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Passageiros do acaso
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Repórter especial e cronista do O POVO. Vencedor de mais de 40 prêmios de jornalismo, entre eles Sociedade Interamericana de Imprensa (SIP), Embratel, Vladimir Herzog e seis prêmios Esso. É também autor de teatro e de literatura infantil, com mais de dez publicações.

Passageiros do acaso

Esta crônica não precisa ser lida. Há dias em que o cronista não se supera no senso comum e repete besteiras
Tipo Crônica
1711demitri.jpg (Foto: carlus campos)
Foto: carlus campos 1711demitri.jpg

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Penso no poema "pequenas gentilezas", de Danusha Laméris,

Dizem que não gosto de gatos, mas os sirvo com comida de felino e insisto que é preciso levar a orelha perebenta do macho à doutora veterinária.

Um deles, coça o ouvido como se tivesse cotonetes e mia desesperado como se precisasse soletrar "ajuda-me". Verdade, não me derreto por eles, mas tenho dó de suas existências e tento dizer que não confio em humanos. Eles são adulterados.

 

"Aprendi com bruxas ainda vivas e morridas da família"
 

 

Dizem também que não tenho carinho por crianças, mas vou ao fogão ordinário, amasso a goma no coco, deito-a no tacho quente e sirvo tapiocas na manteiga e ovo, além de uma xícara de vários chás misturados. Aprendi com bruxas ainda vivas e morridas da família.

Sim, os Araújo, os Florêncio e os Coelho, os Tavares, os Silva, deram descendentes de uma "linhagem subalterna de colonizados", eram luso-católicos invasores. Deram bruxas, putas do farol do Mucuripe, pescadores simples, agricultores donos de sítios no Maranguape, vigias, acendedores de lampião, gente que pagava os "negos véi" para esgotar fossa.

Meu pai e minha geração de seis irmãos fomos os primeiros a ir para uma universidade pública. Foi uma virada para alguns, outros desperdiçaram. Os netos de mamãe, todos, foram para a faculdade. Serão operários qualificados do sistema e das bigtechs.

 

"Numa esmola, mesmo, culposa cristã, cai em êxtase com a resposta de bom grado"

 

Servir - verbo transitivo direto - palavra de satisfazer a alma, de enfeitar o coração-metáfora e o de carne disparam. É verbete de mudar um começo de um dia meio torto se servimos ou somos servidos.

Numa esmola, mesmo, culposa cristã, cai em êxtase com a resposta de bom grado. Uma maçã, duas moedas, um chocolate, um pão francês. "Deus te abençoe". Mesmo não acreditando mais nas religiões, a benção de quem desejou abraça feito um afago de sereno e o nó se desmancha.

Num mundo de cretinos contemporâneos, oferecer um "bom dia" no elevador pode ser curativo. E se há retribuição sincera, um bate e volta, parece que a chuva desadormece o sertão no estio.

 

"É feito perguntar a alguém que nunca é perguntado. De uma inclusão amorosa"

 

Servir é uma palavra de lembrar perguntar alguém sobre o outro. Um "tudo bem?", "Como vai você?", "Olha, que prazer em encontrá-lo!"

É feito perguntar a alguém que nunca é perguntado. De uma inclusão amorosa de colocá-lo na roda, de importá-lo na partilha de palavras.

Criei três filhos e a mãe deles, Virginia, lambeu-os muito mais do que eu. Tive alguma importância também. Tentei ensiná-los a desconstruir olhares preconceituosos e a ter asas em vez de gaiolas.

 

"Talvez, por causa dos gatos, não furam fila, aprenderam o valor de um "bom dia""
 

 

Eles amam gatos sob todas as coisas, mas do que ao Deus violento. Não ensinei. Respeitam os bichanos, se enroscam neles e não reclamam dos pelos nem dos vômitos, eu ranzinzo.

Talvez, por causa dos gatos, não furam fila, aprenderam o valor de um "bom dia", "boa tarde" e um "boa noite". E metem-se em protestos contra a extrema direita.

Dentro de suas vidas cult bacaninhas no miolo doce de Fortaleza não acham que só a existências deles valem. São gentis sem performances. Ainda os idealizo sem cobrá-los.

 

"Por último, desejo que a jornalista Giovana Cabral - de trato indispensável durante 66 anos - siga a jornada de existência dela"

 

Queria somente escrever uma crônica sobre a boniteza de uma tapioca oferecida, um chá oferecido, uma manteiga servida, embora a pressa. É a delicadeza contra o cotidiano matante. O texto foi para o rumo que quis. Paciência e perdão, realmente não sou escritor. Apenas repórter, e adoro.

Por último, desejo que a jornalista Giovana Cabral - de trato indispensável durante 66 anos - siga a jornada de existência dela. Nada de religião, Deus, céu, inferno, paraíso, expiação... não, não. Besteira.

Que seu corpo se transforme em saudades e bichinhos que alimentem micélios nas raízes de árvores e eu morda, algum dia, um jambo e ela Giovana venha, quando em menos esperar, num gosto de saudade. Ela estará ali.

 

"Minha pobre dúvida humana... Os filhotes reconhecem os pais velhos, anos depois?"

 

É encaixar-se, Giovana, na vastidão misteriosa depois da última despedida. Foi estranho vê-la imóvel, sem possibilidade de frescar. Talvez seja isso e somos menos sensíveis para acreditar em transformações na natureza.

É feito o que me intriga nos pássaros. Têm uma, duas, três posturas no ano. Depois, os mais velhos botam os noviços para aprender e voar e os despacham.

Minha pobre dúvida humana... Os filhotes reconhecem os pais velhos, anos depois? Tomam benção passando o bico um no outro? São convidados para almoços e conhecer os passarinhos netos? Ou cruzam uns pelos outros e os encontros não os afetam mais?

Quando eu morrer, volto para dizer!!!

 

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