Demitri Túlio é editor-adjunto do Núcleo de Audiovisual do O POVO, além de ser cronista da Casa. É vencedor de mais de 40 prêmios de jornalsimo, entre eles Sociedade Interamericana de Imprensa (SIP), Embratel, Vladimir Herzog e seis prêmios Esso. Também é autor de teatro e de literatura infantil, com mais de 10 publicações
Por mim não teria saudades, mas não sei tanger algumas lembranças. E de quem se quer bem, desmedido, até nos acostumarmos com a falta que você faz, é um mar. Dona Laura teve de ir porque o coração já estava um papel de arraias. Delicado ao vento, à chuva e ao cerol.
E olhe que ela engabelou o fim por pelo menos em 20 anos. A previsão médica para a "válvula intrusa" eram seis, sete anos. Foi adiando e viu ainda os netos Abrahão e a pequena Maria Laura.
"Na sexta-feira que se foi, a vi indo embora entre as ruas"
Senti muita falta de não ter dito algumas conversas com dona Laura. Porque via nela a Sarah, um grude. O Saulo e a Michelly (outros grudes), os dois primeiros netos. E o Pedro na doçura dele misturada com a dela e de Leleca...
Na sexta-feira que se foi, a vi indo embora entre as ruas - cheias de quero-queros alarmantes no cemitério Parque da Saudade. Havia ido a última vez ali, em 2020, durante o horror da pandemia da covid. Fui acompanhar o enterro de tio Abílio, irmão de dona Laura, também num agosto de ventos.
Um dia estranho, enterro às pressas e quase nenhuma despedida para seu Abílio. Não teria morrido por causa do vírus ceifador, mas era o protocolo. Era o medo de contaminação, também, num cemitério que estava exausto de tanto cavar covas. Repórter também tem medo.
"E não sei o porquê, a história do Bom Jardim voltou. Talvez, o vão dos pensamentos vagos"
Mas os dias são assim, talvez. De repente, um dos nossos viram saudades e precisamos carpir o tempo que for. Vi dona Laura, Laurinha, tia Laura, Maria Laura, vovó Laura indo pelas ruas quietas e passaradas do Parque da Saudade...
Vi-a sentada nos bancos, rindo serena, até o momento em que ela mesma fechou a porta e cada um teve de retornar para ir viver a vida. E não sei o porquê, a história do Bom Jardim voltou. Talvez, o vão dos pensamentos vagos, achei feliz dona Laura falecer de morte morrida.
Uma sorte que muitos não têm. Nas zonas desprivilegiadas de Fortaleza, virou ansiedade continuar vivo ou viva nos territórios invadidos pelas facções. Uma fonte, não ouso nem revelar o gênero, me ligou também numa sexta-feira, há uns 15 dias.
"Teve bródio no bairro quase todo e chamaram faccionados de outras quebradas para comemorar a virada de casaca"
Para falar de uma festa no Alto da Paz e se admirar que não houve tiroteio nem chacina. Fincaram a bandeira e o Bom Jardim todo estava dominado, agora, pelo Comando Vermelho. O chefe "Garoto", que está num presídio, "rasgou a camisa" e a GDE estava fora do crime no território.
Teve bródio no bairro quase todo e chamaram faccionados de outras quebradas para comemorar a virada de casaca de quem mais manda no medo alheio, no Bom Jardim. Parece história de trancoso contada por meu avô Afonso, mas não é.
Dona Laura me aconselharia cuidado com o que escrevo, me recomendaria à Santa Luzia da Praia de Iracema, suas áreas. Fez muito isso pela filha Virgínia, quando o inesperado atravessou os dias. O coração resistiu ao baque do sofrimento da única filha - irmã do Alex (que a salvou doando uma medula) e do Zé Maria Filho.
"No Bom Jardim, a fonte me disse que havia uma sensação esquisita de não existir"
No cemitério, o sol se pondo, fiz umas imagens para enviar à neta Sarah, em Belo Horizonte. Os últimos instantes de dona Laura por aqui. Estava viva, garanto. Fez joinha com os dedos e recomendou, de novo, "cuidem-se".
No Bom Jardim, a fonte me disse que havia uma sensação esquisita de não existir. Com apenas uma facção no domínio pairou a sensação mórbida de "paz". Mas ninguém pode falar nada, nem fazer BO, nem olhar atravessado para meninos armados.
Numa rua lá está escrito que "os carros andem devagar, há crianças brincando na rua. Se atropelar, vamos cobrar". Assina a facção. Eles são a "lei" também. Uma alegria incômoda tomou o "cidadão". Até a praça da areninha (antigo estádio do Bom Jardim) voltou a ter convivência pacífica.
"Dona Laura, descanse na paz e agradeço a convivência com a senhora"
E estaria ocorrendo, desde a rasgação da camisa, uma reorganização nas travessias do bairro. "Não precisa mais temer" cruzar ruas antes proibidas pela facção inimiga. Como tudo, agora, é "dois", o território estaria liberado do medo.
Dona Laura, descanse na paz e agradeço a convivência com a senhora. A senhora sabe, não tenho mais problema em entrar em cemitérios. Minto, o do Bom Jardim ainda me incomoda. Lá há muita gente encerrada por causa do perverso das facções.
Interceda, por aí, na gentileza da senhora, pelo Bom Jardim e por mudanças de rota de Estado e Prefeitura na lida com a insegurança pública. Abraços no coração!
Por último, último mesmo, a Sarah comprou um LP do Roberto Carlos pra senhora. Não deu tempo vir de BH, mas há uma música que ela cantava quando criança e ofereço pra senhora. Gosto da versão das Anavitória, "Amor perfeito". A Sarah oferece a versão do Roberto porque a senhora é fã...
Fecho os olhos pra não ver passar o tempo, sinto falta de você / Anjo bom, amor perfeito no meu peito / Sem você não sei viver / Então vem, que eu conto os dias conto as horas pra te ver / Eu não consigo te esquecer / Cada minuto é muito tempo sem você...
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