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Feminicídio, jornalismo e não caber
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Demitri Túlio é editor-adjunto do Núcleo de Audiovisual do O POVO, além de ser cronista da Casa. É vencedor de mais de 40 prêmios de jornalsimo, entre eles Sociedade Interamericana de Imprensa (SIP), Embratel, Vladimir Herzog e seis prêmios Esso. Também é autor de teatro e de literatura infantil, com mais de 10 publicações

Feminicídio, jornalismo e não caber

Ana, agradecido pela carta e por ler mensagens aleatórias, em um desses estados de torpor! Gentileza sua. Abraço
Tipo Crônica
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1412demitri.jpg (Foto: carlus campos)
Foto: carlus campos 1412demitri.jpg

Uma amiga jornalista, e de outras histórias, me mandou carta pelo Instagram. Desse jeito: "São os dezembros", respondi assim a um amigo quando (ele) chove no semiárido. Por esses dias, ele me escreveu quando bebia uma pergunta com cachaça, choro e limão: 'ei, tu tá feliz?".

E continuou em linhas breves, porém quase tão fortes como Ferreira Gullar escrevendo para Clarice já morta e ainda inquieta. Parecia fumar um cigarro atrás do outro e repetindo que cabia em quase nada quando viva.

"Mas o que queria (ele ou Clarice) era ter a própria resposta, porque perdeu a vontade da lucidez. É mesmo insustentável ser lúcido no Brasil (e em qualquer rua desperfumada e arriscada de Fortaleza)".

 

"Peguei o ônibus no final, tal qual a garotinha ruiva do Charlie Brown. Se eu tivesse a resposta, não poderia ir"

 

"Então, ele (que aparentava lágrima silenciosa) me escreveu sonhos e outras anestesias e a vontade de voar para perto de gente que dissesse poesias e loucuras".

Escreveu mais a moça que corre léguas. "Eu fui com ele, por linhas tortas e suas palavras bêbadas, mas não fiquei. Já não digo mais poesias nem falo mais sobre jornalismo e "acho graça do grande amor".

"Peguei o ônibus no final, tal qual a garotinha ruiva do Charlie Brown. Se eu tivesse a resposta, não poderia ir. A gente se encontra na vida, meu amigo, na próxima pergunta (sobre o estado de perfume de cada um. Viva ou finda)", disse e se foi ou permanece no @anadossuspiros.

 

"Ele mesmo, teu amigo, faz as arapucas"

 

Fiz uma resposta meio alinhavada e assim. Ana, acho que o teu amigo nada secreto vive cheio de asas, de redemoinhos, de Charlie Brown, do Snoopy e do passarinho estranho tentando atalhar os perrengues.

Ele mesmo, teu amigo, faz as arapucas. Mas como não gosta de aprisionar alienígena, livra-os da lucidez. Por coincidência, andei ficando um pouco tonto e abstruso.

Fiz para ter o abalo de quem voa, o assombro de não caber. Ameniza o semiárido interior e pode chover ele e Clarice, mesmo morta e o Ferreira Gullar no táxi,apressado, para o último encontro sem necessidade.

 

"Depois de uma faminta discussão com jornalistas que respeito no O POVO, a manchete do jornal foi pelo "fim do feminicídio""
 

 

E, talvez, não seja porque é dezembro e nos desalinhamos ou alimentamos mais interrogações. É quase todo dia a turbação da lucidez. Os lúzios e as lúzias vão se descabendo na vida.

É o envelhecer? É não, é o diabo do iniludível manifesto do que "está posto" ou do acostumar-se.

Mas veja, Ana, tive cabimento em uma história no último domingo. E foi, em parte, o pacto com o jornalismo que ainda me seduz e me rumina. Depois de uma faminta discussão com jornalistas que respeito no O POVO, a manchete do jornal foi pelo "fim do feminicídio".

Escrito lá, na primeira dobra do jornal (este imprescidível ser alienígena!). Para baixo foi o futebol com os rebaixados Fortaleza e Ceará - coisa de macho e comum.

O jornal e os jornalistas fizeram coro ao "levante das mulheres vivas" que gritaram, na Praia de Iracema e no resto do País, que precisa ter um basta radical nos feminicídios premeditados por meninos machos malcriados e escrotos. Criminosos.

 

"É estranho meu cabimento nessa tragédia sem fim, mas entendo como lucidez"

 

Aliás, talvez, a manchete será ainda mais consequente quando um dia chegarmos a responsabilizar, no jornal e no cotidiano, na voz ativa os feminicidas. Talvez, deixar de escrever "mulher foi morta por marido, ex-companheiro, namorado...".

E manchetarmos, por exemplo: "Raul arrastou, esfaqueou, atirou covardemente e matou Maria, Benigna, Francisca...".

É estranho meu cabimento nessa tragédia sem fim, mas entendo como lucidez. E, aqui, permito a perspectiva de ter desejo por outra história.

Com manchetes e matérias sobre feminicídio zero. E o fim das fábricas de machistas nas famílias, nas escolas, na rua, nas igrejas, na liberdade de expressão equivocada, no ódio "recreativo", na política de machos...

Ana Mary, agradecido pela carta e por ler mensagens aleatórias, em um desses estados de torpor! A redução acentuada e consciente da lucidez. Gentileza sua. Abraço.

 

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