turista. Você perde isso, substitui por um tecido urbano que poderia estar em qualquer lugar do mundo. Um superprédio igual ao de Miami, ao de Dubai. Mimetiza, tira uma coisa original e de valor cultural e simbólico importante, da nossa história. Mesmo pensando dentro da economia do turismo, o turista vem aqui para ver o cara saindo com a jangada para pegar o peixe e voltar.

OP - Um candidato falou que Fortaleza será uma Dubai.

Clarissa - A quem interessa Fortaleza ser uma Dubai? Não é ao turista, não é ao morador. Só ao dono desses terrenos, desses empreendimentos. As pessoas que lutam por esses empreendimentos. A mim é o único grupo a quem eu vejo que interessa. E talvez a quem é eleito com o dinheiro disso.

OP - Especificamente sobre como a outorga onerosa é usada em Fortaleza, qual a avaliação da senhora?

Clarissa - Está sendo usado errado. Eu representei a universidade na CPPD (Comissão Permanente de Avaliação do Plano Diretor) por muitos anos e talvez em 90% dos casos eu era o único voto contrário às aprovações de outorgas onerosas para esses empreendimentos. Na CPPD são votados empreendimentos que não cumprem as normas estabelecidas pelos planos, abrem-se exceções e aí existe uma contrapartida. Essas exceções não são necessariamente somente ortoga onerosa.

Muitas vezes são exceções que para mim têm um impacto talvez até maior, sobre a taxa de permeabilidade. Permite aos edifícios impermeabilizar mais o solo. Isso vai criar um problema de drenagem maior. Pela CPPD passam todos esses casos, votam-se essas exceções e se diz: a contrapartida é essa, as exceções são essas. No fundo, é um grande órgão de flexibilização das normas do plano. Mas, a sua pergunta original é: essa flexibilização, ela faz sentido? Por que ela existe? Ela é eminentemente ruim? A outorga onerosa, quando ela foi concebida era assim: uma cidade cresceu, há uma demanda por verticalizar para caber mais gente, digamos, mas se transformar uma casa num prédio, vai precisar de uma infraestrutura maior. Vamos imaginar, o que se resolvia só com o carro individual, agora vai ter de botar ônibus. Ou o que resolvia com uma rede de drenagem, vai ter de reforçar. O adensamento prevê um reforço em termos de infraestrutura. A Aldeota foi toda projetada, o loteamento, para casas unifamiliares. As casas foram substituídas por prédio. A rede de drenagem teve de ser refeita para receber mais água, porque a água deixou de infiltrar no quintal das casas. Quem vai pagar esse, digamos, refazimento da rede de infraestrutura? Seria, conceitualmente, esse recurso da outorga.

Nesse ponto de vista, a outorga faria sentido, porque já não está dando para pessoa o direito de transformar a casa em prédio. O Estado está vendendo. E aí com esse dinheiro é custeado esse impacto. Na teoria é muito bonito. Na prática, primeiro, já se pode prédio, o que está deixando são prédios mais altos ainda. Depois, o que se paga não cobre o custo da infraestrutura adicional, até porque é muito difícil mensurar esse custo também. A gente chegou a essa conclusão. Existem custos simbólicos. Perder uma vila tradicional, o que é que paga isso, em termos de dinheiro. Não tem como mensurar. Não é tudo financeiro. De fato, se comparar com outras cidades no Brasil e fora do Brasil que usaram o instrumento da outorga, o sentimento que eu tenho...

Eu nunca fiz uma pesquisa específica para essa área, tem outros colegas que fazem. Mas o que eu leio e o sentimento que eu percebo é que se flexibiliza muito mais para atender aos interesses do proprietário do terreno que está recebendo a outorga. Era o que se discutia na CPPD, o direito do proprietário. E não se falava do interesse público, do impacto. O direito de proprietário tem de ser limitado pela função social da propriedade. Essa limitação nunca está no debate.

OP - A revisão do Plano Diretor era para antes da pandemia, atrasou e agora ficará para o mandato de quem for eleito. A senhora tem acompanhado essa discussão?

Clarissa - Eu tenho acompanhado menos do que eu gostaria. Eu tenho feito um movimento de acompanhar os planos diretores dos municípios menores, do Interior do Estado. A gente desenvolveu agora, por exemplo, uma proposta para o plano diretor do município de Icapuí, que sofre com processos também de ocupação desenfreada, a expansão das eólicas, da hotelaria e todas essas outras questões. Eu acho, de novo, que a gente tem descentralizar a discussão, não ficar só no município central.

Tenho em sala de aula trabalhado muito, estudado os planos diretores dos municípios da Região Metropolitana. Outro dia eu me deparei com um município que o plano diretor ainda era escrita à mão numa folha de papel almaço. Da precariedade que é a gestão de planejamento dos municípios menores do Estado. Mas, obviamente, o Plano Diretor, como a gente atua aqui. Eu faço assessoria técnica a muitos movimentos de moradia dentro de Fortaleza, a gente tem acompanhado, sim. O que eu vejo é que o plano de 2009, feito na administração da Luizianne Lins, do PT, teve uma rejeição muito grande nas administrações seguintes. Quando mudou para a gestão do Roberto Cláudio, tentou-se fazer aquele plano do Fortaleza 2040.

Tiveram estudos técnicos muito consistentes, sim, mas ele não foi enviado para Câmara como projeto de lei. Naquele período tinha uma disputa política entre a Seuma (Secretaria de Urbanismo e Meio Ambiente) e o que era o Iplanfor (Instituto de Planejamento de Fortaleza), hoje é Iplan. A Seuma desenvolveu a Lei de Uso e Ocupação do Solo desse plano de 2009 somente em 2017, já alterando muita coisa desse plano de 2009. O plano de 2009 prometeu muitas coisas, inclusive coisas interessantes em termos de direito à cidade, a regulação fundiária, e não foram cumpridas. E aí a lei de 2017, já feita no período do Roberto Cláudio, meio que desvirtuou muita coisa do plano original, mas formalmente se dizia regulamentar esse plano original de 2009. Em 2019 se retomou essa discussão para revisar o plano de 2009, porque o prazo venceu. Mas, imagine, eles começaram a revisar bem antes do prazo de 10 anos.

Com o Fortaleza 2040, a ideia já era de que ele fosse uma revisão. A gente ainda não tem essa cultura de implementar um plano feito por outra gestão. Ele é para ser um plano de Estado e não é um plano de gestão. A percepção é de que tem um movimento de desfazer o pouco que se conquistou em termos de direito à cidade, de regularização fundiária na época do plano de 2009. Era um plano que olhava muito mais para a periferia do que o que está sendo pautado agora nesse nessa proposta de revisão.

A professora Clarissa Freitas defende a necessidade de garantir infraestrutura às populações em condições mais vulneráveis do ponto de vista ambiental, da qualidade de vida e inclusive da segurança pública(Foto: FCO FONTENELE)
Foto: FCO FONTENELE A professora Clarissa Freitas defende a necessidade de garantir infraestrutura às populações em condições mais vulneráveis do ponto de vista ambiental, da qualidade de vida e inclusive da segurança pública

OP - Qual o seu sentimento, como estudiosa do assunto e como moradora, ao ver o debate eleitoral que é feito entre as pessoas que querem ser prefeito de Fortaleza?

Clarissa - Olha, Érico, é um sofrimento. Eu confesso que nem sempre consigo assistir. Acho um desconhecimento do que um prefeito tem de fazer, primeiro de tudo. É muito triste o nível do debate, um desconhecimento das questões urbanas, uma visão muito simplista e muito pouco assessorada. Faço também um mea culpa da academia. Aqui era uma escola de arquitetura que formava 40 profissionais por ano até os anos 2000. Nós tínhamos muito pouco arquiteto.

De certa forma, isso também favoreceu um debate muito raso em termos técnicos. Nós também temos de contribuir para esse debate, o IAB (Instituto dos Arquitetos do Brasil), o CAU (Conselho de Arquitetura e Urbanismo). Mesmo essas entidades, eu ainda acho que dá para se aprofundar muito mais os debates. Para mim não tem sentido a gente estar discutindo outorga onerosa se a cidade ainda não está toda coberta por rede de esgoto.

OP - O que que a senhora gostaria de ver discutido por quem quer ser gestor de Fortaleza?

Clarissa - Sem dúvida, a questão ambiental, de reservar as áreas que ainda existem de valor ecológico, ecossistêmico, pela sobrevivência dos nossos filhos e netos. A gente ainda tem ecossistemas que merecem atenção. Para preservar esses ecossistemas, a gente precisa que a cidade seja servida por rede de infraestrutura básica, que não é.

Um dos motivos que ela não é, a cidade é coberta de assentamentos precários, quantidade muito grande de população morando nesses assentamentos e que são negados do serviços vários. Há situação em que tem a rede de esgotamento e drenagem no bairro, chega ao assentamento precário, ela não entra. A pauta da urbanização desses assentamentos, porque não dá para remover. Já tem um nível de investimento muito grande, muita gente morando. É muito mais caro e irracional remover, sem falar no direito dessas pessoas de permanência.

A pauta da urbanização desses assentamentos é uma pauta importante para todo mundo. Para a qualidade da água, para a qualidade de vida dessas pessoas, para a questão da segurança pública. Tem alguns territórios em que, de fato, o Estado não consegue mais entrar, candidatos estão conseguem fazer campanha lá dentro por causa disso.

Essa é uma pauta que aí sim está relacionada com a segurança pública. Vamos organizar esses territórios, vamos dar cidadania, vamos dar endereçamento para esses territórios. A regularização fundiária, o direito à permanência, a segurança de posse desses territórios. A questão ambiental e a questão da regularização fundiária associada à urbanização desses territórios a meu ver é prioritária.

OP - Qual o rumo para o qual a cidade caminha e o que é possível esperar desse caminho?

Clarissa - Eu tenho muita dificuldade em responder a esse tipo de pergunta porque eu sou professora. A minha missão é inspirar os futuros profissionais a incidir nesse debate a melhorar a cidade. Se eu acreditar que a gente está caminhando para um futuro distópico, eu não tenho capacidade de inspirar futuros profissionais.

Por isso eu resolvi fazer concurso para a universidade pública, para ter uma certa segurança de atuar naquilo que eu acredito que é a transformação da cidade. Que de fato eu consigo enxergar na atuação das lideranças comunitárias da periferia, que conseguem pequenas vitórias, pequenos avanços no sentido de uma cidade mais ecologicamente correta, mais digna do ponto de vista da moradia. É uma coisa bem invisível, e muito, muito pequena. Mas dizem que a esperança é preta e é mulher. Ela é olhar para os mais vulneráveis, porque a saída está aí. Obviamente, ela é dificílima.

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