A exploração de urânio e fosfato no Ceará entra em dias decisivos nesta semana, quando acontecem as primeiras audiências públicas conduzidas pelo Instituto Nacional do Meio Ambiente (Ibama).
O Projeto Santa Quitéria – nome dado devido ao município cearense onde a jazida está localizada – retoma o interesse de produção de concentrado de urânio da década de 1980, mas expõe, desta vez com mais ênfase, as falhas do processo de mineração no Brasil.
O Projeto conta com investimento de R$ 2,3 bilhões e consiste na produção anual de 2,3 mil toneladas de concentrado de urânio, destinado ao enriquecimento no Exterior para fabricação de combustível a ser usado nas usinas nucleares brasileiras de Angra 1 e 2.
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Mais 1,05 milhão de toneladas de fertilizantes fosfatados e 220 mil toneladas de fosfato bicálcio devem atender a agropecuária do Norte e Nordeste do País. A previsão é gerar 8 mil postos de trabalho diretos e indiretos durante as obras e cerca de 2.800 na fase de operação.
Mas, para isso, serão necessários 855 metros cúbicos de água por hora em uma região na qual a população sobrevive de carros-pipa e cisternas mesmo tendo a agropecuária familiar como principal atividade econômica. A Fazenda Itataia, que dá nome à mina, é localizada em uma área predominantemente rural a 62km da sede de Santa Quitéria e tem uma extensão total de 4.042 hectares.
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Dados do último Censo (2010) do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) atestam a pobreza no município: A proporção de pessoas ocupadas em relação à população total era de 10,2%. Na comparação com os outros municípios do Estado, ocupava as posições 118 de 184. O PIB per capta é de R$ 11.499,93 enquanto 85,1% das receitas são oriundas de fontes externas: federais e estaduais.
Formado pela estatal Indústrias Nucleares do Brasil (INB) e a Galvani Fertilizantes, o Consórcio Santa Quitéria é o responsável pelo Projeto e assinou um memorando com aval do governo estadual visando a construção de equipamentos que, segundo as empresas, podem reduzir as desigualdades na Região.
A participação das duas empresas no Projeto Santa Quitéria diz respeito não só ao interesse econômico da Galvani no fosfato, mas porque a INB detém o monopólio da exploração de urânio no Brasil e desde a década de 1970 tenta a exploração deste minério no Ceará.
Esta é a terceira tentativa de licenciamento junto ao Ibama, que já concedeu o aceite ao projeto. No entanto, enfrenta, agora, o conhecimento público de crimes ambientais recentes, como Brumadinho e Mariana, e outras contaminações que envolvem a extração de urânio, os quais contam contra o projeto que reúne um poderio econômico nacional e local de peso.
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O projeto recebe apoio direto do Governo Federal, que controla a INB via Ministério de Minas e Energia (MME), e do Governo do Estado do Ceará, desde a descoberta do minério. Desta vez, a adutora do açude Edson Queiroz e a pavimentação de 16 km da rodovia CE-366 foram prometidas em memorando de entendimento assinado em 2020 pelo ex-governador Camilo Santana (PT) como aval formal ao empreendimento.
Especificamente no Ceará, a Federação das Indústrias demonstrou apoio público, com destacada participação do Observatório da Indústria – contratado para colher dados e apontar oportunidades a partir do Projeto Santa Quitéria –, do Sindicato das Indústrias de Mármores e Granitos do Estado do Ceará (Simagran-CE), e da Associação Profissional dos Geólogos do Ceará (APGCE).
Soma-se a isso a possibilidade de mais investimentos nos portos de Pecém – controlado pelo governo estadual – e de Mucuripe – sob a gestão da estatal federal Companhia Docas do Ceará. O objetivo é embarcar o concentrado de urânio para o Exterior via o primeiro terminal e o fosfatado pelo segundo (em um aporte previsto de R$ 85 milhões).
Já o agro tem apontado na possibilidade de diminuir a dependência dos fertilizantes estrangeiros, após a deflagração da crise causada pela guerra entre Ucrânia e Rússia.
PARA ENTENDER MELHOR
A retomada do projeto em 2019 e a assinatura do memorando com o governo estadual reativou as ações com as lideranças comunitárias pela Articulação Antinuclear do Ceará, que é formada por grupos como o Movimento pela Soberania Popular na Mineração (MAM), Cáritas Diocesana, Greenpeace e o Núcleo Trabalho, Meio Ambiente e Saúde da Universidade Federal do Ceará (Tramas/UFC).
A principal crítica recai sobre o trabalho com o urânio, devido à geração de rejeitos que devem permanecer na área de Itataia após o término da exploração. A Articulação defende a inviabilidade do projeto por considerar que uma mineração estimada em apenas 20 anos deve gerar mais danos ao meio ambiente e à população do que ganhos econômicos.
Uma má-reputação adquirida pela INB em outras experiências, como a de Caetité (BA) e Caldas (MG), também são citadas pelos cientistas como exemplo de erros cometidos, não reparados e que podem se repetir no Ceará.
O descrédito se dá depois de denúncias comprovadas pela Comissão Nacional de Energia Nuclear de vazamento de 67 quilos de concentrado de urânio por 76 dias e que não foi informado aos órgãos de meio ambiente da Bahia, em 2009.
Caldas é alvo de ações na Justiça para o início do processo de descomissionamento – procedimento realizado para a desativação de uma instalação nuclear. A exploração no município mineiro foi a primeira do País, tem mais de 40 anos e gerou uma barragem de rejeitos líquida equivalente a cem estádios do tamanho do Maracanã.
Estudos sobre contaminação e casos de câncer nas áreas próximas à exploração em curso da Universidade Federal da Bahia (UFBA) e denúncias dos ministérios públicos completam a lista de argumentos contrários ao Projeto Santa Quitéria.
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Mas nem sempre os riscos ambientais e de saúde foram considerados pelo governo brasileiro. Um levantamento no Datadoc, sistema de arquivos do O POVO, não traz menções a movimentos contrários à exploração de urânio e fosfato no Ceará até o início dos anos 2000.
No Ceará, uma área de 35 mil quilômetros quadrados (km²) entre Canindé, Quixadá e Santa Quitéria foi alvo de levantamentos. Ao todo, 273 anomalias (como é chamada a ocorrência de possíveis jazidas) foram encontradas a partir do uso do cintilômetro (o aparelho que detecta a radiação e era manuseado pelos funcionários da então Nuclebrás, que hoje é a INB).
Foi quando a Fazenda Itataia, a anomalia 62, foi identificada como promissora. A abertura de lavras reforçou a existência do urânio associado ao fosfato. Foram 160 furos com profundidade média de 30 metros. A abertura de três galerias comprovou o corpo de minério de 800 metros de comprimento e 160 metros de profundidade - a maior jazida de urânio do País.
Na década seguinte, quando o cearense César Cals era ministro das Minas e Energia e Virgílio Távora era governador do Estado, várias tentativas de viabilizar o projeto foram feitas.
A Fazenda Itataia foi comprada pelo Governo Federal, associações com empreiteiras como a de Noberto Odebrecht e o grupo francês Pechney Ogine Kulman foram fechadas para a construção de uma usina piloto e o projeto da barragem de Serrote foi idealizado para fornecer água à mineração.
Mas, em 1996, o presidente da INB, José Antonio da França, preteriu Itataia e escolheu Caetité, na Bahia, como a próxima exploração da estatal, após encerrar as atividades em Caldas (MG).
O Projeto Santa Quitéria só foi retomado nos anos 2000 e contou com apoio do então governador Cid Gomes em 2007 (na época no PSB).
Ele prometeu viabilidade hídrica para um plano de uma barragem "Barragens de mineração são estruturas projetadas para a contenção e acumulação de substâncias líquidas ou de mistura de líquidos e sólidos, provenientes dos processos para beneficiamento de minérios." molhada e uma rodovia que atendesse as necessidades de transporte das cargas.
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Nesta semana, com o início das audiências públicas promovidas pelo Ibama em mais uma tentativa de licenciamento do Projeto Santa Quitéria, os lados contra e a favor irão ao debate na tentativa de que os seus argumentos sejam capazes de se sobrepor aos dos outros.
Serão três dias: 7 de junho, em Santa Quitéria; 8 de junho, em Itatira; e 9 de junho, em Canindé. Todos a partir das 19 horas.
O POVO visitou as comunidades no entorno do projeto, esteve com os cientistas e movimentos socioambientais, assim como com os representantes do Consórcio, do setor produtivo e do governo estadual, e expõe o que ouviu de cada um dos envolvidos nos próximos três episódios.
PARA RELEMBRAR
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