Entrevista com Tião Santos, quem faz do lixo algo extraordinário
Carol Kossling é jornalista e pedagoga. Tem especialização em Assessoria de Comunicação pela Unifor e MBA em Marketing pela Faculdade CDL. Pautou sua carreira no eixo SP/CE. Fez parte da equipe de reportagem do Anuário Ceará e da editoria de Economia do O POVO. Atualmente é Editora de Projetos do Grupo de Comunicação O POVO
Entrevista com Tião Santos, quem faz do lixo algo extraordinário
Sebastião dos Santos, ou simplesmente Tião, atua há mais de 20 anos em movimentos de respeito, valorização e socialização de catadores e catadoras, alertando, por onde passa, sobre a importância da coleta seletiva e da reciclagem.
A história de Sebastião dos Santos poderia virar filme. E, na verdade, virou. Mais conhecido como Tião, o ex-catador de 45 anos tem como cenário de boa parte da sua história o lixão Jardim Gramacho, no Rio de Janeiro, que por muito tempo foi o maior da América Latina.
Com uma trajetória de vida, que passou por uma reviravolta após entender que o seu trabalho e o de sua família estava diretamente ligado à questões sociais, econômicas e ambientais, Tião passou a investir em educação.
A militar e a buscar visibilidade e representatividade da sua classe em uma época onde os termos“catadores” não tinham relação direta com “sustentabilidade”. Em 2011, o então catador ganhou visibilidade mundial com a estreia de Lixo Extraordinário, documentário que apresenta o trabalho do artista plástico Vik Muniz com catadores do então maior aterro sanitário da América Latina.
De catador, Tião passou a líder de cooperativas, palestrante, consultor e defensor dos direitos de catadores e catadoras do Brasil. No dia 10 de julho deste ano, participou da cerimônia de assinatura de regulamentação da Lei de Incentivo à Reciclagem (LIR), ao lado do presidente Luiz Inácio Lula da Silva, no Palácio do Planalto.
Os investimentos, as políticas públicas e os projetos são vistos como uma valorização de catadores e catadoras de materiais recicláveis. Em entrevista ao O POVO, contou sua história, falou sobre o suas atribuições e apresentou o papel da reciclagem no cenário atual.
O POVO - Como começou a sua história, a sua relação com o lixo e a reciclagem?
Tião Santos - Eu sou o sétimo filho de uma família de oito. A reciclagem na minha vida é muito parecida com a da maioria dos catadores de materiais recicláveis, até porque a reciclagem, no Brasil, ela não nasce da educação ambiental do cidadão brasileiro, da conscientização. Ela nasce da pobreza e da exclusão social.
Meu pai é estivador. Ele veio do Recife (Pernambuco) para trabalhar no Rio de Janeiro, trabalhou durante muitos anos, teve uma boa vida, deu uma condição boa para a gente até mais ou menos 1984, 1985.
Quando o cais do Rio de Janeiro e de todo o Brasil passou a transportar tudo em container. Então meu pai não ficou desempregado, mas não tinha mais tanto navio para carregar e descarregar. Aí ele se tornou alcoólatra e minha mãe passou a ser o pai e a mãe da família.
Atualmente, 73% dos catadores brasileiros são mulheres negras. Então minha mãe era mais uma. Mulher negra, com a quarta série do colegial, no Rio de Janeiro. Então ela foi fazer faxina. Aí não dava para sustentar oito filhos.
O POVO - De que bairro do Rio de Janeiro vocês são?
Tião - A gente é da cidade de Duque de Caxias, do bairro Jardim Gramacho, só que a gente ficava do outro lado da “pista”, de um lado mais residencial. Porque a gente tinha uma condição de vida legal.
E um dia uma amiga dela falou sobre um local que dava para ganhar um dinheiro, que dava para ganhar mais do que três faxinas. O trabalho era à noite. A minha mãe ficou resistente… Porque ficou imaginando que era prostituição, então ela falou que tinha filho, era casada. E a amiga explicou que era no lixão.
E ela disse, então, que, mesmo que fosse para catar lixo, porque naquela época ninguém falava “materiais reciclados”, ela iria, sendo uma forma digna de sustentar os filhos. E ela foi...
O POVO - Você tinha quantos anos nessa época?
Tião - Eu tinha uns seis para sete anos de idade.
O POVO - E como você via a sua mãe?
Tião - Na verdade, a maior lembrança que eu tenho é que a minha mãe tinha ficado fora de casa três dias e a gente não tinha nada para comer. Quando ela chegou, estava com as compras. Então para uma criança de sete anos, que estava passando fome, ver a mãe voltando do trabalho com comida, era o melhor trabalho do mundo.
Conforme a gente ia crescendo, a demanda aumentava: chinelo, roupa, comida, tudo a mais. E aí meus irmãos mais velhos começaram a ajudar ela no lixão. E assim foi a dinastia de todos nós. Então quando a gente chegava a uma idade de 13, 14 anos, a gente passava a ajudar ela no lixão, no próprio Jardim Gramacho, que foi o maior lixão da América Latina até 2012.
O POVO - Como foi o seu primeiro contato com o lixão?
Tião - Quando eu conheci o lixão eu tinha 11 anos e fui levar comida para os meus irmãos, que estavam lá trabalhando. E eu fiquei. Como criança, você não tem aquela visão do lixo. Era um local que dava para brincar, correr com outras crianças e foi assim.
Quando eu comecei a trabalhar mesmo foi com 13 para 14 anos Aí trabalhei até meus 16, porque foi quando começaram as mudanças dentro do lixão. Ele tinha que fechar e, para não fechar, o município do Rio de Janeiro teve que assinar um Termo de Ajuste de Conduta (TAC), porque o lixão era na minha cidade, mas quem era dona dele era a cidade do Rio de Janeiro.
O TAC dizia que eles tinham que transformar o lixão no que chamaram de aterro controlado, que era canalizar o chorume e não deixar mais vazar para Baía de Guanabara; canalizar o gás, para que o lixão não ficasse pegando fogo, como ficava várias vezes; acabar com a moradia e acabar com o trabalho de adolescente e de criança.
O POVO - Qual rumo a sua vida tomou quando precisou sair do lixão?
Tião - E fui fazer várias coisas. Fui ajudante de pedreiro, trabalhei em aviário matando galinha, depois fui ajudante de açougueiro, fui trabalhar em uma comunidade vendendo botijão de gás.
Era um trabalho fixo e, quando cheguei aos 18 anos, tive que me apresentar ao quartel (serviço militar). Comecei a faltar muito para fazer os exames e fui mandado embora. E ao mesmo tempo não entrei para o exército.
Então voltei para o lixão, com 18 para 19 anos. Aí quando eu voltei, minha mãe já tinha formado a primeira cooperativa de catadores, participado da liderança do lixão, criado a usina de reciclagem… E eu, como qualquer adolescente, era muito rebelde.
Queria ir para o lixão, não queria ficar na usina de reciclagem, porque tinha horário para trabalhar, horário de pegar, horário de largar…
Mas a assistente social, que até hoje é minha amiga, uma segunda mãe na minha vida, que se chama Valéria Bastos, juntamente com a minha mãe, me convenceu a trabalhar na cooperativa, dava para trabalhar e estudar.
O POVO - E como era a sua relação com os estudos?
Tião - Eu gostava de estudar, mas na minha adolescência sofria bullying, porque quando minha mãe deu entrevista para o Globo Repórter, as pessoas descobriram que ela trabalhava em um lixão. Aí eu sofria todo tipo de preconceito. Então eu não queria ser catador, eu queria estudar para não ser catador.
Então elas me convenceram que lá dava para trabalhar das seis da manhã até as duas da tarde e voltar a estudar. E foi justamente o que eu fiz. Um dia, como qualquer adolescente, queria matar o serviço e eu vi que no refeitório tinha um cartaz escrito: “Seminário sobre meio ambiente e reciclagem”, não usavam ainda a palavra “sustentabilidade”, isso em 1998, 1999. Usavam muito “meio ambiente”. E o seminário ia acontecer na UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro).
Eu queria jogar bola. E vi que o seminário aconteceria das 8h até as 10h. Pensei: “Ih, mano, vou aproveitar”. Aí falei para a minha mãe que queria participar. Não queria, na verdade, mas foi o maior divisor de águas na minha vida.
Cheguei lá e vi um monte de gente, digamos, assim entre aspas, que a gente acha que é importante: advogados da área ambiental, sanitarista, ambientalistas, biólogos…
Todo mundo defendendo a reciclagem como algo importante. E eu comecei a entender o valor social, ambiental e econômico. Tinha até economista, que na época era o Sérgio Besserman, irmão do Bussunda.
Fiquei fascinado e falei: cara, como é importante no meu trabalho. Eu já estava com 19 para 20 anos. E logo depois veio o Fórum Social Mundial, em 2012, em Porto Alegre. Eu já tinha casado, estava com 21 anos para 22, e participei do Fórum Social Mundial e do encontro latino-americano de catadores.
Eu fiquei doido, porque eu achava que só tinha eu como catador no Brasil! E descobri que tinha catador no Brasil todo, na América Latina. E pensei que não estava sozinho nessa luta. Virei militante. Fundamos o primeiro movimento de catadores do Brasil.
Hoje, eu faço parte de um outro movimento, que fundamos em 2016. Então eu comecei a militar, a lutar, a gostar de tudo isso e logo em 2006 para 2007 a gente descobriu que o lixão ia fechar, que estava com os dias contados.
Como eu já tinha começado a convencer outros catadores a militar no movimento, tanto amigo meu do lixão, amigo meu de infância, quanto catadores da cooperativa. E a gente formou a associação de catadores, para lutar justamente por direito dos nossos catadores, após o fechamento.
O POVO - E quando e como foi o seu primeiro contato com o artista plástico Vik Muniz?
Tião - Foi no final de 2007. E veio com a ideia de fazer uma foto, que acabou se estendendo a um documentário. E aí demorou 3 anos para o documentário ficar pronto. Enquanto isso a gente estava lutando, formando associação, continuei militando.
Quando foi em 2010, o documentário (Lixo Extraordinário) ficou pronto e logo de cara a gente saiu ganhando um monte de prêmio internacional. A primeira viagem internacional que eu fiz foi para Berlim, para receber o prêmio de melhor documentário de júri e de público.
Em 2011, a gente já tinha ganhado 22 prêmios. Ganhamos o Festival Sundance de Cinema, um prêmio importante nos Estados Unidos, e logo depois a gente foi indicado ao Oscar. E aí a vida tomou um rumo que eu jamais esperava.
Comecei a palestrar, fui contratado como consultor do Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID) para discutir a questão de fechamento do lixão, já focado nessa coisa que você tava falando da sustentabilidade, de impacto ambiental que o lixão gera, a questão de mudança climática pelos gases nocivos como metano, CO2 que gera dentro do lixão…
Trabalhei no BID dando assessoria aos catadores do lixão de Georgetown, da Guiana Inglesa, palestrei em Harvard, Yale, mas tem uma coisa que pelo menos dentro de mim eu nunca esqueci, que foram as minhas origens.
Continuo trabalhando até hoje, seria leviandade da minha parte dizer que as minhas condições financeiras são iguais as da grande maioria dos catadores, não é, sempre me faço a pergunta de que se não tivessem acontecido certas coisas na minha vida, como seria a minha vida hoje?
É por isso que eu nunca esqueci da minha origem, até hoje continuo lutando. E a minha vida agora é isso. Eu passei a ser conhecido mundialmente, passei a ser embaixador do World Clean Up Day aqui no Brasil.
O POVO - Hoje, quais são as suas atribuições?
Tião - Hoje eu estou presidente da Associação de catadores do Aterro de Jardim Gramacho. Eu também fui eleito no ano passado representante do Instituto Mesc, que é o Instituto Movimento Eu Sou Catador.
A gente agora está com um projeto chamado Eu Sou Cata que Protege, tem também o Eu Sou Cata que Empreende, que é voltado para capacitação e profissionalização dos catadores para prestação de serviços.
Já que agora a reciclagem não tem mais aquela visão do lixo, cada vez mais a reciclagem tem a sua importância e o seu papel na diminuição do resíduo produzido, não só no Brasil, mas no mundo.
Então hoje eu estou militando nesse movimento, discutindo com o Governo Federal as políticas públicas que possam melhorar a qualidade de vida dos catadores, principalmente o reconhecimento pelo serviço ambiental prestado por nós, catadores e catadoras de materiais recicláveis.
O que a gente presta é serviço de coleta seletiva de embalagem pós-consumo. Cada embalagem tem um dono, ela tem CNPJ, ela tem alguém que produziu, alguém que utiliza a embalagem.
Segundo a lei, que é a Política Nacional de Resíduos Sólidos, cabe às empresas que produzem e utilizam embalagens, pagar para, no mínimo, fazer voltar à cadeia produtiva da reciclagem, dentro da economia circular, 22% daquilo que ela coloca de embalagem no Brasil.
Então a gente agora vem discutindo o que o catador faz, que é extensão de serviços dessas empresas e que, assim como hoje já começa a reconhecer a importância de se regulamentar e regularizar os direitos dos prestadores de serviços de aplicativo, precisa também reconhecer esse serviço ambiental prestado por nós, catadores.
Para que esses catadores possam receber pelo serviço ambiental prestado. É isso. Eu continuo trabalhando e acredito que essa é a minha missão aqui.
O POVO - Como você vê o impacto que o trabalho de reciclagem tem na vida das pessoas, na vida das cidades e no meio ambiente?
Tião: A gente é uma sociedade que consome e produz muito, não existe outro mecanismo para diminuição do quantitativo de resíduo produzido que não seja a reciclagem. A reciclagem tem uma importância ambiental muito grande quando se trata de sustentabilidade, dos 17 objetivos da ONU.
Uma vez eu parei para observar os 17 objetivos da ONU e as pessoas pensam “poxa, será que para alcançar os 17 objetivos eu tenho que fazer, literalmente, aquelas 17 coisas?”.
Mas olha a importância que tem a reciclagem: quando você recicla, você está erradicando a pobreza, você está cuidando da vida terrestre, da vida marinha, você está gerando trabalho digno, fazendo a cidade ser mais sustentável, está contribuindo para as mudanças climáticas, até mesmo a questão de gênero, já que a grande maioria dos catadores são mulheres.
A reciclagem ela tem um papel importantíssimo na nossa sociedade, mas para isso é preciso educar, sensibilizar o cidadão brasileiro, a cidadã brasileira sobre a importância da reciclagem, mas, acima de tudo, sobre a valorização e reconhecimento do profissional que faz a reciclagem no Brasil, que são os catadores e catadoras de materiais recicláveis.
A gente sabe que o mundo produz mais de 400 bilhões de toneladas de resíduo, isso gera um quantitativo de CO2, isso gera um consumo de energia muito grande.
E tudo isso a reciclagem pode diminuir. Diminuir o quantitativo de recursos que a gente precisa retirar da natureza, ela diminui o consumo de energia. Quando você recicla um vidro, você gasta muito menos energia do que a utilizada para produzir um vidro novo.
A reciclagem gera trabalho, gera renda, ou seja, a sua latinha, a sua caixa de papelão, a sua garrafa PET, ela pode gerar impacto ambiental, social e econômico negativo na sociedade, mas quando ela tem como destino a reciclagem, ela é transformada em trabalho, renda inclusão social, economia e proteção ambiental.
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