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Rascunhos de uma crônica
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Demitri Túlio é editor-adjunto do Núcleo de Audiovisual do O POVO, além de ser cronista da Casa. É vencedor de mais de 40 prêmios de jornalsimo, entre eles Sociedade Interamericana de Imprensa (SIP), Embratel, Vladimir Herzog e seis prêmios Esso. Também é autor de teatro e de literatura infantil, com mais de 10 publicações

Rascunhos de uma crônica

Ia para outro lado com a crônica, dentro do desaprender, mas ela tomou uma correnteza paralela. Deixei nadar
Tipo Crônica
2505demitri.jpg (Foto: carlus campos)
Foto: carlus campos 2505demitri.jpg

Pensando aqui em duas entrevistas que participei como entrevistado e no que o corpo vai botando para fora. Vou me surpreendendo. Entrevista tem desses desassossegos. Eu feito repórter ou investigado.

Investigado não no sentido inquisitório, de ser "inquirido" e ter de "botar para fora", "arrear tudo", de "desembuchar" ou "entregar algo". Isso é violento se não fizer parte de um diálogo honesto e conversado.

Refaço. Pode ser grosseiro dependendo do grau de poder que o entrevistador pensa ter ou do senso comum que o veste em alguma função de interrogador. Já fui interpelado assim e não faz bem à alma nem ao coração de galinha.

 

 

Mas nas entrevistas em questão, fiquei feliz com algo que disse e venho perseguindo no rés dos meus desconhecimentos.

Perguntaram para que serviam os livros que escrevi destinado, talvez, a crianças e pré-adolescentes.

Não elaborei e respondi o que estava à flor dos olhos naqueles segundos de interrogações. "Servem desaprendizar o leitor. Crianças, professores e, talvez, pais ou responsáveis".

Disse e fui me espantando. Precisava sustentar ou seria apenas uma frase de gente querendo ser besta. Bordão sem sustância feito pastel de carne de alma ou aquele caldo de bila da infância solta.

 

 

Era aquilo, tinha acabado de descobrir mais um descaminho. Por longos segundos de tempo, tive uma felicidade inquietante. Doido pra sair dali e anotar o que o corpo foi manifestando e não fechei a porteira.

Desaprender era a oferta para os leitores. Principalmente, atalhos para crianças desprogramarem o que os pais aprenderam quando foram se adulterando.

Um livro, uma narrativa, para desfazer, por exemplo, o espólio do machismo.

 

 

Oferecer possibilidades de demolição da fábrica de machistas e de feminicidas, sustentada na alvenaria da escola, na convivência em casa e na rua.

O machismo é apenas um dos desaprendizados oferecidos.

Eu mesmo tentando desaprender sobre o macho que rege tudo ao redor. Com uma turma de alunos mapeamos os indícios, as cercas e o mapa das mentalidades hereditárias.

O governador do Ceará é macho, o prefeito é macho, o presidente da Câmara é macho, a Assembleia Legislativa é comandada por um macho.

No Tribunal de Justiça cearense há um presidente e não uma presidenta. No Ministério Público quem dá a canetada final é um macho também. Todas as missas são rezadas por um macho e os reitores da Uece e da UFC são machos sempre.

 

 

Não é questão de gênero e discurso, mas é a possibilidade de também desaprender fora da escrita que se repete desde que fomos invadidos por "conquistadores", "desbravadores" e "estupradores" do velho mundo acostumado.

Ia para outro lado com a crônica, dentro do desconversar, mas ela tomou uma correnteza paralela. Deixei nadar.

Imaginamos Elmano de Freitas (PT) entrar, definitivo, para a história política cedendo o dreito de concorrer ao governo do Estado para uma mulher? Uma liderança diferente dele, de Camilo, de Roberto Cláudio, de Cid, de Ciro, de Tasso, de Evandro, de Sarto e outros machos.

Difícil. Diria impossível porque os projetos políticos entre os homens não permitem desaprendizados para a reescrita das permanências.

Houve sempre justificativas para a perenidade da herança, há sempre desculpas para se manter a escrita masculina de pertinácia faloépica.

E continuaremos no senso comum de que Maria Luiza Fontenele, Luizianne Lins, Izolda Cela e Dilma Rousseff não deram certo porque são mulheres.

 

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