Demitri Túlio é editor-adjunto do Núcleo de Audiovisual do O POVO, além de ser cronista da Casa. É vencedor de mais de 40 prêmios de jornalsimo, entre eles Sociedade Interamericana de Imprensa (SIP), Embratel, Vladimir Herzog e seis prêmios Esso. Também é autor de teatro e de literatura infantil, com mais de 10 publicações
Acordar cedo é inconstitucional. Instintivamente concordei, sei que é dos bichos madrugarem ou pelo menos a maioria deles despertarem no comecinho da vida voltando. Mas adormecer bem e ressurgir quando for é uma passageira morte prazerosa.
Os pássaros, os rouxinóis e os galos se levantam cedo porque sim, muitos são os primeiros cantos antes dos sóis. Os bem-te-vis reclamando dos humanos a derrubarem árvores, os pitiguaris reportando o feitiço das chuvas. Os sabiás do Cocó querendo ninhos nos janeiros e setembros.
Acordar cedo é inconstitucional, pelo menos aos domingos deveria ser crime inafiançável. Proibição voluntária ao corpo submetido às rotinas capitais ou de qualquer armadilha que nos catequizou para escravizados, operários, empregados e afins.
Dormir bem, ando carecendo, é meio quando pensávamos que os cavalos voavam quando batiam em alta carreira desembestados, mas leves. Foi antes da invenção da fotografia, quando os corpos musculosos e tão plumas dos corcéis flutuavam à beira do oceano.
"Ferrar assim é o contrário de estar apragatado numa tela derivada de sistemas de células"
Era, talvez, uma consequência do abonançar com leveza. O corpo perdendo peso, meio gavidade nula, o arrepio nos pelos feito relva que vai e vem ao vento, o bocejo um atrás do outro, os olhos a baterem asas devagarinho - quase um beija-flor já velhinho e pedindo para descansar em uma árvore que o proteja de um predador. O sono...
Ferrar assim é o contrário de estar apragatado numa tela derivada de sistemas de células, as aranhas da matrix, e arrodeado de torres esquizofrênicas de retransmissões a conectar tudo que vem de fora para o corpo que não nasceu para ser 24 horas. Chega dá fadiga escrever isso.
Não sei por que quis narrar sobre o dormir. Não era isso a crônica que me avisou a mente inquieta durante a semana e perto de tentar escrevê-la na quinta ou sexta-feira. Tinham outras jornadas de escrita alinhavadas, mas me deu vontade de me aninhar quando ouvi na Rádio O POVO/CBN: "acordar cedo é inconstitucional".
"Andam reclamando que ando falando muito sobre o escrever uma crônica"
Era um entrevistado, um promotor de justiça do Rio Grande do Sul, sotaque cheio de pampas e voz descansada. Gentil na entrevista sobre o julgamento dos bolsonaristas golpistas, mas a dizer que chovia muito, muito, em Porto Alegre e acordar cedo era inconstitucional. Perfeito!
Andam reclamando que ando falando muito sobre o escrever uma crônica. Como nasce? Do que não vem e por que concebê-la? E ainda, quando não me dispo do repórter e fico entre a matéria jornalística e uma tentativa de crônica.
Pois é, até queria ser mais do que me imagino hoje. Tenho inveja de Luís Fernando Veríssimo, Nelson Rodrigues, Lygia Fagundes Teles, Tarcísio Matos, Pedro Salgueiro, Felipe Araújo, Tércia Montenegro, Henrique Araújo, Dauna Vale, Leonardo Macêdo, Raimundo Neto, Ana Carla Dubiela, Tânia Alves, Januária Melo, Danilo Fontenele, Manoel Ricardo de Lima,
Ana Miranda, Eleuda de Carvalho, Ricardo Guilherme, Guálter George, Ronaldo Salgado, Ethel de Paula, Cláudio Ribeiro, Ariadne Araújo, Ana Mary C. Cavalcante, Paulo Mendes Campos, João do Rio, Machado de Assis... Não passo de um por acaso de cronista. Um dia, quem sabe!?
Sei que preciso, mesmo, de um sono semelhante ao da época em que mijava na rede e tinha vergonha quando amanhecia e mamãe e vovó reclamavam. Uma vergonha que não era para ser vergonha. Eu tentava, juro. E até sonhava conseguir atravessar o telhado da noite sem fazer xixi no mosaico.
"O sono era atravessado e ali, imóvel, ficava entre não se mexer e ter gastura de retomar a dormilança mijado"
Mas tinha aquela hora em que algo esquentava na altura da cintura. Talvez um sonho? Uma água quente que percorria do meio das pernas para as ancas até esfriar tudo e escorria. Mijei de novo na rede, puxa vida!
O sono era atravessado e ali, imóvel, ficava entre não se mexer e ter gastura de retomar a dormilança mijado. Lençol e tudo. Subir perto dos punhos da rede ou nas bandas e cochilar.
Desdomir cedo é inconstitucional, mesmo numa rede cheirando a xixi e sol queimado.
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